segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Ñatitas






Domingo, acabei um livro chamado Potosí 1600, de Ramón Rocha Monroy, considerado um dos principais autores bolivianos. É daquelas obras de ficção com rigor histórico. Como o nome revela, trata da cidade de Potosí, na Bolívia, em torno de 1600.

Pra quem não lembra das aulas de história (ou simplesmente não ouviu falar, porque o resto da América Latina é mesmo negligenciado na escola), foi daí que saiu a maior parte da prata sul-americana para o Império espanhol.

Por um tempo, Potosí foi considerada o centro do mundo. Era tanta a riqueza extraída de suas minas que até se criou a expressão "vale um Potosí" para se referir a algo de muito valor.

Enfim, o livro conta, de uma forma muitas vezes sarcástica, a degradação da sociedade que vivia ali em meio a tanta punjança.


Entre os trechos que me chamaram a atenção, está um que fala de uma antiga tradição andina, a Festa das Ñatitas:

"Los indios le hacían reverencias y el Viejo repetía que ellos ocultan calaveras que obran milagros, en particular las de muerte violenta y sin sepultura, como que se rumoraba que Mayta era el preste anual de la Fiesta de las Ñatitas, celebrada en la octava del Día de Difuntos".
Cerca de 400 anos depois, tive a sorte de presenciar uma das edições da tal festa. Ei-la:

Brasil de Fato, edição 246 (de 15 a 21 de novembro de 2007)

O culto popular às ñatitas, entre a fé indígena e a católica

Milhares de bolivianos rendem culto a crânios humanos, aos quais são atribuídos poderes sobrenaturais

Igor Ojeda
de La Paz (Bolívia)

De gorro marrom-claro e óculos de grau, é por volta do meio-dia que Agustina chega, um tanto apressada, ao Cemitério Geral de La Paz. Está atrasada. Há cerca de 20 minutos, o padre local acabara de celebrar a última missa.
Num dia como este, um 8 de novembro de sol forte, presenciar tal cerimônia é imprescindível. Menos mal que Agustina chega a tempo de ser benzida. Caso contrário, as conseqüências poderiam ser desastrosas para quem a acompanha ao cemitério. Ou melhor, para quem a carrega.
Pois, há pelo menos 40 anos, Agustina já não pode caminhar sozinha. Ela está dentro de uma caixa de vidro. Além do gorro e do óculos, traz sobre ela uma coroa de flores. Na cavidade de seus olhos, chumaços de algodão.
Agustina é uma ñatita. Melhor dizendo, Agustina é um crânio. Um crânio de verdade.
Mais do que tudo, Agustina é parte de uma impressionante tradição de se celebrar os mortos numa Bolívia cada vez mais invadida pelas abóboras do Halloween estadunidense. É a Festa das Ñatitas.
Mas, diferentemente do "Dia das Bruxas" boliviano, quando se testemunha crianças brancas fantasiadas, da classe média para cima, levadas por seus pais a pedirem "doces ou travessuras" pelas ruas da cidade, a celebração das Ñatitas é, sobretudo, popular.
No Cemitério Geral de La Paz, os rostos, os cabelos, os gestos, as falas, as roupas, são indígenas, são dos da classe baixa. Todo 8 de novembro, no encerramento da "Festa de Todos os Santos", aproximadamente cinco mil dos de baixo aparecem para a celebração. O que significa que, como Agustina, outras milhares de caveiras – ou ñatitas, como são chamadas – se fazem presentes, carregadas por seus donos. Donos que carregam consigo, antes de tudo, uma fé inabalável.
"Ela nos protege de todos que querem nos fazer mal. Cuida da casa. Às segundas-feiras, a velamos, acendemos velas, fazemos com que masque folha de coca. Fazemos pedidos. Para que não nos falte nada. Outras pessoas vêm a nossa casa para acender velas a ela, quando tem alguém doente na família... Quando as pessoas perdem dinheiro, ela faz aparecer, quando têm problemas, ela os soluciona", explica Reubel Santos, o homem de cerca de 40 anos que conseguiu fazer com que Agustina recebesse a água benta a tempo.
Ele conta que sua ñatita é um antepassado distante e que, no passado, pertencia a seus avós. "Ela nos acompanha há 10 anos, é mais uma da família", diz, num misto de orgulho e carinho.

Tradição andina

Ñatitas , "caveirinhas com nariz chato", em aymara, são almas que ainda não deixaram o mundo dos vivos. Atribui-se a origem de tal culto a épocas pré-coloniais, no altiplano boliviano. Os crânios de posse das famílias são, geralmente, de desconhecidos, embora muitas vezes possam ser de parentes e amigos.
Os próprios fanáticos os recolhem, em cemitérios ilegais, em covas abandonadas, ou os compram de coveiros que os desenterram de tumbas clandestinas.
As ñatitas desconhecidas se comunicam com os vivos através dos sonhos destes. Assim, numa noite bem-sucedida e bem dormida, pode-se descobrir o sexo, a idade e, principalmente, o nome da caveira, com o qual ela será batizada. É através dos sonhos também que uma ñatita comunica a seu dono a chegada de doenças ou desgraças. Além de tudo, as "almitas", como também são conhecidas, realizam desejos.
A cada 8 de novembro, para que mantenha seus "poderes", a ñatita deve ser levada ao cemitério para ouvir missa e ser benzida. Mas isso não significa que, durante o resto do ano, ela pode ser negligenciada. Regularmente, deve-se acender velas e oferecer flores em sua homenagem. Do contrário, tragédias podem ocorrer, e os sonhos não mais virão.
Para que nada de mal lhes aconteça, Sofía e María Aranda, mãe e filha, mantém em sua casa um altar especialmente para Vicky. "Acendemos velas a ela todas as segundas-feiras, e fazemos pedidos. É muito milagrosa. Tudo que queremos, ela nos proporciona. Em relação à saúde, ao estudo, ao trabalho... ela também cuida da casa. O que eu peço, se peço com fé, Vicky me dá", garante Sofía.
Falecida há quatro décadas, Vicky era uma amiga da família. "Tiramos do cemitério", conta, naturalmente, María.
Fé é o que não falta a Josejina Luna, que, pelo segundo ano seguido, traz, em uma caixa de madeira e vidro, Lucas, Ricardo e Cirilo, ñatitas antigas na família. Eram do seu bisavô, antes de pertencerem a seu avô e a ela própria.
Durante o ano, ficam em seu quarto. "Falo com elas, e, às duas, três da manhã, elas fazem barulho. Se uma pessoa tem fé, elas aparecem no sonho", conta Josejina, que se sente protegida. "Eu sempre deixo minha casa sozinha e nunca entrou ladrão".

Sincretismo

Por atribuírem poderes sobrenaturais às ñatitas, seu culto foi, durante muito tempo, proibido pela Igreja Católica, e era realizado quase que clandestinamente. Por isso mesmo, impressiona a fusão da tradição religiosa andina com o catolicismo proporcionada pelas milhares de pessoas que chegam ao Cemitério Geral de La Paz desde as primeiras horas da manhã do dia 8. Quase todas carregando sua ñatita em recipientes de todo tipo e tamanho. Madeira, vidro, papelão. Abertos, fechados. A criatividade também está presente nos adornos dos crânios. Há os totalmente "pelados", os de óculos escuros, os de óculos comuns. Os de boné, gorro, chapéu, sombreiro. O que nunca falta são as coroas de flores.
"Como se chama?", perguntam os que se postam diante de uma ñatita .
Viviana. Bernabé. José. Rosita. Carlitos. Manuel. Isabela. Ribita. Nico. Dionicia. Ilario.
Não importa a resposta. Pétalas de flores e uma ou duas velas, para serem acesas às segundas-feiras, é a oferenda, seguida do sinal da cruz.
Empurra-empurra para entrar na igreja do cemitério. Lá dentro, os devotos se espremem para conseguir benzer sua ñatita.
No momento da última missa do dia, rezada pelo sacerdote local, silêncio total. Segurando suas caixas com os crânios dentro, os fiéis estão atentos às palavras do padre. Outros deixam suas "almitas" em um altar em frente à imagem de Nossa Senhora de Copacabana, padroeira da Bolívia. Todos repetem em coro as palavras do sacerdote. Todos, após o último "amém", fazem o sinal da cruz.
Acabada a missa derradeira, está longe a hora de ir embora. Os fiéis, com suas respectivas ñatitas, espalham-se por todo o cemitério. Instalam-se em algum canto. Das sacolas, saem frangos, arroz, sanduíches de queijo e presunto, salteñas, folhas de coca, refrigerantes, cervejas.
Todos começam a comer, a beber, a conversar animadamente, e a fumar. O cigarro é uma tradição. Tanto os vivos como os mortos – as ñatitas, no caso – fumam nesse dia.
Em cada lado para o qual se olha, avista-se um grupo de músicos, que com suas canções ora tristes, ora alegres, homenageia as almas que ainda não se foram desse mundo. E que certamente voltarão ao cemitério de La Paz no ano que vem.

Um comentário:

Simone Iwasso disse...

essa história é impressionante.