quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A força que vem do Trópico

Aqui, o comecinho da minha matéria sobre os cocaleros do Chapare. Se quiser ela inteira, compre a edição 287 do Brasil de Fato ou espere que a publicarei aqui em... pelo menos, um mês. Hehe.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Atenham-se a seus devidos lugares!

Já faz algum tempo que jornais, revistas, TVs e sites da grande imprensa brasileira, em matérias, editoriais, artigos ou panfletos (no caso da Veja), “denunciam” o fato do MST já não lutar apenas por reforma agrária. O movimento teria se “desviado” de suas reivindicações originais para atacar o agronegócio, as transnacionais, o neoliberalismo, o capitalismo etc.

Diante disso, fica a importante pergunta: E daí??? Um movimento social não pode evoluir no seu projeto político? Ainda é crime (lembrando a Guerra Fria) ser anticapitalista?

A “denúncia” tem uma simples razão de ser: o rechaço da imprensa do Brasil é pelo fato do MST ousar sair do âmbito de atuação permitido pelo famoso “Estado Democrático de Direito” e passar a (deus me livre!) contestar o sagrado sistema democrático-capitalista-burguês.

A democracia representativa ocidental só permite as mobilizações por pautas específicas. E, claro, desde que não “perturbem a ordem”. Já viram algo mais ridículo do que aquela determinação, em São Paulo, de proibir manifestação na Avenida Paulista, e de só permitir protestos na praça Campos de Bagatele?

Ou seja, protesto tem que ser onde, quando e como o Estado bem desejar.

Mas o pior efeito da “denúncia” da imprensa contra o MST é a descontextualização da realidade política, social e econômica em que vivemos. É esconder que tudo está ligado. É ignorar (por ingenuidade ou má-fé) que, hoje, a reforma agrária e a justiça social no campo não são possíveis no neoliberalismo e nos marcos de um modelo econômico que privilegia as transnacionais e o latifúndio exportador.

O MST percebeu isso. Mas a imprensa não vê e não quer ver. Afinal, colocar tudo no mesmo contexto seria um fermento perigoso para uma cada vez maior contestação ao sistema.

Mas pensei nisso tudo porque acabei de ter uma experiência interessante com os cocaleros do Chapare.

Lá pro fim dos anos 80, começo dos 90, eles foram muito reprimidos pelos governos de turno por causa das plantações de coca. E foi quando ganharam força como movimento social. Os sindicatos lutavam por duas coisas: pela folha de coca, e pela terra.


Cocalero mexendo a coca para
ajudar na secagem

Mas, lá por 95, internamente e em articulações com movimentos de outras partes da Bolívia, passaram a incluir na pauta reivindicações nacionais, principalmente a nacionalização do gás. E, em conseqüência disso, resolveram criar um instrumento político para lutar por suas demandas, inclusive a nível institucional.

Daí surgiu o MAS, que não é um partido tradicional. Está mais pra sindicato e movimento social, apesar dos riscos e das pequenas mostras de burocratização desde que chegou no governo.

Mas o fato é: se os cocaleros tivessem permanecido com suas pautas específicas, locais, muito provavelmente a Bolívia hoje não estivesse vivendo o processo que está vivendo, de mudanças políticas e sociais, com todas suas limitações e contradições.

O governo Evo está longe de ser revolucionário, mas não podemos ter dúvidas de que traz avanços bem importantes. A gritaria da oligarquia não é a toa.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Bolívia – onde a geografia se faz história através da política

Artigo muito bom do geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves no site do Brasil de Fato.

As vozes dissonantes de Santa Cruz

Brasil de Fato, edição 271 (de 8 a 14 de maio de 2008)

Embora passe a imagem de apoio unânime ao estatuto, departamento opositor é palco de resistência à oligarquia local

Igor Ojeda
Enviado especial a Santa Cruz de la Sierra (Bolívia)

Sob um Cristo Redentor que leva seus braços para o alto, Rubén Costas, o governador de Santa Cruz, discursa. “No dia 4 de maio, diremos um ´sim` à democracia, à liberdade, a nossa forma de ser. A autonomia tem razão histórica e é direito fundamental de sermos donos de nosso destino. É parte essencial de nossa liberdade”.
É dia 30 de abril, data do encerramento oficial da campanha em favor do referendo sobre o estatuto autonômico do departamento. A cada frase de Costas, uma multidão espalhada por uma longa avenida aplaude e grita em apoio. Estão quase todos vestidos de verde e branco, as cores da região.
Um turista que tenha estado na cidade no dia 4 e nos dias que antecederam a consulta crucenha deve ter imaginado que toda uma população estava irmanada na mesma luta autonômica.
Carros com adesivos, bandeiras nas casas, pessoas com camisetas com alusões à autonomia estavam por todos os lados. Caso o mesmo viajante tenha visto, por curiosidade, os resultados de boca-de-urna, que projetaram a aprovação do estatuto por 85% dos votos, provavelmente pensou que sua impressão era correta.

Repúdio

No entanto, certamente ele não viu o que aconteceu no dia 2, numa zona mais deteriorada da cidade. E é possível que não tenha ficado sabendo dos eventos do dia 4 no Plan 3000, um dos bairros mais pobres de Santa Cruz.
Nos dois casos, as cores predominantes não era o verde e o branco: a grande maioria das pessoas empunhava a “tricolor”, como é chamada a bandeira boliviana, verde, amarela e vermelha. Outros carregavam a whipala, bandeira que leva as cores do arco-íris e que é sagrada para os indígenas da região andina.
Na concentração do dia 2, que reuniu cerca de duas mil pessoas contrárias à consulta, diversos líderes de movimentos sociais locais e nacionais revezavam-se ao microfone discursando contra “o referendo ilegal impulsionado por uma minoria oligárquica racista do departamento que quer manter o poder sobre as terras e a exploração do trabalhador nos latifúndios”.
Já no Plan 3000, no dia da votação, os moradores mostraram seu repúdio ao estatuto queimando urnas e cédulas na La Rotonda, uma espécie de centro do bairro. Durante todo o dia, ocorreram duros enfrentamentos contra apoiadores do referendo, liderados pela Unión Juvenil Cruceñista, que tentavam garantir a consulta. Pedras e pedaços de pau voaram, de um lado ao outro, por várias horas, assim como bombas de gás lacrimogêneo da Polícia Nacional, que tentava acalmar a situação.
Grandes mobilizações como essa aconteceram também no interior do departamento (veja matéria nesta página), dando mostras de que a unanimidade em favor do estatuto autonômico é questionável.

Abstenções

A “vitória retumbante” do “sim” também ficou abalada – embora as autoridades crucenhas não reconheçam – com a divulgação da primeira parcial da apuração, no dia 5. Com um terço dos votos contados, o índice de abstenção estava em 35,82%. Os que haviam votado pelo “não” somavam 15,73%, enquanto os nulos e brancos chegavam a 3,81%.
De acordo com o Movimiento Al Socialismo (MAS, partido do governo), o fato de 55,36% dos eleitores de Santa Cruz não terem votado pelo “sim” evidencia que a maioria dos crucenhos não apóia o estatuto, significando, assim, o fracasso do referendo autonômico.
No entanto, tanto o MAS quanto organizações sociais do departamento fazem questão de frisarem que eles não lutam contra a autonomia, e sim contra o texto autonômico, considerado por eles anti-democrático e de viés separatista.
“Os setores sociais não estão tão informados sobre o estatuto. Porque o povo foi marginalizado desse processo. Não tivemos representantes do povo, diretamente eleitos por nós, para que o escrevessem”, protesta Mario Barón, presidente da Associação Copacabana, organização de comerciantes do Mercado Central do Plan 3000. “Estamos contra porque foi feito por cima de nós”, completa.

Disputa de poder

Para Jerjes Justiniano, do Partido Socialista boliviano, a consulta levada a cabo no dia 4 não diz respeito à autonomia, e sim a uma disputa pelo poder político e econômico. “Não votamos pela autonomia. Já a aprovamos em junho de 2006. Votamos a aprovação ou não de um estatuto autonômico, que é mais centralista que o federalismo do Brasil”, diz.
Em 2006, em um referendo nacional, o “não” à autonomia ganhou nacionalmente, enquanto o “sim” triunfou nos departamentos de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando, chamados de meia-lua. Na época, o governo central fez campanha pelo “não”, o que fez, na opinião de Justiniano, que a oligarquia do oriente se apropriasse da bandeira autonômica.
Ainda de acordo com ele, que se diz “um autonomista desde os 19 anos”, o referendo é o resultado de um processo histórico acentuado a partir da revolução boliviana de 1952. Enquanto no ocidente do país foi realizada uma reforma agrária, o mesmo não ocorreu no oriente, por existir, na época, muita terra e pouca gente.
Em 1971, com o início da ditadura de Hugo Bánzer, a burguesia de La Paz, surgida em 1952, se vincularia com os setores produtivos de Santa Cruz, desenvolvendo uma agroindústria exploradora e uma classe social emergente na região. “Esta classe é a que está disputando o poder nesse momento”, diz.

Terra

Poder que pode ser resumido, para ele, na tentativa de manutenção da estrutura fundiária do departamento. “Foi feita uma lei de reforma agrária por Evo Morales que afeta a oligarquia de Santa Cruz”, esclarece. Segundo o estatuto autonômico, a faculdade de titulação das terras é do governador, assim como muitas outras competências, como a definição da política de hidrocarbonetos.
“O estatuto é a tentativa de voltar 180 anos, antes da República. Querem um governador com todos os poderes. Poder de nomear o presidente da Corte Eleitoral, o presidente da Corte Suprema de Justiça no departamento, os juízes...”, alerta Saturnino Pinto, presidente do Comitê Cívico Popular de Santa Cruz, entidade criada em 2006 em contraposição ao Comitê Cívico “oficial”.
Para Pedro Nuni, vice-presidente da Confederação dos Povos Indígenas do Oriente Boliviano (Cidob), os impulsores do referendo autonômico nunca levantaram a bandeira pela autonomia. Para ele, essa é uma estratégia para se contraporem à arremetida que o governo e as organizações sociais haviam realizado com a Assembléia Constituinte. “Eles não se sentem garantidos, incluídos no novo texto constitucional”, afirma.
Já de acordo com Edgar Rivero, presidente da direção Departamental do MAS em Santa Cruz, os dirigentes dos partidos tradicionais que perderam as eleições de 2006 se reagruparam em comitês cívicos e governos departamentais e desde então passaram a desenvolver uma conspiração para desestabilizar o governo Evo.

O racismo como arma

de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia)

Com o microfone na mão, a repórter do canal de TV boliviano PAT pergunta às pessoas em frente a um colégio, segurando pedaços de pau, o que estão fazendo ali. Uma delas, um homem branco de cerca de 40 anos, responde: “Estamos protegendo o local para que ninguém venha roubar as urnas”.
Questionado o que aconteceria se alguém viesse, o homem não hesita: “Ah, aí, coitados dos collas”. A escola está localizada no Plan 3000, um dos bairros mais pobres de Santa Cruz de la Sierra, cujos moradores são indígenas provenientes do ocidente do país, conhecidos justamente pela denominação colla.
Na disputa entre oriente e o ocidente do país, o racismo se exacerba. Algumas pichações em Santa Cruz de la Sierra garantem que “depois de 4 de maio, os collas vão ter que ir embora”.

“Nação Camba”

A discriminação é reforçada pela idéia, difundida nos últimos anos, da chamada Nação Camba, que dividiria a Bolívia em duas partes. “Não existe uma cultura camba. O termo era usado pejorativamente pela oligarquia, para chamar um indígena ou um camponês. Era como dizer que eram lixo. Agora eles reivindicam o termo. Pegaram-no para capitalizar frente às massas”, explica Pedro Nuni, vice-presidente da Confederação dos Povos Indígenas do Oriente Boliviano (Cidob).
“Conheço muito camba. Vivemos em paz, compartilhamos. Agora, nos fazem brigar, nos fazem inimigos”, lamenta Mario Barón, presidente da Associação Copacabana, organização de comerciantes do Mercado Central do Plan 3000, na periferia de Santa Cruz de la Sierra. Da etnia quéchua, o dirigente nasceu em Potosí, nos Andes, mas vive há mais de 40 anos na cidade.

Estatuto racista

Segundo Nuni, os migrantes e filhos de migrantes collas (formados por quéchuas e aymaras) representam hoje mais da metade da população da capital do departamento, onde servem como mão-de-obra barata.
Mesmo assim, o estatuto autonômico crucenho não os reconhece, garantindo direitos apenas aos povos indígenas “oriundos” da região: Chiquitano, Ayoreode, Yuracare-Mojeño, Gwarayo y Guaraní. “O Estatuto é racista”, garante Nuni, que lembra ainda que das mais de 20 nações do departamento, apenas essas cinco serão representadas no Conselho Departamental, que funcionará como o órgão legislativo. (IO)

Resultado deve ser usado como trunfo em negociações

de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia)

A partir da aprovação do estatuto autonômico de Santa Cruz no referendo do dia 4, a disputa política na Bolívia tende a se acirrar ainda mais. O cruceño Jerjes Justiniano, do Partido Socialista boliviano, acredita que o país pode tomar dois caminhos.
No primeiro deles, as autoridades do departamento desconheceriam a institucionalidade do governo central e aplicariam o estatuto, tomando as empresas do Estado. Com o Executivo intervindo para impedir, um ciclo de violência poderia ser gerado. “Isso é o que busca o império, para causar um debilitamento do país e a queda de Evo, por gravidade. Assim, nunca mais um índio voltará à presidência, em nenhum país do continente”.

Negociação

A outra possibilidade é que Santa Cruz sente para negociar com o presidente Evo Morales, com o resultado nas mãos como trunfo para obter maiores concessões na nova Constituição. “Vai ser um processo longo e tenso. Essa negociação pode ser uma arma poderosa que também debilite o governo”, preocupa-se Jerjes.
Pedro Nuni, vice-presidente da Confederação dos Povos Indígenas do Oriente Boliviano (Cidob), concorda. “O que os governadores querem é dizer: ´olha, Evo, aqui temos a votação do referendo, agora me dê o que me corresponde`. Só que presidente vai falar para eles se apegarem à nova Constituição”.
Um dia depois do referendo, o governadores de Beni e Tarija, departamentos que têm consultas autonômicas marcadas, respectivamente, para os dias 1º e 22 de junho, condicionaram a abertura do diálogo ao reconhecimento, por parte do governo, dos resultados em Santa Cruz. (IO)

Na cidade bastião de Evo, ninguém votou

Sue Iamamoto
de San Julián (Bolívia)

Em San Julián, no interior do departamento de Santa Cruz, não houve referendo autonômico. Considerado o bastião crucenho do Movimiento Al Socialismo (MAS), partido do governo, o município é formado principalmente por comunidades de colonos – camponeses migrantes de outras regiões que tiveram pequenas propriedades dotadas pelo Estado.
A mobilização começou no dia 3 pela tarde, com uma concentração de alguns milhares de pessoas em frente ao mercado da cidade. Elas determinaram, em assembléia, o bloqueio da estrada que liga a região à cidade de Santa Cruz de la Sierra e o confisco de qualquer urna encontrada nas comunidades.

Bloqueio

Às 22hs (23hs de Brasília) do mesmo dia, seis pontos de bloqueio foram estabelecidos e mantidos por quase vinte horas, através do cumprimento de turnos por parte da população local. Na manhã do dia 4, data da consulta, algumas urnas foram encontradas sob o cuidado de notários e, na maior parte dos casos, foram entregues aos colonos sem maiores conflitos. Contudo, na comunidade de Los Angeles, os fiscais do referendo resistiram ao confisco, gerando um enfrentamento que deixou um jovem ferido.
“Ganha o estatuto e os collas vão embora”, assim ameaçavam os que cuidavam das urnas, fazendo referáência ao nome que se dá aos indígenas da região ocidental do país. Depois de alguns minutos, as urnas foram abandonadas e rapidamente queimadas pelo colonos em um protesto. Com a calma restabelecida, um dos participantes do confronto desabafou: "eles dizem que a gente é de fora, mas eles são estrangeiros, croatas, filhos de espanhóis. Em contrapartida, nós estamos nestas terras há mais de quinhentos anos”.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Bolívia tropical

Quase duas semanas depois do meu último post, volto para contar a ótima experiência (embora exaustiva, o que justifica a demora em escrever) dos últimos dias. Começando pelo feriado nacional, em 6 de agosto, justamente o dia do minha última publicação aqui...

No feriado, um passeio pela cidade (porque ninguém é de ferro)

6 de agosto eles comemoram a fundação da Bolívia, em 1825. Como já disse num post anterior, o espírito “cívico” dos bolivianos é bem mais forte que o do brasileiro, mesmo porque aqui houve verdadeiras guerras de independência, com muita luta e sangue. Já no Brasil...

Por toda a cidade, tinha casas com a bandeira da Bolívia. E rolava, pelas ruas, desfiles de escolas, polícia, e forças armadas. O duro foi ver uma das “alas” do exército com um estandarte escrito “Beneméritos de Ñancahuazu”. Uma referência à guerra contra a guerrilha do Che, quando ele foi preso e executado, em 67.


Como era feriado, não queria incomodar as fontes com pedidos de entrevistas. Resolvi, então, também tirar uma folga e conhecer a cidade. Fiz um percurso turístico a pé durante quase o dia todo (a vantagem é que a cidade é plana, diferentemente de La Paz).

Vi casas e igrejas coloniais, outras nem tanto, fui no lago local, em uma colina e no Cristo de la Concordia, de onde se tinha uma bela vista de toda a cidade. Ali dá pra perceber bem como, apesar de plana, Cochabamba é toda cercada por altas montanhas.

Rumo ao Chapare

Igual a El Alto, uma grande mística envolve o Chapare. Também conhecida como Trópico de Cochabamba, é uma região a umas 3 horas de Cochabamba. A mística se deve a sua história de resistência.

Desde os anos 80, os plantadores de coca (cocaleros) vêm lutando contra a criminalização da coca, promovida pelos governos bolivianos e seus “assessores”, os estadunidenses. (Até hoje há postos de “checagem” do exército na estradas)

Até o começo do governo Evo, um dos cocaleros que resistiam, várias pessoas foram mortas e presas. Sem falar das mulheres estupradas.

Certamente por isso mesmo, foi lá que o MAS, o partido do Evo, surgiu, em articulação com movimentos sociais de outras partes do país.

No dia 7, quinta-feira, peguei uma van (daquelas que começam a viagem só depois que lotam) pra lá. Depois de um tempo, começa uma paisagem bem familiar pros brasileiros. Uma mata linda, bem densa, parecida com a Mata Atlântica, e rios que cruzam a estrada a toda hora. Quando mais a estrada vai descendo, mais o calor e a umidade vão aumentando.

E o apoio ao MAS e ao Evo também. É algo que eu nunca vi antes. Na beira da estrada, começam a aparecer, penduradas em bambus, que por sua vez estão pendurados nas árvores, bandeiras da Bolívia, a whipala (a bandeira sagrada dos povos indígenas dos Andes) e a do MAS, azul, preta e branca. Algumas vezes estão juntas, outras separadas. Mas estão lá a cada poucos metros.

Claro que provavelmente estavam lá por causa do referendo. Não deve ser algo do ano inteiro, mas mesmo assim impressiona.

Cheguei no fim da tarde, em Villa Tunari, uma das cidades do Chapare (as bandeiras e as cores do MAS seguem nas árvores, nos postes, nas casas, nos comércios e até nas pontes etc).





É engraçado como até a gastronomia muda consideravelmente em relação a La Paz. A começar pelas variedades de peixes, como o pacu e o surubí. Muita mandioca (aqui é mais batata) e carnes “exóticas”, como a de veado.

Sexta e sábado, fiz entrevistas com dirigentes cocaleros e com o diretor da Radio Soberanía, que na época da dura repressão serviu como instrumento pra contar a versão “real” dos fatos pra população da região e até pra outros lugares da Bolívia. A missão era apagar o estigma de que os que resistiam eram narcotraficantes.

Deu pra sentir de perto a força dos cocaleros, sua consciência política, sua disposição para a luta, e a lembrança da violência estatal não como algo traumático, mas principalmente como estímulo para seguir lutando.

Onde o presidente vota

No sábado, em Chipiriri, uma comunidade bem pequena a uns 10 minutos de Villa Tunari, falei com María Eugenia, uma dirigente de 30 anos, que viveu a guerra contra o Estado na adolescência. Quando cheguei, não consegui ligar pra ela (tínhamos nos falado na sexta).

Alguém falou onde era sua casa e fui. Incrível. Era um pequeno barraco de madeira, com tudo meio improvisado, e com a “sala/cozinha” sem porta. Contrariando totalmente a idéia que eu tenho da maioria dos dirigentes de sindicatos. Não que eu imagine que sejam ricos, mas deve dar pra se contar nos dedos os que vivem numa casa tão humilde quanto a dela.

No fim das contas, María Eugenia estava no seu “chaco”, a terrinha onde planta coca e outros produtos. Mas nos falamos mais tarde.

Quando terminou nossa conversa, chegou, de carro, um dos principais dirigentes da região. Me prometeu uma entrevista, mas em Villa Tunari, porque ele estava com pressa. A vantagem é que ganhei uma carona.

No caminho, passamos em uma comunidade chamada Villa 14 de Septiembre.

- É aqui que o presidente vem votar amanhã.
- É mesmo? Que horas, mais ou menos?
- Umas 7 e meia.

Já pensei: “legal, vou vir acompanhar”. Sinceramente, jornalisticamente, era meio irrelevante pra um meio como o Brasil de Fato. Mas já que eu estava lá, valia pela curiosidade e para, quem sabe, tirar uma foto pra ilustrar minha matéria pro jornal.

Pois, no domingo, simplesmente não tinha como eu chegar lá. É que, nas eleições bolivianas, uns dois dias antes, é decretado um tal de “auto de bom governo” (parece até termo zapatista, mas é da Bolívia mesmo). Sem bebida, campanha eleitoral e... transporte!!! Pra impedir que se levem as pessoas pra votar em troca exatamente do voto.

Enfim, tinha visto isso na TV, mas sinceramente não achei que seria cumprido à risca. Mas foi. Resolvi ir a pé, pois achava que era perto. Só que minha impressão da proximidade estava baseada quando fiz o percurso entre Villa 14 de Septiembre e Villa Tunari de carro. Caminhando eram outros quinhentos. Depois de perguntar duas vezes se estava muito longe, e ao receber resposta afirmativa, desisti. Afinal, ia perder o Evo votando e não teria como voltar.

E, por não ter como voltar, fiquei “preso” em Villa Tunari no domingo. Minha idéia era ir pra Cochabamba de tarde, mas não tinha como. Paciência.

O chá de cadeira e o conflito com os professores

No dia 13, quarta-feira, depois de fazer uma entrevista sobre o referendo, outra sobre os cocaleros e escrever a matéria pro Brasil de Fato em Cochabamba, decidi voltar ao Chapare, pra falar com alguma família que cultivasse folha de coca (não havia dado tempo na primeira vez).

Antes de ir, liguei pra María Eugenia pra pedir que ela me levasse. Achei melhor não ir sozinho, já que algumas pessoas da região são, com toda razão, desconfiadas com estrangeiros e/ou jornalistas.

Chegando a Chipiriri, não consegui falar com María Eugenia. Caía na caixa postal direto. Fui na casa dela, e nada. Me informaram que ela estava no “chaco” dela, a mais ou menos uma hora de distância, e que lá o sinal do celular era ruim.

Resultado: esperei umas 4 horas, e nada. Escureceu, voltei a Villa Tunari (já que em Chipiriri não havia onde dormir) e fiquei num albergue por lá.

No dia seguinte, cedo, liguei e consegui falar com ela. Marcamos pra dali a pouco. Fiquei feliz, pensei que poderia voltar cedo pra Cochabamba e chegar já no fim da noite em La Paz (pra enfim descansar e a tempo de ver as Olimpíadas, algo que ainda não tinha existido pra mim).

Chegando no local combinado, havia um grupo de pessoas conversando, meio informalmente, como se esperassem algo. María Eugenia chega e diz que vai ter uma reunião do sindicato, e que ela teria que participar.

Resultado: mais 3 horas esperando, um livro quase concluído e um grande pacote de bolacha – comprado na vendinha de uma chola – pela metade (eu estava sem café da manhã).

Os cocaleros estavam, digamos assim, emputados com os professores rurais, que tinham aderido à greve contra o governo (por causa de uma lei de pensões) dias antes do referendo.

“Eles têm o direito de se manifestarem, mas não logo antes do referendo. Serviram como instrumentos da direita”, reclamou María Eugenia, ao me contar sobre a reunião que acabara de terminar.

Como ela mesmo disse, depois de tanta luta, tanto sofrimento, tantas mortes, os cocaleros não estão dispostos a “pôr a perder o proceso de cambio”.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Cochabamba - primeira matéria

Aqui e aqui, parte da primeira matéria que fiz na cidade para a versão impressa do Brasil de Fato, que começa a circular amanhã.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Cochabamba - primeiras impressões

O que mais me chamou a atenção até agora por aqui foi a agitação política na praça principal.

Cheguei ontem de manhã e, em meio a desfiles das escolas por causa da semana em que se comemora a independência, e a atos contra abusos sexuais, pude ver, no centro da praça, uma concentração de pessoas discutindo o referendo revogatório.

Durante todo o dia de ontem, e até o que vi de hoje, sempre (sem exceção) havia um grupo (ou grupos) de 20 a 30 pessoas escutando atentamente alguém falar sobre a situação do país. Até agora, só ouvi falarem bem do Evo e mal do governador.

No mesmo espaço, funciona o painel informativo de uma organização chamada Red Tinku, que apóia as organizações populares do país. Faz tempo que, diariamente, eles informam a população cochabambina através desses painéis. Sempre que passei por eles, tinha bastante gente lendo.

E, aproveitando o referendo, a Red Tinku também entrou na campanha para revogar o Manfred Reyes Villa, o governador. Instalaram uma mesa com material de propaganda (panfletos, livros, DVDs) e penduraram faixas e cartazes.

Fora isso, ainda vi muito pouco da cidade, só pouco do centro. Mas parece bem agradável, sem falar do clima bem mais ameno que o de La Paz (Cochabamba está 1.100 metros mais para baixo).

domingo, 3 de agosto de 2008

Enfim, Cochabamba

Daqui a algumas horas, pego um ônibus pra Cochabamba, cidade "pertinho" daqui (na Bolívia, 7 horas de busão é pra ir aqui "do lado").

Ainda não a conheço. Dizem que é bonita e de clima agradável (está a 2.500 metros acima do nível do mar). Vamos ver. A idéia é cobrir o referendo revogatório (dia 10) de lá, já que parece (só parece) ser o lugar onde a agitação vai ser maior.

Todos os governadores de oposição já aceitaram participar da consulta, menos o Manfred Reyes Villa, o de Cochabamba. Ele diz que, se for revogado, não sai. Por outro lado, o departamento, principalmente o campo, é de grande apoio ao Evo, e está fazendo forte campanha para expulsar o Manfred do governo.

Vou ver se aproveito e faço uma matéria sobre os cocaleros. É daí que surgiu politicamente o Evo e é aí onde ele ainda mantém uma fortíssima base popular.

É isso. Tentarei mandar notícias de lá.

Retornando...

De volta, depois de uma breve viagem e da desativação temporária (!!!) da minha conta no google (o blogspot é do google, aliás, o que não é?), posto abaixo uma entrevista sobre a nova Constituição boliviana, que espera ser aprovada em referendo que ainda não foi marcado.

Uma novidade boa (pelo menos pra mim) é que, finalmente, com muito atraso, comprei uma boa máquina fotográfica, com a qual espero registrar (e compartilhar) meus últimos dois meses neste país encantador.

Brasil de Fato, edição 265 (de 27 de março a 2 de abril de 2008)

Uma Carta Magna de transição

Para especialista boliviana, a nova Constituição do país ainda é liberal, mas garante a inclusão dos povos antes marginalizados

Igor Ojeda
de La Paz (Bolívia)

“Esse novo texto constitucional não é totalmente revolucionário”. A avaliação é de Lucila Choque, investigadora da Universidade Pública de El Alto e da Representação Presidencial para a Assembléia Constituinte (Repac). Para ela, a nova Constituição, aprovada em dezembro, é de transição: ainda é liberal, já que “estamos aceitando ser governados por leis, e as leis foram criadas precisamente pelo Estado como instrumento de uma classe dominante”.
Mesmo assim, ela destaca inúmeros avanços que a Carta Magna pode trazer ao país se for aprovada em referendo – cuja realização permanece indefinida, devido à disputa entre governo e oposição –, principalmente na questão dos direitos dos povos indígenas. Ainda segundo Choque, em entrevista ao Brasil de Fato, o novo texto prevê as autonomias departamentais (principal reivindicação da oposição), mas com uma diferença fundamental em relação às demandas regionais: “o único soberano, que tem direito sobre os recursos naturais, é o Estado”.

Brasil de Fato – Raúl Prada, constituinte do Movimiento Al Socialismo (MAS) e ligado ao vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, disse uma vez que a nova Constituição ainda é liberal; é uma Constituição de “transição”, que consolida o caminho para transformações mais profundas no futuro. A senhora concorda com essa afirmação?

Lucila Choque – Sim. Esse novo texto constitucional não é totalmente revolucionário. É liberal porque ainda estamos aceitando ser governados por leis, e as leis foram criadas precisamente pelo Estado como instrumento de uma classe dominante. Quando Raúl Prada diz “liberal”, refere-se a 1825, quando o país foi fundado, como uma república. Os latino-americanos estavam copiando as fundações na Europa dos Estados-Nações, cujas bases eram hegemonistas, ou seja, uma só língua, um só território, uma uniformidade. Adotamos a democracia, mas uma democracia liberal, representativa. Agora, a brecha se abriu. Se a Carta Magna de 1826 foi realizada por uma elite, a casta crioula, agora, essas revoltas que aconteceram nos últimos anos – posso dizer nos últimos 500 anos – permitiram que esses povos que não gozavam de seus direitos agora participem. Então, não é só liberal. É também comunitária. No novo texto constitucional, já não é dito que a Bolívia é uma república. E sim, que é um Estado. O que se entende por Estado? É o povo. Ou seja, é a maioria marginalizada, oprimida, que está participando. Os outros já estavam. Agora se soma. No entanto, nossos povos, em seu imaginário, não pretendem fundar um socialismo ou comunismo, porque essas são propostas modernistas, e as de nossos povos são anti-modernistas. A correlação de forças atual não permite uma mudança de sistema, e sim o que se está tentando fazer, que os direitos dos povos indígenas se incluam na nova Constituição. Nela, por exemplo, há os direitos fundamentais e há os direitos fundamentalíssimos. Quais são? O direito à vida, à cidadania desde o nascimento, não apenas na hora do voto, o direito à educação, à saúde, à moradia digna e, principalmente, à alimentação. Ou seja, o Estado deve ter uma política alimentar. Essas coisas não existem na Constituição liberal vigente.
Mas, não é uma Constituição indigenista, como diz equivocadamente a direita. É liberal. Porque, no primeiro artigo, diz que a Bolívia é um Estado Social de Direito. Ou seja, está aceitando leis, e leis com direitos. Os que estavam propostos como direitos humanos desde a Europa, e não como nossas necessidades. Na visão anti-modernista de sociedade de nossos povos, não existe o conceito de direito, e sim de dever. Essa visão anti-modernista não tem nada a ver com aversão à tecnologia. E sim que a natureza não é vista como matéria-prima, mas como uma mãe. Deve ser cuidada, e não utilizada como mercadoria para benefício de poucos.

Quais são os principais avanços na nova Constituição?

Em primeiro lugar, o tipo de Estado que se quer adotar. Na Constituição vigente, herdamos um Estado colonial, que buscava a fundamentação da ideologia modernista, que destrói a natureza, e por meio disso, os povos. O maior aporte dessa nova Constituição é no tema de direitos. Está se constitucionalizando, por exemplo, os direitos das crianças e dos adolescentes. Dos idosos. Direito ao trabalho e ao emprego. Quase toda a população está presente com seus direitos. No entanto, porque falamos que ainda é um texto de transição? Porque não está exatamente como os povos queriam. Porque houve uma disputa no cenário da Assembléia Constituinte. Então, os governistas cederam em algumas coisas para garantirem tais direitos. O tema da educação também vai mudar. Pretende-se que o Estado garanta que uma criança, ao nascer, chegue, gratuitamente, pelo menos ao bacharelado.

Quais os foram os retrocessos principais, em relação à proposta popular, no contexto dessa disputa que aconteceu na Assembléia Constituinte?

O novo texto Constitucional é um produto tanto da direita quanto dos povos que estavam participando. A direita trabalhou para que a Constituição vigente, criada por seus pais ou avôs, não se diluísse. Por isso, houve essa disputa. Não aceitam que aqui haja os direitos desses povos, e sim que se mantenha o Estado anterior. Na Constituição vigente, é dito que a Bolívia é um país multiétnico. Os povos eram vistos como etnias, ou seja, como tribos, em estado de desaparecimento. Agora, são considerados nação. Isso eles não querem.

De que maneira as reivindicações da maioria indígenas são atendidas? Quais artigos garantem a inclusão dessa maioria?

Desde o artigo 1, que diz que a Bolívia é um Estado Plurinacional Comunitário. O artigo 5 diz que o idioma oficial não é somente o castelhano, e sim também os idiomas das nações e povos indígenas originários. Além disso, são todos citados no texto. Não se diz simplesmente “as etnias” [A Bolívia possui 36 nações originárias]. No capítulo de direitos, por exemplo, nos civis e políticos, o artigo 21 diz que os bolivianos e as bolivianas têm direito à auto-identificação cultural. No capítulo 4, sobre os direitos das nações e povos indígenas originários e camponeses, há muitos artigos que foram tirados da Declaração de Direitos dos Povos Indígenas da ONU [lançada em setembro de 2007].

Sob quais preceitos a autonomia indígena está colocada?

O único proprietário dos recursos naturais é o Estado. Com a autonomia, os povos serão consultados sobre a gestão desses recursos e, além disso, serão beneficiados de uma maneira mais direta, não mais com esse rodeio burocrático, em que o Estado outorga primeiro para os governos departamentais, depois para os municípios e, se sobrar algo, para os povos. O povoado onde se encontre petróleo ou gás, por exemplo, vai ser consultado se vende ou não, senão, ele vai ser prejudicado. Se o Estado decide, junto com eles, vender, produzir, exportar ou industrializar, essa sociedade vai se beneficiar primeiro.
A autonomia contempla também a maneira de autogovernar-se, as formas como se elege. A sociedade boliviana não é homogênea. Em alguns lugares, os representantes são eleitos por meio de assembléias, e não pelo voto. Em outros, há uma rotação de pessoas. Isso tudo existe, mas não está formalizado na Constituição vigente.

Quais são as diferenças entre a autonomia departamental proposta na Constituição e aquela dos estatutos autonômicos da oposição?

Está bem claro que os estatutos autonômicos querem dividir a Bolívia em duas. Pretendem fazer suas próprias leis, que beneficiem somente os latifundiários, em detrimento dos povos indígenas que estão na região. Pretendem adotar um sistema de governo centralista. Porque é uma elite que se apoderou das decisões. Por trás disso, estão as transnacionais, a embaixada estadunidense, empresas privadas, que sempre usaram os recursos naturais da Bolívia como matéria-prima, como mercadoria, para encher seus bolsos. Porque, mais que tudo, essa nova Constituição irá prejudicar os latifundiários.

E no novo texto constitucional, como está colocada a questão da autonomia departamental?

Propõe que os departamentos tenham certas competências, inclusive legislativas, mas com o reconhecimento de que o único soberano, que tem direito sobre os recursos naturais, é o Estado [os estatutos autonômicos pretendem dar aos departamentos o poder sobre os recursos em seu território]. E, como dissemos antes, o Estado é o povo. Segue-se pensando na unidade, na integração.

Em relação ao modelo econômico, a senhora acredita que a nova Constituição caminha no sentido de desmontar o neoliberalismo no país?

Sim.

Em que pontos?

Por exemplo, quando se propõe que os recursos não sejam depredados de maneira perversa como faz o capitalismo, e sim cuidando do meio ambiente. No entanto, isso ainda é letra morta. O que se tem que fazer é políticas econômicas novas que cuidem do meio ambiente e dos povos. Está dentro do conceito de modelo de desenvolvimento sustentável.

Então, na medida que o Estado gesta o desenvolvimento, é uma forma de desmonte do neoliberalismo?

Acredito que sim. Não agora. Seguimos no modelo de desenvolvimento neoliberal. Continuamos com o saque. Porque sequer o governo Evo Morales está em um novo tipo de Estado. Está administrando esse Estado. Agora, a partir disso, certamente vai ter um trabalho muito forte para mudar isso.

E em relação ao latifúndio? O texto fala de um limite à extensão das terras, que será de cinco mil ou dez mil hectares [a população deverá decidir o tamanho máximo em um referendo]. Mas, ao mesmo tempo, o texto fala em função econômica e social. Não poderá existir, de nenhuma maneira, propriedades maiores que cinco mil ou dez mil hectares ou estas serão respeitadas quando cumprirem tal função?

Lamentavelmente, esses latifundiários não são verdadeiros trabalhadores da terra. Quando se diz que se deve cumprir uma função econômica social, isso quer dizer que os povos indígenas camponeses não podem estar isolados e abandonados. Não se pode deixar morrer de fome um povo quando há terra, em que este poderia trabalhá-la. Esses povos estão vivendo, na verdade, como escravos. Porque nunca tiveram título, e não têm outra alternativa que trabalhar nesses latifúndios. No entanto, se houver propriedades que excedam os dez mil hectares, e estiverem trabalhando nela, não vão tirar essas terras do proprietário. Porque realmente lhes estão dando uma função econômica e social.

QUEM É

Investigadora e docente da Universidade Pública de El Alto (UPEA), Lucila Choque trabalha para a Representação Presidencial para a Assembléia Constituinte (Repac), entidade vinculada ao Executivo que foi criada com o objetivo de apoiar o processo Constituinte e pós-Constituinte, estabelecendo a relação entre a sociedade civil e a Assembléia. É autora do livro “La Guerra del Gas Contada por Mujeres”.