segunda-feira, 31 de março de 2008

De volta

Já tinha ouvido, várias vezes, comentários de pessoas que tinham viajado ou morado um tempo na Europa ou nos EUA dizendo que, quando voltaram ao Brasil, ficaram um pouco impactadas. Com a pobreza, as favelas, o caos urbano etc.

Senti um pouquinho disso agora. Fiquei em Buenos Aires por 8 dias, e confesso que ontem e hoje, de volta a La Paz, tive uma sensação talvez não de impacto, de choque, mas de um certo estranhamento. Como se não fosse a cidade na qual vivo há quase seis meses, à qual me adaptei muito bem e onde gosto bastante de morar.

Mas foi isso. Vi o caos do trânsito, as infinitas barraquinhas de rua e a pobreza de La Paz quase como se tivesse chegando pela primeira vez. Claro que Buenos Aires não é nenhum primeiro mundo. Mas o contraste entre as duas cidades é marcante.

Antes, só tinha saído daqui para outros lugares na Bolívia e para o Peru. Daí a diferença.

Mas no pasa nada. Sei que esta semana mesmo estarei plenamente readaptado e pronto para continuar a viver as experiências incríveis (na vida e na profissão) que vivi até agora. A ver.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Os falsos heróis

De vez em quando não tenho nada a dizer. Aí, o remédio é ir publicando as matérias que fiz por aqui. A que vem abaixo é sobre um momento chave da história recente da Bolívia. A reivindicação da capitalidade pra Sucre, cidade onde estava instalada a Assembléia Constituinte – por causa dessa demanda, ela ficou travada por meses.

Pessoalmente, acho que a questão da capitalidade foi a melhor e mais eficiente cartada da direita boliviana nos últimos anos (possivelmente, a mais eficiente no mundo todo). Foi assim: Em agosto de 2006, a Constituinte foi instalada. A oposição tentou travá-la como pôde. Até que lançam essa de devolver os poderes Executivo e Legislativo para Sucre. Na mosca.

Quando os governistas decidiram excluir esse tema dos debates, em agosto do ano passado, começou a revolta na cidade, puxada por estudantes universitários de “esquerda”. O tema uniu, de uma forma impressionante, a cidade (inclusive as classes populares) contra o MAS, o Evo, La Paz e os indígenas. O regionalismo e o racismo chegaram ao extremo.

Quando o MAS resolve reinstalar a Assembléia de qualquer jeito, estoura uma rebelião em Sucre. Eu estava lá. Parecia guerra. Barricadas, pneus queimados, fumaça negra cobrindo quase todo o centro. Os manifestantes achavam realmente estar fazendo uma revolução. Não percebiam que estavam servindo como fantoches à oligarquia que sempre mandou no país.

Três pessoas morreram. Até hoje não se sabe direito quem os matou. A perícia deu que as balas não vieram de armas usadas pela polícia. Mas isso não importava. Na hora, para a imprensa e autoridades locais, o governo boliviano virou a pior das ditaduras, e os falecidos, mártires da democracia. Nojento.

Resultado. Tal conflito ainda incide decisivamente no impasse atual. A Constituição foi aprovada, mas é considerada ilegal pela oposição, por causa dos enfrentamentos em Sucre. Isso está servindo de excelente pretexto para a direita não aceitar as mudanças e pôr em dúvida o caráter democrático do governo Evo. Ao mesmo tempo, o regionalismo e o racismo acentuado inviabilizam a unidade do país.

É exatamente o que eles querem. Separar a Bolívia em duas. Do lado deles, a Bolívia rica em gás e latifúndio. Do outro lado... bem, que se fodam do outro lado.

Brasil de Fato, edição 247 (de 22 a 28 de novembro de 2007)

Uma cidade que quer o retorno do protagonismo

Há meses, não há sessão na Assembléia Constituinte devido aos protestos de Sucre pela capitalidade; para setores da esquerda, tema é jogada da direita

Igor Ojeda
de Sucre (Bolívia)

“Nenhum passo atrás!” grita a população de Sucre. E, de fato, nada indica que irão retroceder. O que exigem não é pouco: que a Cidade Branca, como é conhecida, pela cor de suas construções históricas, volte a ser a capital da Bolívia, condição que lhe escapou em uma guerra civil ocorrida há mais de cem anos.
No centro da cidade, para todos os lados para o qual se olha, percebe-se a reivindicação pelo retorno dos poderes Executivo e Legislativo. Pichações, adesivos nos carros, cartazes na janelas de farmácias, cafés, restaurantes, cabeleireiros, faixas em prédios de órgãos públicos, escolas, sindicatos... As mensagens, quase todas acompanhadas pela bandeira de Sucre, uma cruz vermelha sobre fundo branco, demonstram a firmeza de posição.
“Sucre resiste! Nenhum passo atrás”. “A sede, sim, se move!”. “Capitalidade plena para Sucre!”, Bolívia, sim, quer a capitalidade para Sucre”. Toda a cidade parece estar unida em torno de uma mesma luta.
Luta que é liderada, desde o início, por uma entidade criada especialmente para tal: o Comitê Interinstitucional de Chuquisaca, encabeçado pela prefeita de Sucre, Aydeé Nava, pelo presidente do Comitê Cívico de Chuquisaca, Jhon Cava e, sobretudo, por Jaime Barrón, seu presidente.

Desenvolvimento

Barrón, segundo o qual o Comitê Interinstitucional é composto pelas “65 instituições mais representativas” do departamento, é reitor da principal universidade local, a San Francisco Xavier, e grande líder da demanda sucrense pela capitalidade – as reuniões do Comitê, inclusive, ocorrem nas dependências da Universidade.
“É uma reivindicação para Sucre, que tem caráter nacional e não só regional, ao representar, a partir de sua aplicação, uma opção de desenvolvimento, superando assim a marginalização que esta cidade sofre por causa dos governos de turno”, diz. A favor de sua imagem frente aos habitantes de Chuquisaca, conta o fato de não ser político e não pertencer a nenhum partido.
Dessa forma, nega qualquer vinculação da demanda pelo retorno de Sucre à condição de capital boliviana com uma jogada da direita, principalmente da chamada media luna (meia lua, alusão ao formato geográfico conformado pelos departamentos oposicionistas de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija), para travar a Assembléia Contituinte – há mais de três meses, quando o tema foi excluído dos debates, o foro não sessiona, devido aos protestos na cidade.

Oposição

“Chuquisaca tem uma postura inteiramente regional e cívica. Nao se deve confundir o apoio da meia luna à democracia e à legalidade com um discurso interessado do governo. O presidente do Comitê é apolítico”. Da mesma maneira, nega relações diretas com o Comitê Cívico de Santa Cruz, hoje uma das principais forças da oposição.
No entanto, seu posicionamento em relação ao governo do MAS e de Evo Morales é clara. Diz que o Comitê é contra diversas medidas tomadas pelo atual presidente, e cita como exemplo uma das mais recentes: o corte dos recursos petrolíferos destinados aos departamentos para a ampliação do valor e da abrangência de uma bolsa concedida aos idosos do país. Hoje, o tema é uma das principais bandeiras da oposição boliviana, especialmente da media luna e dos departamentos de Cochabamba e Chuquisaca, exatamente os mesmos que defendem a capitalidade para Sucre.
Barrón está certo de que “todos os habitantes da cidade e do departamento” apóiam a demanda. A vigília realizada nos dias 13 e 14 em torno do Teatro Gran Mariscal é uma pequena amostra disso. Embora a grande maioria dos participantes fosse claramente de estudantes, podia-se ver de tudo. Crianças, idosos, brancos, indígenas, diferentes classes sociais.

Massacre

No dia seguinte, durante o auge da manifestação, cerca de 2 mil pessoas chegaram a se concentrar no local, inclusive participantes de marchas de trabalhadores do Mercado Central e de comerciantes, que também protestavam contra a alta do preço da cesta básica.
Seus argumentos centrais são dois. O primeiro diz que Sucre é a capital histórica da Bolívia, condição que lhe foi roubada por La Paz após a chamada Guerra Federal ocorrida no fim do século XIX. Conflito em que, frisam constantemente, os pacenhos massacraram os chuquisaquenhos.
O segundo é o da legalidade. “[A presidente da Constituinte], Silvia Lazarte, junto com La Paz, anulou este tema da Assembléia com a resolução de 15 de agosto. Isso é ilegal, e por isso estamos aqui, queremos legalidade. Queremos que respeitem o regulamento que aprovamos em sete meses, e esse regulamento diz que não se pode apagar nenhum tema sem debater”, protesta Sabina Cuellar Leaños, constituinte de Chuquisaca e que participava da vigília.
Detalhe: ela pertence ao Movimiento Al Socialismo (MAS), partido de Lazarte e do presidente Evo Morales, e já foi dirigente camponesa. Pela capitalidade, chegou a ficar oito dias em greve de fome. “A capital da República boliviana nasceu aqui em Chuquisaca. Os pacenhos levaram-na à força, matando os chuquisaquenhos. Estamos reclamando nossos direitos, não estamos pedindo esmola”, justifica. Intencionalmente ou não, o tema definitivamente exacerbou a rivalidade regional entre sucrenses e La Paz.

Palavras de ordem

A noite do dia 13 avança, e os manifestantes nao dão sinais de que pretendem ir embora. Os estudantes, o grosso da vigília, batucam, cantam, soltam rojões. Nas paredes do teatro, diversas faixas penduradas, principalmente das muitas faculdades da Universidad San Francisco Xavier. Quase todos os carros que passam buzinam em apoio.
As palavras de ordem são duras: “Isso é Sucre, porra! E Sucre se respeita, porra!”. Ou então: “Evo, Evo, cabrón. Você é um filho da puta, da puta mãe que te pariu!”. Ou ainda: “Vamos ver, vamos ver, quem leva a batuta. O povo unido? Ou o governo filho da puta?”.
Em nome desses estudantes, quem lidera a luta pela capitalidade e participa ativamente das reuniões do Comitê Interinstitucional é a Federação Universitária Local (FUL), principal entidade estudantil da universidade e, conseqüentemente, de Sucre e de Chuquisaca.
Seu executivo, Álvaro Ríos, também justifica a exigência da volta da condição de capital à cidade com o fato de La Paz ter massacrado os sucrenses na Guerra Federal do fim do século XIX. “Historicamente, legitimamente, a sede dos poderes tem que voltar novamente à sua cidade, que sempre foi Sucre”, diz.

“MAS reformista”

Segundo ele, a quase totalidade dos universitários apóia a demanda. Em relação à FUL, afirma que antes de tudo é uma organização progressista, formada por estudantes de diversas tendências de esquerda e vinculados à luta popular.
“Historicamente, a universidade pública na Bolívia, e a Universidad San Francisco Xavier sempre tem estado ligado aos setores populares. Há um pacto histórico com os camponeses e com a classe operária que se fez há muito tempo”, explica.
Mais: diz que os universitários consideram o MAS um movimento reformista. “É administrador da pobreza, continuador das políticas neoliberais, porque na realidade não solucionou o problema da pobreza, o de terras para os camponeses. Existem muitos problemas de fundo que ainda não foram resolvidos”.
Sobre a acusação de setores estudantis que apóiam a Constituinte de que a FUL é assessorada por jovens de Santa Cruz e paga para defender a capitalidade, Ríos é enfático: “Isso é totalmente falso”. E contra-ataca: “Existem alguns dirigentes de tendências trotskistas que estão contra tudo isso. Sempre foram caracterizados por serem muitos sectários, muito dogmáticos”, critica.

Para a esquerda, capitalidade é jogada da direita

de Sucre (Bolívia)

Ainda que a primeira impressão é de uma cidade totalmente unida em torno do tema da capitalidade, Sucre está longe da unanimidade. Muitas forças de esquerda e movimentos sociais locais ligados ao MAS, apesar de defenderem o retorno dos poderes Executivo e Legislativo, são veementes em priorizar o sucesso da Assembléia Constituinte.
Em menor número, é verdade, nota-se pela cidade pichações principalmente contra a Federação Universitária Local (FUL), principal movimento estudantil de Sucre e de Chuquisaca, que mergulhou de cabeça na briga pela capitalidade.
“FUL oportunista”. “FUL + Media Luna = Ditadura”, “FUL vendida!”, “Querem legalidade os que sempre agiram na ilegalidade”, lê-se nos muros da sede da entidade e seu entorno.
“Alguns grupos minoritários estão querendo manipular a população. Geram-se correntes de idéias, de pensamentos, para que toda a população siga nessa mesma linha”, alerta Ruben Darío Egüez Gonzalez, da juventude do MAS de Chuquisaca e do Coletivo Che Guevara, uma das 16 entidades de jovens que assinam um manifesto contra o Comitê Interinstitucional e a favor da Constituinte, divulgado no dia 12.

Divisão

Segundo ele, os interesses dos que encabeçam a luta pela capitalidade são políticos. “Pretendem ser prefeitos, governadores, deputados, senadores... Este é o afã deles. Buscar uma imagem política. Mas não estão vendo o interesse coletivo”, critica.
Nicolás Limón, segundo vice-presidente da direção departamental do MAS de Chuquisaca, denuncia que a reivindicação de que Sucre volte a ser capital da Bolívia está sendo usada pela direita. “Os grupos de poder, como a mal chamada media luna, têm utilizado o tema para fazer com que pacenhos e chuquisaquenhos, quéchuas e aymaras, os pobres, no fim das contas, se enfrentem”, lamenta.
“É uma jogada, porque as profundas mudanças que nosso governo está fazendo na Bolívia está fazendo doer até os ossos desses oligarcas que até agora tiveram o poder político, econômico, social. E as mudanças que se está fazendo, necessária e obrigatoriamente têm que se legalizar, que se legitimizar, com a Constituinte”, opina Damián Condori, dirigente da Federação Única de Trabalhadores de Povos Originários de Chuquisaca (FUTPOCH), que recentemente rompeu com o Comitê Interinstitucional: “Fizeram queda-de-braço com a gente estrategicamente para nos demobilizar”.

Chantagens

Em relação à Universidad San Francisco Xavier, que lidera as manifestações, Condori diz que seu reitor, Jaime Barrón, também presidente do Comitê, pertence à mesma oligarquia que não quer transformações para o país. Além disso, segundo ele, são comandados por Santa Cruz.
“A FUL é paga pelo Comitê Cívico de Santa Cruz, tem interesses políticos”, concorda Gonzalez, do Coletivo Che Guevara, que denuncia que há jovens infiltrados da União Juvenil Crucenista, também de Santa Cruz, de tendência fascista.
Além disso, revela que professores estão chantageando os estudantes com as notas. Nicolás Limón, do MAS, relata: “Há amigos, moradores da minha comunidade que estão na universidade que denunciam que se os alunos não vão às marchas, suas notas são abaixadas”.
Chatangem que também é feita, segundo Limón, contra os setores populares de Sucre. “Há companheiros que estão denunciando que existem ameaças por parte da prefeita nos bairros mais marginais. Se não apóiam a capitalidade, não vão fazer projetos, obras no local”, afirma.
Para o dirigente do MAS, mais além dos interesses regionais, deve estar a nova Constituição. Por isso, explica que as bases dos movimentos sociais estão dizendo que, se possível, a irão defender com sangue: “Porque, para nós, a Assembléia Constituinte é de vida ou morte”. (IO)

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ps: Hoje parto para uma semana de Buenos Aires com a Tati. Então, provavelmente (só provavelmente), fico uma semana sem postar.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Paixão antiga

Em Oruro, sempre torci para o San José. Desde criancinha.

quarta-feira, 19 de março de 2008

A guerreira El Alto

É muito forte a mística que envolve El Alto, a cidade vizinha de La Paz. De imensa maioria aymara, o local está inevitavelmente associado a grandes e radicais lutas populares. Há duas semanas, fez 23 anos.

Devo ter passado ou ido a El Alto umas 20, 30 vezes. A pobreza impressiona, principalmente à medida que você vai se afastando para as zonas mais periféricas (embora toda a cidade pareça periferia; não existem bairros de classe média ou alta).

Mas, mesmo assim (melhor: por isso mesmo), a incrível força de luta de sua população é, certamente, sua característica que mais se destaca. A mais famosa dessas lutas foi a chamada Guerra do Gás, em 2003. Dezenas de pessoas morreram, o que mostra, além da brutalidade da repressão, que os manifestantes não estavam para brincadeira.

Tanto não estavam que foram vitoriosos. O presidente de então renunciou e, em 2006, foi decretada a chamada nacionalização dos hidrocarbonetos, embora muitos dizem que ela ainda não ocorreu na prática.

Abaixo, matéria que fiz por ocasião dos quatro anos da Guerra do Gás:

Brasil de Fato, edição 244 (de 1º a 7 de novembro de 2007)

Quatro anos depois da Guerra do Gás, a injustiça prevalece

Familiares de vítimas da repressão do governo contra mobilizações em massa no país em setembro e outubro de 2003 pedem a prisão dos responsáveis

Igor Ojeda
de El Alto e La Paz (Bolívia)

Dezenove de setembro de 2003 foi o dia em que a população de El Alto resolveu dar um basta. Acompanhando setores sociais, organizações indígenas e movimentos políticos de outras partes da Bolívia, o povo da cidade vizinha de La Paz decidiu, a partir dessa data, iniciar uma ampla paralisação.
O protesto nacional mobilizou, nesse dia, centenas de milhares de pessoas nas capitais, povoados e comunidades do país. Todos contra um projeto do governo do então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada de exportar gás natural para os EUA via um porto do Chile – responsável pelo fato da Bolívia não possuir saída para o mar.
A certa altura, a exigência dos manifestantes – que tinha, entre seus líderes, Evo Morales –, passou a ir além: em vez de exportado, o gás boliviano deveria ser industrializado no país e ser usado no desenvolvimento de seu povo.
Assim, as mobilizações invadiram outubro. Em El Alto, ganharam seu caráter mais radical. Bloqueios, paralisações, greves. Era a Guerra do Gás. Que o governo transformou em Outubro Negro. Pois a ordem era a de atirar contra a multidão. E a polícia e o exército a obedeceram.

Cansaço

Uma das incontáveis balas disparadas entrou pelas costas e saiu pelo abdômen de Constantino Quispe Mamani, de, então, 43 anos. Os ferimentos causados foram gravíssimos.
Seu irmão, Juan Patrício Quispe Mamani, lembra o porquê da sublevação de El Alto. A população da cidade estava cansada de viver sem água, luz, os serviços mais básicos. A entrega do gás foi o estopim.
“Por isso, aconteceram as paralisações. Não estávamos trabalhando, ficamos em casa vendo o que acontecia, saindo para falar com os vizinhos, dizendo que não podíamos permitir que o gás simplesmente se fosse, que deveríamos exigir que o governo retrocedesse em suas ações”.
Em 12 de outubro, alguns meios de comunicação noticiam que as casas da região estavam sendo destruídas pela população em fúria. Por volta das 11 da manhã, Constantino, preocupado com sua residência, sai da casa de seu irmão para verificar a veracidade das informações. Era mentira.

Massacre

“Por volta das 7 da noite, soubemos que meu irmão tinha sido ferido e que estava no hospital. Suponho que nesse lapso de tempo ele esteve com seus amigos em um bloqueio que faziam na ponte do Río Seco. E lá o atingiram”, conta Juan Patrício. No hospital, pôde ver que as feridas eram muito graves.
Constantino seria levado para o Hospital Geral de La Paz, pois precisava ser operado. Porém, com o hospital cheio e as ambulâncias escassas, teve que aguardar por três horas para ser removido. Em La Paz, faleceu depois de três dias.
Nenhum dia foi pior que o 12 de outubro de 2003. Data em que se “comemorava” os 511 anos do “descobrimento” da América por Cristóvão Colombo. Na El Alto militarizada, 26 pessoas foram assassinadas e mais de cem ficaram feridas.
“Meu irmão foi um dos primeiros que chegou ao hospital. Depois vieram dezenas de feridos, de mortos. Não cabiam todos, era um hospital pequeno, muitos feridos tiveram que ficar na parte de fora”, recorda Juan Patricio.
Outra das 26 vítimas fatais do massacre levado a cabo pelas forças de segurança do governo de Gonzalo Sánchez de Lozada em 12 de outubro foi Marcelino Carvajal Lucero, de 59 anos que, mesmo aposentado, continuava trabalhando como pedreiro.

Dezenas de mortos

“Meu marido não estava sequer na rua. Estava dentro de casa, no quarto, onde dormíamos. Foi lá que o mataram. A bala entrou pela janela”, lamenta, inconformada, Juana Valencia de Carvajal, de 58 anos. Com Marcelino, tinha seis filhos. Hoje, possui uma pequena loja, mas ressalta que a idade já está pesando. “O trabalho não é fácil pra nenhum de nós”.
Juana quer que Gonzalo Sánchez de Lozada e Carlos Sánchez Berzaín, então ministro da Defesa, foragidos em território estadunidense, voltem ao país, para “mostrar suas caras”.
“Se pudéssemos ir aos EUA, iríamos, pra saber que motivos eles tinham para tirar a vida de nossos esposos. Por que nós temos que sofrer? Viúvas, tendo que ser pais e mães para nossos filhos? Há várias crianças que nasceram logo depois e não conhecem o carinho de seus pais”, desabafa.
No dia 13 de outubro, Lozada, pressionado, decide suspender a exportação do gás. Mas já era tarde demais. Agora, a população boliviana queria sua renúncia. No total, de 19 de setembro a 17 de outubro, quando o presidente entregou o cargo e fugiu do país, mais de 60 pessoas morreram e mais de 400 ficaram feridas. Oficialmente. Para alguns, superou-se os 80 mortos. A imensa maioria, indígenas aymaras.

Filhos

“O pior é entender que o que o governo fez foi usar os filhos para matarem seus pais. Porque os que prestam serviço militar são nossos filhos, são nossos irmãos. Puseram-nos numa posição muito desumana. Por isso, não podemos permitir a impunidade, não podemos nos calar”, protesta Juan Patrício.
Hoje, ele é presidente da Associação de Familiares Caídos pela Defesa do Gás (Asofac-DG), entidade cujo único objetivo é, segundo afirma, buscar que se faça justiça. Justiça, no caso, significa botar na cadeia os responsáveis pelo massacre.
Desde então, a luta tem sido dura. Ninguém foi preso, nenhum julgamento foi iniciado. Para Juan Patrício, nada acontece porque os culpados são “respaldados pelo dinheiro, pela influência política, por altos funcionários que permitem a impunidade e a injustiça. Isso não deveria existir, mas existe, é evidente. Esses quatros anos nos dizem muito”.
A Asofac-DG conta, atualmente, com 64 membros. Parentes de vítimas fatais do Outubro Negro, além de quatro pessoas que tiveram que sofrer amputações em decorrência de ferimentos à bala.

Perna amputada

Uma delas é Dionísio Cáceres, de 30 anos. Segundo conta, ele não tinha nenhuma relação com o protesto que ocorria no momento em El Alto. “Estava do outro lado, indo pra minha casa, quando um tiro atingiu meu joelho”. No hospital, perdeu muito sangue e, até, a memória. Ficou internado por um mês e meio. Teve que amputar a perna, sobre o joelho esquerdo, porque o sangue já não circulava por ela.
Antes do incidente, era vendedor, e costumava ir a outras cidades, como La Paz e Santa Cruz de la Sierra. “Agora, não tenho capacidade de viajar, é muito difícil lidar com a prótese, ela me machuca muito”, lamenta Dionísio, que deseja ver os responsáveis na prisão. “Porque foi um massacre. Morreram crianças, idosos. Até agora não tivemos nenhuma resposta”.
Um outro tipo de resposta chegou, sim, dois anos e meio depois, em 1º de maio de 2006. O novo presidente boliviano, o aymara Evo Morales, decretou a nacionalização das reservas de gás da Bolívia. E os mais de 60 assassinados tornaram-se heróis.

Justiça começa a cercar ex-presidente

Corte Suprema de Justiça da Bolívia acusa formalmente a Sánchez de Lozada e mais 16 pessoas; nos EUA, familiares de vítimas apresentam demanda civil

de El Alto e La Paz (Bolívia)

No dia 17 de outubro, exatamente quatro anos após o fim da Guerra do Gás e a renúncia do então presidente boliviano, Gonzalo Sánchez de Lozada, e sua posterior fuga para os EUA, a Corte Suprema de Justiça da Bolívia abriu caminho para a reparação moral aos feridos e familiares de mortos pela repressão estatal.
Na ocasião, o Promotor-Geral da República, Mario Uribe, anunciou a formalização da acusação contra Lozada e mais 16 pessoas, entre ministros da época e oficiais das Forças Armadas. Eles são acusados pelos crimes de genocídio, homicídio, lesões graves e leves, delitos contra a liberdade de imprensa, invasão de domicílio, humilhação e torturas, entre outros.
A data do julgamento oral ainda não está marcada. Nele, cerca de 2.500 pessoas testemunharão, entre eles os atuais presidente e vice da Bolívia, Evo Morales e Álvaro García Linera.
“É uma demanda iniciada há muitos anos. Na verdade, a primeira denúncia foi apresentada em 22 de outubro de 2003, poucos dias depois da fuga de Gonzalo Sánchez de Lozada”, explica Rogelio Mayta, advogado das vítimas do Outubro Negro.

Extradição

Segundo ele, desde então, foi posto em marcha um longo processo investigativo, que só não culminou numa sentença ainda pelo fato dos acusados “continuarem a ter muito poder, mesmo fora do governo”.
Mesmo assim, aconteceram algumas vitórias, como a autorização do julgamento de Lozada pelo Congresso nacional, em outubro de 2004. Pelas leis bolivianas, um ex-mandatário de Estado não poderia ser levado aos tribunais sem o consentimento do legislativo.
No entanto, se no momento do julgamento oral o ex-presidente não estiver no país, o processo em relação a ele fica suspenso. “A Corte boliviana definiu que se tramite a extradição, para poder julgá-lo, mas essa solicitação é de prognóstico incerto. Não sabemos se efetivamente será extraditado”, lamenta Mayta.
De acordo com ele, ao se fazer uma avaliação estritamente jurídica, tal procedimento deveria ser levado adiante em alguns meses, pela gravidade dos fatos, pelas provas existentes, e pelo tratado de extradição existente entre os dois países.
Porém, lembra o advogado dos parentes das vítimas, “há mais de dois anos que o Estado boliviano solicitou ao governo dos EUA não que o extraditasse, mas que cumprisse com uma atuação inicial que seria a notificação. O Departamento de Estado dos EUA não deu curso a essa solicitação”.
Para ele, há uma explicação simples: Lozada, durante seus dois mandatos como presidente (1993-1997 e 2002-2003), foi ferrenho defensor das diretrizes políticas e econômicas definidas pelo governo estadunidense, sem maiores questionamentos.
“Além disso”, lembra Mayta, “Lozada foi sócio de negócios do neto do Rockefeller [John Davison, milionário estadunidense do começo do século XX], que por sua vez foi importante contribuinte para a campanha de George W. Bush”.

Demanda civil

Por tais razões, e pelo fato dos EUA não reconhecerem nenhuma corte internacional de direitos humanos, os parentes das vítimas e os feridos começaram a procurar opções para se fazer justiça, caso a extradição não saia.
Uma delas foi concretizada em 19 de setembro deste ano, quando um grupo de dez parentes apresentou duas demandas civis em tribunais dos EUA. Uma contra Lozada, outra contra seu ex-ministro da Defesa, Carlos Sánchez Berzaín. Entre os demandantes, estão Juan Patricio Quispe Mamani e Juana Valencia de Carvajal.
“Os processos podem levar pelo menos 18 meses e provavelmente mais antes que o caso seja apresentado para um júri decidir. Durante esse período, um juiz pode decidir que não temos evidências suficientes para levar o caso ao tribunal, mas estamos bastante confiantes de que as demandas serão levadas ao tribunal”, explica ao Brasil de Fato David Rudovsky, um dos muitos advogados que representam os demandantes nos EUA. (IO)

terça-feira, 18 de março de 2008

Viagem pelos Andes

Foi cansativo demais, mas valeu muito a pena. Oito horas para ir, sete para voltar, tudo no mesmo dia. No último domingo, saímos a uma da manhã, rumo à Huanco Pallallani, uma minúscula comunidade rural encravada nos Andes, ao norte de La Paz.

Lá aconteceria a cerimônia de declaração de Aucapata, município que engloba Huanco, como território livre de analfabetismo. Na camionete do Programa Nacional de Alfabetização, eu, Gregorio, o motorista, Pablo, coordenador do programa e Vivian, assessora cubana.

O caminho era a maior parte de terra, muito esburacado e enlameado. A camionete, cheia de bandeirinhas do programa, não estava nada confortável. Mas foi só amanhecer que tudo mudou. A paisagem era incrível. Altíssimos precipícios, rios, lagos, montanhas nevadas... Pablo dizia que estávamos entre 4 mil e 5 mil metros de altitude.

De vez em quando, aparecia um conjunto de casas super rústicas. Às vezes, era só uma casa no meio do nada, com sua pequena plantação e meia dúzia de lhamas ou alpacas. Vira e mexe, víamos um camponês, ou camponesa, tocando uma manada (manada?) desses animais. (Aliás, nunca tinha visto tanta lhama e alpaca na minha vida)

Quando escrevo camponês, leia-se camponês indígena. A região é 100% originária. Pessoas de pele curtida pelo sol e pelo frio, vestindo roupas e chapéus coloridíssimos. Caminhando horas de um canto a outro, sempre carregando algo.

Chegamos em Huanco um pouco depois das 9 da manhã. As casas muito pobres, simples, feitas na maioria das vezes de parede de barro e telhado de palha. Na praça da comunidade, muita gente. Havia um mercado de rua em todo seu entorno. Como costuma ser os mercados bolivianos, esse também vendia de tudo. Sardinhas, carne de porco, batatas, bananas, roupas...

O “palco” onde seria realizada a cerimônia era igualmente simples. O ato em si, como a maioria dos atos, não foi lá grande coisa, tirando o fato de que era uma declaração de erradicação do analfabetismo, o que não é pouco emocionante.

Mas o melhor mesmo ficou para o final. Depois de içada a bandeira branca, que simboliza a erradicação, grupos indígenas de dança e música começaram a comemorar, um depois do outro. Todos puxavam os integrantes da mesa para dançarem juntos, incluindo Pablo e Vivian.

Eu só observava de longe, até que Oliverio, assessor cubano que havia vindo em outro carro, pediu para que uma das integrantes de um dos grupos me convidasse também. E lá fui eu, envergonhadíssimo, arriscar uns passos de uma dança típica da região, que lembrava muito uma quadrilha de festa junina.

Antes de tomarmos o rumo de volta, o prefeito de Aucapata nos convidou para um almoço em uma das casas da comunidade. Me assustei com o enorme prato que colocaram na minha frente. Um gigante pedaço de alpaca ao forno, alface, tomate, uma banana e dois ou três tipos de batata. Não havia talheres.

Na volta, mais chacoalhar da camionete, que agora tinha um integrante novo, o que não facilitou nada. Mas, outra vez, o cenário compensou. Inclusive, voltamos por um lado do Titicaca que eu ainda não conhecia, e que não tinha visto na ida porque era noite. Ele estava lindo demais, ajudado pelo não menos lindo pôr-do-sol. Um domingo para não esquecer

ps: a viagem pode ter sido muito exaustiva, mas ver um morador de Huanco, uma comunidade no meio dos Andes, longe de tudo, com a camisa do Corinthians, não tem preço.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Uma tarde com Diego



Tive que vir morar em La Paz para conseguir ver ao vivo o Maradona jogar. Ele esteve por aqui hoje, numa partida entre Argentina e Bolívia para arrecadar alimentos para as vítimas das inundações no Beni, região amazônica da Bolívia. O “10” veio também apoiar a campanha contra ao veto absurdo que a Fifa deu ao futebol em altas altitudes.

(Naquela velha discussão Pelé x Maradona, acho que não tem dúvida de que o Pelé foi melhor. Na bola. Como pessoa, como caráter, sou muito mais Dieguito)

Para tentar entrevistá-lo (pensei que teria uma coletiva de imprensa depois, mas não teve), me credenciei e pude ficar na beira do gramado. Do lado da Bolívia, estavam Evo e Etcheverry, aquele mesmo que classificou a Bolívia pra Copa de 94, mas no mundial, só jogou uns 10 minutos, porque vinha de lesão e quando entrou, no segundo jogo, foi expulso logo em seguida.

O Evo tem fama de ter sido um ótimo jogador na juventude. Aliás, se não me engano, foi como diretor de esportes do sindicato de cocaleros de Cochabamba que ele começou a aparecer. Mas no começo do jogo, coitado, deu uns passes e uns chutes a gol meio medonhos, sendo até vaiado por uma parte da torcida.

Mas, depois de um tempo, acho que foi “pegando ritmo” e mostrou que sabe alguma coisa. Fez até um golaço. Recebeu uma bola rasteira cruzada da esquerda, matou, driblou o goleiro e tocou para o gol. O público comemorou muito e começou a gritar seu nome.

Já Dieguito, nem seria preciso falar. Está velho, um pouco acima de peso, mas com a bola nos pés, dá aquele show. Deixou companheiros na cara do goleiro, deu lançamentos e fez três gols, inclusive um a la Maradona, vindo correndo do meio de campo, driblando dois ou três e chutando no cantinho.

No intervalo, indo para o vestiário, a torcida começou a entoar um “Dieeegooooo, Dieeegooooo”. Ele parou, acenou, deu socos no peito como demonstrando amor, apontou para o chão e gritou “Sí, se puede correr!”, em apoio aos jogos na altura. O cara tem carisma.

Antes de começar o segundo tempo, foi condecorado como “caballero” pelo governo boliviano. No seu discurso, mais apoio à Bolívia: “Os argentinos não temos medo da altura. Vocês têm que jogar onde nasceram, e isso não pode proibir Deus e muito menos o Blatter”. Foi ovacionado.

O jogo terminou 7 a 4 para a Argentina. Entrando no vestiário, Maradona repetiu o gesto. Bateu com a mão fechada no peito, gritou que era possível correr a 3600 metros acima do nível do mar e até deu um beijo na mão e a levou até o chão, numa imitação mal feita de João Paulo II.

Bem, uma igreja na Argentina ele já tem...

"Me apaixonei por uma assassina"

Comovente e triste relato sobre o conflito colombiano, enviado pela minha amiga Simone e que publicamos no Brasil de Fato:

"Me apaixonei por uma assassina"

"O que acontece se sua nova namorada tem um segredo muito mais tenebroso e sinistro do que ter dormido com alguns caras?"

Jason P. Howe

Chega um ponto em todo relacionamento novo que sua namorada quer te contar um segredo. Normalmente, tem a ver com sexo - quantos parceiros ela já teve (com alguns convenientemente apagados) -, esse tipo de coisa. Freqüentemente, o segredo altera as bases do relacionamento; a honestidade vem com as conseqüências. Mas o que acontece se sua nova namorada tem um segredo muito mais tenebroso e sinistro do que ter dormido com alguns caras?

Sentado nu na beira da cama de um quarto de hotel barato e quente no coração de uma região da Colômbia produtora de drogas e assolada pela guerra , acendi um cigarro e escutei, enquanto a garota com quem eu acabara de fazer amor me contava um segredo tenebroso o bastante para tirar qualquer um de seu êxtase pós-coito.

(texto completo aqui)

sábado, 15 de março de 2008

Onda de calor

Tá sendo duro suportar as temperaturas máximas de 16º dos últimos dois dias em La Paz.

sexta-feira, 14 de março de 2008

O mais novo acullicador

Posso ser suspeito para falar, já que eu moro na Bolívia, mas cada vez me convenço mais das “maravilhas” da folha de coca: do chá e do que eles chamam aqui de acullicu (em aymara, o ato de mascar coca).

Fiz uma matéria para a edição impressa do Brasil de Fato sobre a recomendação da ONU para que a Bolívia e o Peru proíbam a coca. (Parte dela está no site). Na apuração, descobri mais qualidades ainda, nutritivas, medicinais... além do significado religioso e social para os andinos.

Para mim e meu problema de estômago, o “milagre” da coca vem do fato de que ela ataca a forte azia que costumo ter. Como já disse em um post abaixo, há um tempo comecei a tomar chá de coca todo dia. Agora, comecei a mascar sua folha diariamente, o que só fazia de vez em quando, porque é amargo demais.

Resultado: faz tempo que não tenho azia e me acostumei com o gosto da folha de coca. Sou mais um entre os milhões de acullicadores dos Andes.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Civilização pré-inca




Eles duraram muito mais que os incas e tiveram uma extensão territorial equivalente. Dominaram a astronomia, a arquitetura, a escultura e até a medicina cirúrgica. Mas nós brasileiros não temos a menor idéia de que existiram. Eu mesmo só fui descobrir aqui.

A civilização de Tiwanaku (ou Tiahuanacu) nasceu lá por 1500 a.C. e durou até mais ou menos 1200 d.C. (Os incas são de 1300 d.C. a 1600 d.C., aproximadamente). No auge do seu império, abrangia o sul do Peru, o norte da Argentina e do Chile, e boa parte da Bolívia.

Sua capital ficava a 70 km de La Paz (claro que La Paz ainda não existia) e a poucos quilômetros do lago Titicaca. Hoje, o município de Tiwanaku abriga um sítio arqueológico da antiga civilização, que só não é maior porque os espanhóis destruíram quase tudo.

Logo no dia seguinte ao que cheguei em La Paz, em outubro, fui pra lá, cobrir um encontro indígena com a presença do Evo. Foi lá que ele tomou posse simbólica um dia antes da oficial, em 2006. É um lugar sagrado para os aymaras.

Estive lá, mas sem saber muito bem o que era aquilo, embora tenha ficado bastante impressionado com as construções e monumentos. Só depois que me interei. Voltei duas vezes, uma em dezembro, e a outra ontem, como “guia” de minha mãe e o marido dela, que estavam me visitando por esses dias.

É muito legal. Pirâmides e templos sempre perfeitamente alinhados com os pontos cardeais e com avançado sistema de escoamento das águas.

Uma das partes mais incríveis é um orifício (foto acima) feito em um muro dentro do templo solar, chamado Kalasasaya. O buraco é uma réplica do ouvido humano. Do lado do muro onde o furo é menor, se você fala algo, ele funciona como um amplificador. Agora, se você põe o ouvido lá, uma outra pessoa pode falar bem baixinho do outro lado, a bons metros de distância, que é possível ouvir com perfeição. Muito impressionante.

Bizarro mesmo é a gente não aprender sobre Tiwanaku na escola, nem sobre as inúmeras civilizações americanas que vieram antes dos incas, maias e astecas. É aquela educação eurocêntrica que considera que a história da América só começa com a chegada dos espanhóis.


A farsa dos US$ 300 mi que Chávez teria dado às Farc

Mais uma mentira que a grande mídia no Brasil reproduziu tendo orgasmos múltiplos e que, na hora do desmentido, finge que não é com ela.

Do blog do jornalista Antonio Mello:

"Quem desmonta a farsa montada por Álvaro Uribe é um dos maiores jornalisdtas investigativos do mundo, Greg Palast, da BBC e do The Observer.

Em sua página pessoal, Palast mostra o conteúdo do que estaria no computador apreendido de Raúl Reyes, assassinado pelas forças colombianas na selva do Equador.
Veja o trecho de onde Uribe criou os US$ 300 milhões, e também de onde ele disse que o codinome de Chávez na operação seria Ángel.

Camaradas secretariado. Cordial saludo. Por dos días nos reunimos con Rodríguez. Conclusiones principales:
1- Con relación a 300, que en adelante llamaremos ossierya hay gestiones adelantadas por instrucciones del jefe del cojo, las cuales comentaré en nota aparte. Al jefe lo llamaremos Ángel, y al cojo Ernesto.
2- Para recibir a los tres liberados, Chávez plantea tres opciones: Plan A…[O documento está reproduzido aqui, na íntegra.]

Como se vê, o número 300 está relacionado à gestão para liberação de reféns. Provavelmente, segundo Palast, seria o número de reféns a serem libertos. E Chávez é citado como Chávez e não como Ángel.

A reportagem está na página de Palast desde 7 de março. No entanto, nossa grande imprensa não deu uma mísera notinha sobre a farsa.

OBS 1: Quem conseguiu esse furo por aqui foi o Abundacanalha, e em seguida o Argemiro Ferreira, na Tribuna da Imprensa."

sexta-feira, 7 de março de 2008

A direita "pacifista"

Impressionante. Os telejornais daqui estão noticiando que o enfrentamento que aconteceu ontem (nada grave) no ato do qual eu falei no post abaixo foi entre masistas (partidários do MAS) e, pasmem, pacifistas (?!?!?!).

Eu tava no ato. Era claramente uma manifestação contra o governo. Bem dura, por sinal. Chamavam o Evo de ditador, totalitário etc etc. Não tinha nada de pacifista.

Tinha até conteúdos racistas. Na hora da tensão, com um lado xingando o outro, começou um coro do lado “pacifista”: “Linchadores! Linchadores!”. Aqui na Bolívia, a “cultura” do linchamento é grande, e é claro que isso é associado aos indígenas pelos brancos.

Hoje, na TV, nas cenas do enfrentamento, deu para ouvir um dos manifestantes contra o governo gritar para o outro lado “Tomem banho!” e soltar uma risada em seguida.

A jogada da mídia (obviamente, tão dominada pela elite quanto a do Brasil) é clara. Ao chamar um dos lados de uma briga de pacifista, o outro lado vira logo um bando de selvagens, intolerantes. Ou melhor: um bando de índios.

quinta-feira, 6 de março de 2008

A banalização da palavra “democracia”

Chega a ser ridículo a elite boliviana encher a boca ao falar em democracia para criticar o governo Evo. Embrulha o estômago. Mais ou menos igual ao Bush dizer que quer espalhar regimes democráticos pelo Oriente Médio.

A democracia a que eles se referem é muito clara. É aquela das transnacionais, dos latifundiários, dos grandes empresários. É a liberdade para os poderes político-econômicos. Enquanto isso, ao resto do povo sobra o “grande exercício democrático” de poder votar de tempo em tempo. E pronto. Que se dê por contente.

Agora há pouco, teve uma manifestação contra o governo numa praça perto de casa. O tema era a tal defesa da democracia. Umas 1500, talvez 2 mil pessoas, quase todas empunhando a bandeira boliviana.

No palanque, revezando-se ao microfone, oito pessoas. Todas brancas. Dentre elas, quatro mulheres, três delas loiras. Nada contra os brancos e os loiros, mas, num país onde 70% da população é indígena, tal estatística é sintomática. É muito óbvio que a gritaria da elite branca (lembrando o termo do Cláudio Lembo) vai contra os direitos que essa maioria historicamente excluída pode ganhar com a nova Constituição.

Entre 2006 e 2007, durante meses e meses, a direita fez o possível e o impossível para travar a Assembléia Constituinte (vale lembrar que 54% dos bolivianos votaram em Evo porque uma nova Constituição era das suas principais promessas). Aí, quando o MAS decide, diante do impasse nas negociações, impor sua maioria (tanto legislativa quanto popular) e aprovar a nova Constituição, chamam tal medida de ditatorial.

Depois, já em 2008, a direita, de novo, fez o que pôde para bloquear a convocação pelo Congresso de um referendo nacional para aprovar ou rejeitar o novo texto constitucional. Aí, quando o MAS decide, mais uma vez, fazer valer sua maioria e convocar a consulta (veja bem, não se impôs nada, apenas se transferiu a responsabilidade de decisão para o povo), mais acusações de “atropelo à democracia” e “autoritarismo”.

Tudo isso porque, além dos direitos dos povos indígenas previstos na Constituição, o que mais pega mesmo é o artigo que proíbe o latifúndio e limita o tamanho da propriedade da terra. Ora, a concentração agrária no oriente do país é um dos principais fatores de poder da elite da Bolívia. Claro que eles vão defender com unhas e dentes o direito democrático de possuírem quanta terra bem entenderem, mesmo que seja às custas de milhões de camponeses famintos.

Afinal, democracia é isso. É garantir a liberdade do indivíduo, desde que ele tenha muito dinheiro.

quarta-feira, 5 de março de 2008

O desrespeito a uma cultura milenar



Ridículo. Absurdo. Infame. Difícil adjetivar o "pedido" da ONU para que Bolívia e Peru proíbam o ato de mascar coca. É no mínimo uma agressão a uma cultura milenar muito, mas muito disseminada nos dois países.

Para os indígenas da região, a coca não tem apenas propriedades medicinais. Não ajuda apenas a enganar a fome, a combater o mal de altura, a dar força para os trabalhos duros. Não serve somente como um meio de socialização. Ela é sagrada.

Para se ter uma idéia da importância que ela tem por aqui, o assunto foi manchete principal dos dois maiores jornais da Bolívia. Isso em meio a uma grave crise política interna e ao seríssimo conflito entre Colômbia, Equador e Venezuela.

Como está escrito em algumas camisetas por aqui, coca não é cocaína. Quem inventou o consumo massivo de cocaína não foram os indígenas bolivianos ou peruanos. É aquela velha analogia do cara que pega a mulher com outro no sofá e joga fora o sofá.

Mais que tudo, é incrível que um organismo como a ONU ainda possua uma visão repressiva sobre a questão das drogas, em vez de tratá-la como caso de saúde pública. Tal postura cabe como uma luva na política dos EUA de suposto combate aos entorpecentes.

Se quisessem de fato lutar contra o tráfico de drogas, muito mais eficiente seria desmontar todo o gigantesco esquema que o sustenta, que envolve grandes bancos, laboratórios, políticos, empresários, policiais etc.

Mas não. Muito mais fácil é prender o consumidor e exterminar traficante pé-de-chinelo nas favelas ou plantador de coca no trópico boliviano.

Especial sobre a crise na América do Sul

Sobre a crise Colômbia-Equador-Venezuela, recomendo o especial no site do Brasil de Fato, além da edição impressa que sai amanhã.

Nem preciso falar que dá uma visão diferente da manipulação e descontextualização dos fatos que se vê habitualmente nas Folhas, Vejas e Jornais Nacionais da vida.

Estatísticas

100% dos almoços nos restaurantes bolivianos são precedidos por um prato enorme de sopa.

80% são sucedidos por um potinho de gelatina. 20% por um potinho de salada de fruta.

Em 90% das vezes, o conjunto prato enorme de sopa + prato principal + potinho de gelatina/salada de fruta custa menos que 20 bolivianos, o que dá uns R$ 6.

Em 98% dos casos, você perde 80% de sua fome depois de tomar o prato enorme de sopa.

domingo, 2 de março de 2008

Dia de clássico




Nunca ninguém te pergunta por que você torce para este time ou aquele. Não faz sentido. Não tem explicação. É de nascimento, é por paixão, não por razão. Agora, quando você está morando longe de sua cidade ou país e escolhe uma equipe local para torcer, aí sim cabe uma satisfação.

Na Bolívia, sou Bolívar por quatro (bons) motivos:

1) Pelo nome. Os dois principais times de La Paz (e do país) chamam-se Bolívar e The Strongest. Óbvio que gostei bem mais do primeiro. Não só pelo fato do Bolívar chamar Bolívar, mas também pelo fato do The Strongest chamar The Strongest (fala sério).

2) A família que me hospedou nas minhas duas primeiras semanas em La Paz é bolivarista.

3) Ainda não sei se é verdade, mas me falaram que é o time de maior torcida. Sempre vou com os times da massa.

4) Quando mudei para o meu apartamento, dei de cara com um adesivo do Bolívar colado na geladeira. Se ligou no sinal divino?

Pois bem. Como quando cheguei por aqui, no fim do ano passado, o Bolívar já estava eliminado do campeonato boliviano (2007 definitivamente não foi um ano bom para meus times), tive que esperar até hoje para ir vê-lo no estádio. Mas foi uma estréia de categoria. Um Bolívar x The Strongest.

Comprei meu ingresso antecipadamente e sem saber em que torcida eu ia cair. Como o The Strongest era o mandante, o único ponto de venda era um escritório deles no centro. (Já me estava vendo como naquela anedota clássica do cara que está do lado errado e quando o time dele faz um gol, não agüenta, comemora e tem que sair correndo do estádio para não apanhar)

Na hora de ir para o jogo, desisti de levar o cachecol do Bolívar (nesta cidade fria, um importante acessório das torcidas de futebol) que eu tinha comprado uns dias antes. Afinal, num clássico é bom não dar bobeira.

Ledo e ivo engano. Chegando nas imediações do estádio (aquele onde a Fifa quer proibir jogos internacionais, por causa da altitude), vi as duas torcidas juntas, cada uma com suas camisas, bonés, cachecóis, na maior tranqüilidade. Tinha namorada bolivarista junto com namorado stronguista, pai e filha stronguista com a mãe bolivarista, etc.

Dentro do estádio, a surpresa foi maior. Não havia separação de torcidas. Na verdade, pelo jeito havia uma separação meio que estabelecida informalmente nas áreas atrás do gol (um lado para cada time, embora vi uns gatos pingados do Bolívar na torcida do The Strongest).

Mas, nas arquibancadas laterais, onde fica a maior parte do público, era todo mundo junto. E nenhuma tensão.

Antes do jogo começar, fui comprar meu almoço. Um sanduíche de pernil, que pelo jeito é tradição em todos os estádios do mundo (duvido que nos estádios da França as barraquinhas vendam vinho com foie gras). Uns pedaços de pernil, alface, tomate, ají e... a vendedora tira um pedaço da pele tostada do bicho e joga dentro do pão. Devo ter feito uma careta, mas vamos que vamos, tradição é tradição.

Encontro um lugar na arquibancada, sento no isopor comprado a 1 boliviano para não machucar a bunda (outra tradição do futebol boliviano), devoro meu sanduíche (a pele estava uma delícia) e o jogo começa.

Uma ótima partida, por sinal. Gols anulados, chances incríveis perdidas... o Bolívar chega a fazer 2 a 0, no segundo tempo fica com um homem a mais, mas mesmo assim toma o empate. Como dizem os bolivianos, que mier...coles!

Enfim, clássico é clássico. E vice-versa.

ps: nas fotos, os Bolívar (o time e o Simón)

"Los Andes no creen en Dios"



Um bom filme boliviano: "Los Andes no creen en Dios", de 2007. Conta a história de um homem que, em 1927, se muda de La Paz a Uyuni, no sul da Bolívia, para trabalhar em uma grande companhia mineradora.
A cidade vive seu esplendor. Homens muito ricos (bolivianos e estrangeiros), outros esperando pacientemente a sorte grande de encontrar a mina dos sonhos, uma maioria explorada nas galerias, bordéis e os bons católicos na cruzada contra a imoralidade fazem parte do enredo, que parece ser o mesmo de qualquer localidade que vive momentos efêmeros de grande riqueza.

Fui a Uyuni em janeiro. Lugar decadente, que ainda está no mapa devido aos muitos turistas que visitam o incrível salar de mesmo nome. Do lado dele, a tristeza do cemitério de trens. Há décadas, iam e vinham transportanto muito dinheiro e muito mineral. Hoje, deteriorados e enferrujados. Inúteis.