quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O caos na zona sul de São Paulo

PELO DIREITO À DIGNIDADE PARA O POVO QUE VIVE EM ÁREAS DE MANANCIAIS E ARREDORES NO EXTREMO SUL DE SÃO PAULO

Estamos vivendo uma situação de verdadeira calamidade! Devido ao descaso do “poder público” e à
ambição das elites dessa cidade, em nossas comunidades (Pq. Cocaia I/Jd. Toca, Jd. Lucélia/V. Nascente,
Recanto Cocaia/Jd. Tangará, Jd. Prainha, entre outras), localizadas no extremo sul de São Paulo, ocorrem
diariamente tragédias: enchentes, deslizamentos de terra e desabamento de casas. As perdas são incalculáveis; são muitas pessoas perdendo móveis, eletrodomésticos, alimentos, roupas, perdendo seus empregos, já que não é possível sair para o trabalho sabendo que qualquer chuva pode causar uma desgraça em nossa casa. São muitas as crianças doentes, infectadas por uma água imunda, pegando sarna, leptospirose, e várias outras enfermidades.
Estamos todos traumatizados pelo desespero de vermos nossa vida e a vida de nossos familiares em risco, a cada chuva. Uma situação que não é possível traduzir em palavras... E isso tudo numa região muito carente de infra-estrutura e serviços públicos. Em várias comunidades, como é o caso do Jd. Prainha e do Recanto Cocaia, por exemplo, padecemos com a falta de asfaltamento, de saneamento básico, de atendimento médico, de creches, de escolas próximas, e por aí vai.
Como se isso não bastasse, dezenas de comunidades que se localizam próximas à Represa Billings estão
sendo despejadas, e outras tantas estão sob ameaça de despejo, por conta do “Programa Mananciais”, da
“Operação Defesa das Águas” e de outros processos que visam atender aos interesses da especulação imobiliária.
Todos sabemos que a região dos mananciais abrange uma área enorme, que inclui o Autódromo de Interlagos, regiões habitadas por ricos, grandes casas noturnas, que, é óbvio, permanecerão intocadas. As áreas ameaçadas são apenas a de comunidades pobres, compostas por milhares e milhares de trabalhadores e trabalhadoras, que não tiveram opção, a não ser comprar seu pedaço de chão em loteamentos precários, resultado de uma articulação entre grandes proprietários, políticos, burocratas, imobiliárias e membros do aparelho judiciário. Esta história não se vê nas telas da TV, que mostram apenas uma versão distorcida e mentirosa da nossa realidade, alimentando preconceitos dos quais somos vítimas no dia-a-dia, repetidos por nossos patrões que muitas vezes nem imaginam que o funcionário ali ao seu lado vive naquela comunidade atingida pelas enchentes, ou ameaçada de despejo.
A necessidade de preservação do meio ambiente – com o que estamos de pleno acordo – pode e deve ser
feita respeitando os direitos da população pobre. Portanto, nós, moradores de comunidades carentes, ameaçadas de despejo e vítimas das enchentes, exigimos do poder público a garantia de nosso direito à moradia digna e aos serviços públicos fundamentais.
Quando muito, diante da nossa atual tragédia, a resposta do Estado tem sido os albergues, as passagens
para o “Norte”, os cheques-despejos (cada hora num valor, mas sempre muito baixos) disfarçados de “auxílioaluguel”.
Ao contrário, exigimos a construção de um projeto participativo e popular de reurbanização de nossas
comunidades que una a preservação ambiental à garantia de moradia e de outros direitos sociais assegurados a nós, pelo menos na teoria, pela Constituição. E, de imediato, exigimos uma SOLUÇÃO EMERGENCIAL às tantas famílias que têm perdido tudo o que construíram com tanto esforço, e cuja própria vida está ameaçada, em função da segregação social, da falta de planejamento urbano, e da ganância dos que se dizem “poderosos”.
Apelamos à solidariedade de todos os que apóiam a luta do povo da periferia. Porém, aproveitamos para
lembrar que temos convicção sobre os nossos objetivos, que não estamos pedindo favor, mas lutando pelo que é direito nosso, e que não cairemos no canto da sereia de oportunistas que quiserem tirar proveito de nossa tragédia. Alertamos também que a maneira como os políticos e o “poder público”, em todos os níveis de governo, se posicionarem frente à nossa situação será lembrada – e cobrada - pela via eleitoral, e principalmente por meio de nossa organização cotidiana.

São Paulo, Fevereiro de 2010,

Rede de Comunidades do Extremo Sul da Cidade de São Paulo
http://redeextremosul.wordpress.com
redeextremosul@gmail.com

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Cuba é uma ditadura?

Breno Altman

O novo presidente do PT, José Eduardo Dutra, em entrevista ao jornalista Fernando Rodrigues, da Folha de S.Paulo, no último dia 11, respondeu afirmativamente à pergunta que faz as vezes de título deste artigo. Com ressalvas de contexto, identificando no longo bloqueio norte-americano uma das causas do que chamou de “fechamento político”, Dutra assumiu a mesma definição dos setores conservadores quando abordam a natureza do regime político existente na ilha caribenha.

Essa discussão é um capítulo importante na agenda da contra-ofensiva à hegemonia do pensamento de direita. Afinal, a possibilidade do socialismo foi estabelecida pelos centros hegemônicos não apenas como economicamente inviável e trágica, mas também como intrinsecamente autoritária.

Quando o colapso da União Soviética permitiu aos formuladores do campo vitorioso declarar o capitalismo e a economia de livre-mercado como o “fim da história”, de lambuja também fixaram o sistema político vigente na Europa Ocidental e nos Estados Unidos como a única alternativa democrática aceitável.

Não foram poucos os quadros de esquerda que assumiram esse conceito como universal e abdicaram da crítica ao funcionamento institucional dos países capitalistas. Alguns se arriscaram a ir mais longe, aceitando esse modelo como paradigma para a classificação dos demais regimes políticos.

Na tradição do liberalismo, base teórica da democracia ocidental, a identificação e a quantificação da democracia estão associadas ao grau de liberdade existente. Quanto mais direitos legais, mais democrático seria o sistema de governo. No fundo, democracia e liberdade seriam apenas denominações diferentes para o mesmo processo social.

Pouco importa que o exercício dessas liberdades seja arbitrado pelo poder econômico. As disputas eleitorais e a criação de veículos de comunicação, por exemplo, são determinadas em larga escala pelos recursos financeiros de que dispõem os distintos setores políticos e sociais.

No modelo democrático-liberal, afinal, os direitos formais permitem o acesso irrestrito das classes proprietárias ao poder de Estado, que podem usar amplamente sua riqueza para mercantilizar a política e seus instrumentos, especialmente a mídia. Basta acompanhar o noticiário político para se dar conta do caráter cada vez mais censitário da democracia representativa.

Novo modelo

A revolução cubana ousou ter entre suas bandeiras a criação de outro tipo de modelo político, no qual a democracia é concebida essencialmente como participação popular. Ao longo de cinco décadas, mesmo com as dificuldades provocadas pelo bloqueio norte-americano, forjou uma rede de organismos que mobilizam parcelas expressivas da população.

A maioria dos cubanos participa de reuniões de células partidárias, do comitê de defesa da revolução do bairro, dos sindicatos da categoria, além de outras organizações sociais que fazem parte do mecanismo decisório da ilha. Não são somente eleitores que delegam a seus representantes a tarefa de legislar e governar, ainda que também votem para deputados – o regime cubano é uma forma de parlamentarismo. Esse tipo de participação talvez explique por que Cuba, mesmo enfrentando enormes privações, não seguiu o mesmo curso de seus antigos parceiros socialistas.

O modelo cubano não nasceu expurgando seus opositores ou instituindo o monopartidarismo. Poderia ter se desenvolvido com maior grau de liberdade, mas teve de se defender de antigos grupos dirigentes que optaram pela sabotagem e pelo desrespeito às regras institucionais como caminhos para derrotar a revolução vitoriosa. Na outra ponta, as diversas agremiações que apoiavam a revolução (além do Movimento 26 de Julho, liderado por Fidel, havia o Diretório Revolucionário 13 de Março e o Partido Socialista Popular) foram se fundindo em um só partido, o comunista, oficialmente criado apenas em 1965.

Os círculos contra-revolucionários, patrocinados pelo governo democrata de John Kennedy nos EUA, organizaram a invasão da Baía dos Porcos em 1961. Aliaram-se à CIA em algumas dezenas ou centenas de tentativas de assassinar Fidel Castro e outros dirigentes cubanos. Associados a seguidos governos norte-americanas, criaram uma situação de guerra e passaram a operar como braços de um país estrangeiro que jamais aceitou a opção cubana pela soberania e a independência.

A restrição das liberdades foi a salvaguarda de uma nação ameaçada, vítima de uma política de bloqueio e sabotagem que já dura meio século. Os EUA dispõem de diversos planos públicos – para não falar dos secretos – cujo objetivo é financiar e apoiar de todas as formas a oposição cubana. Vamos combinar: já imaginaram, por exemplo, o que ocorreria se um setor do partido democrata recebesse dinheiro cubano, além de préstimos do serviço de inteligência, para conquistar a Casa Branca?

Poder Popular

Claro que o ambiente de guerra e a redução das liberdades formais impedem o desenvolvimento pleno do modelo político fundado pela revolução de 1959. Vícios de burocratismo e autoritarismo estão presentes nas instâncias de poder. Mas, ainda nessas condições adversas, o governo cubano veio institucionalizando interessante sistema de participação popular. O contrapeso ao modelo de partido único, opção tomada para blindar a revolução sob permanente ataque, é um sistema de organizações não-partidárias que exercem funções representativas na cadeia de comando do Estado.

A Constituição de 1976, reformada em 1992, estabeleceu o ordenamento jurídico do modelo. Um dos principais ingredientes foi a criação do Poder Popular, com suas assembleias locais, municipais, provinciais e nacional. Seus representantes são eleitos em distritos eleitorais, em voto secreto e universal. Os candidatos são obrigatoriamente indicados por organizações sociais, em um processo no qual o Partido Comunista não pode apresentar nomes – aliás, cerca de 300 dos 603 membros da Assembléia Nacional não são filiados comunistas.

É o Poder Popular que designa o Conselho de Estado e o Conselho de Ministros, principais instâncias executivas do país, além de aprovar as leis e principais planos administrativos. Seus integrantes não são profissionais da política: continuam a desempenhar suas atividades profissionais e se reúnem, em âmbito nacional, duas vezes ao ano para deliberar sobre as principais questões.

Plebiscitos

A Constituição também prevê mecanismos de consulta popular. Dispondo desse direito, o dissidente Oswaldo Payá, líder do Movimento Cristão de Libertação, reapresentou à Assembleia Nacional do Poder Popular, em 2002, uma petição com 10 mil assinaturas para que fosse organizado referendo que modificasse o sistema político e econômico na ilha.

O governo reuniu 800 mil registros para propor outro plebiscito, que tornava o socialismo cláusula pétrea da Constituição. Por causa da quantidade de assinaturas, teve preferência. Cerca de 7,5 milhões de cubanos (65% do eleitorado), apesar de o voto em referendo ser facultativo, votaram pela proposta defendida por Fidel Castro.

Trata-se apenas de algumas indicações e exemplos de que o novo presidente petista pode ter sido um pouco apressado em suas declarações. As circunstâncias históricas levaram Cuba a restringir liberdades. Mas seu sistema político deveria ser analisado com menos preconceito, sem endeusamento do modelo liberal, no qual a existência de direitos formais amplos não representa garantias para um funcionamento democrático baseado na participação popular.

Breno Altman é jornalista e diretor do Opera Mundi.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O ataque à liberdade de expressão que não sai na grande mídia

A péssima notícia me foi enviada pelo amigo e jornalista Daniel Santini: o semanário colombiano Cambio simplesmente deixou de ser publicado. O meio caracterizava-se por realizar um jornalismo investigativo de primeira, com graves denúncias sobre o círculo do poder político e econômico da Colômbia.

Não, ele não foi fechado por ordem do governo. A coisa foi muito mais sutil. E inteligente. Há três anos, o jornal foi comprado pelo grupo que publica o jornal El Tiempo, o maior do país, e sobre o qual exerce fortíssima influência a famigerada família Santos, que frequenta o primeiro escalão do governo Uribe: um dos membros da tal família é o atual vice-presidente, e o outro foi ministro da Defesa, entre 2006 e 2009 (Juan Manuel Santos, fortíssimo pré-candidato a presidente nas eleições de maio caso Uribe não possa se candidatar de novo).

Ora, nos últimos anos, o semanário Cambio vinha fazendo inúmeras denúncias, como as ligações entre membros do governo Uribe com o paramilitarismo e o escândalo dos "falsos positivos", ou seja, os assassinatos de líderes sociais ou pessoas "comuns" para serem apresentados como baixas das guerrilhas.

E, de repente, o principal grupo mediático do país compra a publicação para, três anos depois, anunciar seu fechamento? O quebra-cabeça se completa...

Abaixo, um artigo sobre o tema, enviado também pelo Daniel Santini e publicado na IPS:

El sentido del fin de la revista Cambio
 
Análisis Javier Darío Restrepo*

BOGOTÁ, 10 feb (IPS) - ¿Qué le habría pasado a Colombia si se hubieran mantenido ocultas las operaciones del narcotraficante Cartel de Cali y de ejecutivos de la campaña electoral del ex presidente Ernesto Samper (1994-1998)?

¿Cómo sería Colombia si el escándalo de los políticos que se aliaron con las milicias paramilitares de ultraderecha se hubiera escondido debajo de las alfombras del Congreso legislativo?

¿Y si nunca se hubiera conocido la existencia de los secuestrados en poder de la guerrilla y el país se hubiera mantenido indiferente frente a ellos, nada hubiera cambiado?

Estas y otras preguntas comienzan a hacerse esta semana los colombianos ante el episodio del cierre de la revista Cambio, una publicación semanal que en cada edición había denunciado hechos de tal gravedad que se había convertido en parte importante de las preocupaciones de la ciudadanía de este país sudamericano que vive desde 1964 un conflicto armado interno.

En enero de 1995, la periodista de Cambio, María Cristina Caballero, alertó al país sobre un cargamento de camisetas que los narcotraficantes del Cartel de Cali habían aportado a la campaña presidencial del candidato del Partido Liberal, Ernesto Samper.

Ese fue el hilo que condujo al ovillo de la multimillonaria contribución de los hermanos Gilberto y Miguel Rodríguez Orejuela, jefes del Cartel de Cali, al triunfo de Samper.

Sin proponérselo así, la periodista de Cambio aportó la primera prueba del que se llamaría luego proceso 8.000.

A lo largo de la historia de los últimos años, la edición de Cambio impidió que muchos ojos se cerraran y que los escándalos se escondieran.

En las últimas semanas, esa actividad de periodismo investigativo y de denuncia había inquietado hasta la indignación a los discretos funcionarios de la cancillería, al revelar los detalles del acuerdo sobre la presencia estadounidense en siete bases militares, alcanzado entre Bogotá y Washington el año pasado.

También reveló los abusos del ex ministro de Agricultura, Andrés Felipe Arias, muy cercano al presidente Álvaro Uribe, con el programa Agro Ingreso Seguro, un plan para asistir a los agricultores que le permitió distribuir grandes sumas de dinero a un grupo de grandes empresarios que habían contribuido a las campañas electorales del mandatario.

La revista, fundada en 1994, pasó hace tres años a ser propiedad de la Casa Editorial El Tiempo, dueña del diario más importante de Colombia y cuya mayoría accionaria está en manos del español Grupo Planeta.

"Había miembros de la junta (directiva de Cambio) a quienes les parecía que no era conveniente tanto periodismo de denuncia", recordó la editora de la revista, María Elvira Samper. "Pienso que coexistían la molestia con la línea editorial y las inquietudes sobre rentabilidad", sostuvo.

Al dar a conocer el cierre de la revista, los comunicados de la Casa Editorial El Tiempo alegaron el agotamiento del "modelo de negocio". La revista no daba el rendimiento que se había esperado de ella, se sostuvo.

Sin embargo, el director de Cambio, Rodrigo Pardo, y la editora general Samper informaron lo contrario con datos de primera mano.

"En 2009 hubo ganancias, y para 2010 se habían vendido más de 1.500 millones de pesos", equivalentes a más de 700.000 dólares en publicidad, reveló Pardo. "No es creíble que una organización como El Tiempo tenga que cerrar una revista que dio utilidades", añadió.

En El Tiempo mantiene influencia la familia Santos, estrechamente ligada al gobierno, pues el vicepresidente es Francisco Santos, y Juan Manuel Santos fue ministro de Defensa entre 2006 y 2009.

"Lo que cobran y lo que cierran son las investigaciones de Cambio sobre personajes cercanos al gobierno", escribió el columnista Héctor Abad.

La explicación está avalada por expresiones como la del ex ministro Santos, para quien la revista era "una idiota útil de las FARC", en referencia a la guerrilla de las Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia.

Otro personaje cercano a Uribe, el ex asesor presidencial José Obdulio Gaviria, llamó al director de Cambio "jefe de la bigornia", un rebuscado vocablo que equivale a facineroso.

Con todas estas razones se puso en marcha una "operación silencio", que tuvo dos etapas. La primera, el miércoles 3 de febrero a mediodía, cuando dos de los ejecutivos bajo órdenes del Grupo Planeta, Luis Fernando Santos y Guillermo Villaveces, citaron en sus oficinas a Pardo y a Samper para notificarles la decisión de convertir la revista semanal de información periodística en una revista mensual de entretenimiento.

El fin de Cambio, y de sus cargos, se produciría cuando, publicados los tres últimos números, renovarían el personal y la orientación y aparecería la nueva revista mensual.

Pardo y Samper comenzaron a trabajar en el nuevo número, en el que se daría cuenta a los lectores de las razones de la suspensión de la revista semanal y del impacto de ese hecho sobre el periodismo nacional.

Pero esas tareas se frenaron abruptamente el lunes 8, cuando una nueva decisión de la junta cesó en sus funciones a los dos directivos.

Esta decisión reafirmó a quienes ven en el cierre el cobro de cuentas por las denuncias de los "falsos positivos", asesinatos de jóvenes civiles perpetrados por militares para hacerlos pasar como bajas de la guerrilla en combate, los espionajes ilegales del Departamento Administrativo de Seguridad (DAS) contra opositores, activistas y periodistas, y el escándalo del Agro Ingreso Seguro, según la enumeración del columnista Alfredo Molano (Ver recuadros).

"El periodismo que investiga, que hace preguntas y no se somete, es una amenaza para el estado de opinión que nos quieren imponer", anotó la columnista María Jimena Duzán.

También despertó rechazo el criterio editorial expuesto por el dueño del Grupo Planeta, José Manuel Lara: "Hoy, el editor es aquel que va a preguntarle a la gente qué quiere leer, y después busca al especialista serio que lo haga", sentenció.

No coincide ese criterio con el de Pardo, que habla de "la responsabilidad social que implica el periodismo para la democracia y el fortalecimiento del debate público".

Además, se comprobó la imposibilidad de coexistencia entre el periodismo y los negocios. "Había demasiados negocios de por medio", concluyó Abad al recoger la versión repetida sobre las aspiraciones de Planeta de obtener la adjudicación de un tercer canal de televisión, que está por decidir el Estado.

La desaparición de Cambio es lamentable "cuando el país necesita más y no menos foros de discusión y cuando precisa de medios de comunicación libres", opinó el columnista Santiago Montenegro.

Desde el punto de vista de los periodistas, es un signo premonitorio del creciente poder empresario en los medios de comunicación, y de una información que se hará bajo sus reglas de juego.

* Con aportes de Constanza Vieira y Helda Martínez (Bogotá).(FIN/2010)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Ruralistas defendem a escravidão no país

Editorial do Brasil de Fato, edição 363 (de 11 a 17 de fevereiro de 2010):

Os lucros obtidos, o envolvimento de setores dinâmicos da economia e a atuação de setores reacionários incrustados no Estado mostram o poderio e os interesses que movem essa atividade criminosa

Após 120 anos da lei que aboliu a escravidão, o trabalho escravo continua sendo uma realidade em nosso país. Nas mãos de pessoas ávidas por lucros fáceis e rápidos, a propriedade privada da terra transforma-se num instrumento poderoso para escravizar seres humanos, cerceando a liberdade e usurpando a dignidade de milhares de brasileiros. Como denunciou, em nota, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), são trabalhadores aprisionados por promessas, tratados pior que animais e impedidos de romper a relação com o empregador.

São práticas de trabalho forçado, onde se mantêm o domínio pela força das armas; da servidão, assegurada por dívidas; de jornadas de trabalhos exaustivas, indo além dos limites do corpo humano; e de trabalhos degradantes, onde estão ausentes as condições básicas de saúde e de segurança. No governo de Fernando Henrique Cardoso cerca de 6 mil e no governo Lula outros 30 mil trabalhadores foram resgatados nessas condições, semelhantes as do trabalho escravo.

Enquanto as fazendas de gados representam o maior número de propriedades com trabalho forçado, os canaviais detêm o maior número de trabalhadores escravizados. E repete-se a prática nas áreas de atuação das madeireiras e das carvoarias. Enganam-se os que pensam que essas práticas estão restritas aos rincões do Brasil ou limitam-se aos latifundiários remanescentes das oligarquias rurais mais violentas e atrasadas. A imposição da super-exploração aos trabalhadores se espalha por todo o território nacional e abrange os mais diversos ramos da atividade econômica, inclusive no meio urbano.

Os dados do Ministério Público do Trabalho, divulgados dia 25 de janeiro, colocam a região sudeste – a mais desenvolvida economicamente – na liderança das regiões em que consta a prática do trabalho escravo. Dos mais de 3,5 mil trabalhadores resgatados, envolvendo 566 propriedades rurais, em todo país, cerca de 1.300 se encontravam na região sudeste. Nas palavras do juiz do trabalho, Marcus Barberino, o trabalho escravo é uma atividade sistemática, que perpassa toda cadeia produtiva, está na mesa de todos os brasileiros e, ao contrário do que se pensa, não é exceção: é termômetro do mercado de trabalho que continua a explorar o trabalhador de uma forma excessiva.

Para o diretor da Anti-Slavery International, Aidan MacQuaide, a escravidão contemporânea está presente nos setores mais dinâmicos da economia capitalista, seu combate exige fortalecer os sindicatos dos trabalhadores para que os próprios possam reivindicar seus direitos básicos e ter consciência que o combate a essa prática não se restringe ao cenário nacional e sim extrapola para o âmbito internacional. A diretora da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, Laís Abramo, vai além. Para ela o trabalho escravo tem crescido no contexto da globalização, uma vez que é um fenômeno mundial, presente na cadeia produtiva de grandes e modernas empresas transnacionais. Estima a OIT que, em todo mundo, pelo menos 12 milhões de pessoas estão submetidas ao trabalho escravo, gerando um lucro, em 2009, que passa dos 30 bilhões de dólares.

Os horrores dos porões dos navios negreiros deixaram de cruzar os mares. No entanto, o sistema capitalista mostra que é incapaz de deixar de promover atrocidades humanas quando lucros vultuosos estão ao seu alcance.

O Brasil, no cenário internacional tem se destacado no combate a essa prática criminosa de tratar os trabalhadores. A atuação das organizações da classe trabalhadora, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), de organizações não-governamentais e de alguns setores progressistas do Poder Judiciário, Legislativo e dos dois últimos governos promoveram significativos avanços no combate ao trabalho forçado.

Mas ainda há muito o que se fazer. Os lucros obtidos, o envolvimento de setores dinâmicos da economia e a atuação de setores reacionários incrustados no Estado, azeitando as engrenagens de proteção e impunidade, mostram o poderio e os interesses que movem essa atividade criminosa. Certamente não será encontrado um único parlamentar, nem mesmo a senadora Kátia Abreu (DEM/TO), que defenda abertamente o trabalho escravo – o crime é previsto no Código Penal, artigo 149.

No entanto, o que justifica que até hoje não foi aprovada no Congresso Nacional a proposta de emenda constitucional 438/2001, a PEC do Trabalho Escravo? Essa emenda constitucional determina a expropriação, sem nenhuma indenização, das propriedades onde houver a prática de trabalho escravo e as terras serão destinadas à reforma agrária. A proposta já passou pelo Senado Federal em 2003, foi aprovado em primeiro turno na Câmara dos Deputados em 2004. Mas, é preciso ser feita uma nova votação, em segundo turno, na Câmara. Contudo, desde agosto de 2004 a proposta não é votada por resistência da banca ruralista.

A sociedade civil está mobilizada, recolhendo assinaturas para romper com a resistência dos setores reacionários do Congresso Nacional e exigir a aprovação da PEC 438/2001. É uma medida imprescindível para a erradicação do trabalho escravo em nosso país. Mas que necessita somar-se com a mudança radical no atual modelo agrícola baseado no agronegócio e na realização de uma profunda reforma agrária em nosso país.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A guerra ideológica de Hollywood

"Após anos de corrupção, assassinatos de reféns estadunidenses e traições na área da política externa, os EUA, com a ajuda de outras nações, secretamente junta um grupo dentre seus militares mais bem treinados para finalmente derrubar o ditador que causou devastação na América do Sul por mais de 20 anos".

Essa é parte da sinopse de "The Expendables", filme produzido e atuado por Sylvester Stallone previsto para ser lançado em agosto.


Em um dos trailers da película, que pode ser assistido aqui, nota-se que os soldados do tal ditador, assim como o próprio, usam boinas vermelhas. Além disso, em uma das cenas, o tirano diz algo como "Nós iremos matar essa doença americana!". 

O pano de fundo do roteiro (país sul-americano governado por um ditador corrupto e cruel por mais de 20 anos), as boinas vermelhas e a retórica anti-estadunidense do vilão da história não deixam dúvidas em relação à total falta de sutileza de Hollywood: está claro que o objetivo, além de faturar milhões em bilheteria, é justificar (e naturalizar) uma eventual invasão dos EUA à Venezuela.

E, para "matar dois coelhos de uma cajadada só", como disse o amigo e jornalista Marcelo Netto Rodrigues, no minuto 2:33 do trailer (o mesmo Marcelo que se apercebeu disso), aparece, ao fundo, uma bandeira bastante parecida à da Bolívia. 


É engraçado, mas sempre tive a impressão de que o poder "moldador de mentes" da indústria cinematográfica dos EUA sempre foi subestimado. Afinal, seria apenas entretenimento puro, inofensivo - na pior das hipóteses, "burrificante".



Mas há quem diga, e concordo plenamente, que Hollywood talvez seja o mais eficiente mecanismo de dominação estadunidense sobre os demais povos do mundo. É muito mais sutil e "indolor" que o domínio militar, político ou econômico. 


Através de seus filmes (é claro que existem exceções), todo um modelo de vida baseado em valores como o capitalismo, consumismo e individualismo exarcebado e toda uma construção de uma imagem fortemente favorável aos EUA e ao que este país representa são introjetados no imaginário das pessoas que os assistem - desde crianças, é bom lembrar.

Pensando muito rapidamente, não é difícil lembrar de muitos exemplos. Como o do "Rambo", em que um heroi, sozinho (taí o individualismo, o "vencer por seus próprios esforços"), luta contra malvados (e comunistas) vietnamitas.


Ou a sequência "Indiana Jones", em que o protagonista estadunidense, civilizado, sempre que se aventura em países do Terceiro Mundo (que por si só é uma aventura e tanto, não?), topa com tribos selvagens, atrasadas, de canibais, vivendo em cavernas, florestas, templos escondidos... 

O último filme da série, inclusive, tem como vilões os soviéticos, que querem, utilizando-se da tal caveira de cristal que dá nome à película, controlar a mente de toda a população mundial para impor seus próprios valores (comunistas, é claro). 

Enquanto isso, os espectadores que se deixam envolver em mais esse perfeito delírio hollywoodiano não se são conta de que, na verdade, são os estadunidenses que, utilizando-se de sua caveira de cristal (o cinema), buscam controlar a mente de toda a população mundial para impor seus próprios valores (capitalistas, é claro).

RCTV saiu do ar outras quatro vezes antes de Chávez

A informação é do jornalista e escritor venezuelano Modesto Emilio Guerrero, neste artigo publicado hoje no jornal argentino Página 12:

"Vista la cosa en estos términos, no habría nada de que sorprenderse cuando se registra en la prensa mundial que el canal [RCTV] salió del aire por segunda vez desde 2007. Ya había salido cuatro veces entre 1976 y 1984 por violar cinco leyes y dos reglamentos. (Libro Blanco sobre RCTV, pág. 11, Ccs. 2007.)".

Ou seja: para a grande imprensa mundial, as outras quatro vezes em que a RCTV foi tirada do ar pelos governos venezuelanos anteriores ao de Chávez não foram atos tirânicos ou restrições à liberdade de expressão. Curioso.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Os desafios do socialismo do século XXI na Venezuela


William I. Robinson - California.
Entrevistado - Chronis Polychroniou

1- Há histórias alarmantes vindo da Venezuela. A fronteira está a aquecer, está a verificar-se infiltração, nova base militar colombiana próxima à fronteira, o acesso dos EUA a várias novas base na Colômbia e subversão constante. Será que o regime se preocupa com uma possível invasão? Se sim, quem está para intervir?

O governo venezuelano está preocupado acerca de uma possível invasão estado-unidense e certamente uma invasão sem rodeios não pode ser descartada. Contudo, penso que os EUA estão a prosseguir uma estratégia de intervenção mais refinada que podíamos denominar guerra de atrito. Já vimos esta estratégia em outros países, tais como na Nicarágua na década de 1980, ou mesmo no Chile sob Allende. É o que no léxico da CIA é conhecido como desestabilização, e na linguagem do Pentágono é chamado guerra política – o que não significa que não haja componente militar. Isto é uma estratégia contra-revolucionária que combina ameaças militares e hostilidades com operações psicológicas, campanhas de desinformação, propaganda negra, sabotagem económica, pressões diplomáticas, mobilização de forças da oposição política dentro do país, execução de provocações e o atear de confrontações violentas nas cidades, manipulação de sectores insatisfeitos e a exploração de queixas legítimas entre a população. A estratégia é hábil em aproveitar dos próprios erros e limitações da revolução, tais como corrupção, clientelismo e oportunismo, os quais devemos reconhecer que são problemas sérios na Venezuela. É hábil também em agravar e manipular problemas materiais, tais como escassez, inflação dos preços e assim por diante.

O objectivo é destruir a revolução tornando-a não funcional, pela exaustão da vontade da população em continuar a lutar para forjar uma nova sociedade e, deste modo, minar a base social de massa da revolução. De acordo com a estratégia dos EUA a revolução deve ser destruída fazendo com que entre em colapso por si mesma, pela minagem da notável hegemonia que o chavismo e o bolivarianismo foram capazes de alcançar dentro da sociedade civil venezuelana ao longo da última década. Os estrategas dos EUA esperam provocar Chavez de modo a que tome a posição de transformar o processo socialista democrático num processo autoritário. Na visão destes estrategas, Chavez finalmente será removido do poder através de um certo número de cenários produzidos pela guerra de atrito constante – seja através de eleições, de um putsch militar interno, um levantamento, deserções em massa do campo revolucionário, ou uma combinação de factores que não podem ser antecipados.

Neste contexto, as bases militares na Colômbia proporcionam uma plataforma crucial para operações de inteligência e reconhecimento contra a Venezuela e também para a infiltração militar contra-revolucionária, a sabotagem económica e grupos terroristas. Estes grupos de infiltração destinam-se a perturbar mas, mais especificamente, a provocar reacções do governo revolucionário e sincronizar a provocação armada com toda a gama de agressões políticas, diplomáticas, psicológicas, económicas e ideológicas que fazem parte da guerra de atrito.

Além disso, a simples ameaça de agressão militar dos EUA que as bases em si próprias representam constitui uma poderosa operação psicológica estado-unidense destinada a elevar as tensões dentro da Venezuela, forçar o governo a posições extremistas ou a "gritar lobo", e fortalecer as forças internas anti-chavistas e contra-revolucionárias.

Entretanto, é importante verificar que as bases militares fazem parte de uma estratégia mais ampla dos EUA em relação a toda a América Latina. Os EUA e a direita na América Latina lançaram uma contra-ofensiva para reverter a viragem para a esquerda ou a chamada "Maré Rosa". A Venezuela é o epicentro de um emergente bloco contra-hegemónico na América Latina. Mas a Bolívia e o Equador e mais generalizadamente os florescentes movimentos sociais e forças políticas de esquerda da região são igualmente alvos desta contra-ofensiva tal como a Venezuela. O golpe em Honduras deu ímpeto a esta contra-ofensiva e fortaleceu a direita e as forças contra-revolucionárias. A Colômbia tornou-se o epicentro regional da contra-revolução – realmente um bastião do fascismo século XXI.

2- A "Revolução Bolivariana" de Chavez tem sido muito popular entre os pobres. Poderia delinear como tem mudado a sociedade venezuelana desde que Chavez chegou ao poder?

Em primeiro lugar, vamos reconhecer que a Revolução Bolivariana colocou o socialismo democrático na agenda mundial depois de atravessarmos um período na década de 1990 em que muitos ficavam mesmo alarmados em falar de socialismo, quando parecia que o capitalismo global havia atingido o pico da sua hegemonia e quando alguns na esquerda compravam a tese do "fim da história".

A Revolução Bolivariana deu às massas pobres e em grande medida afro-caribenhas a sua voz pela primeira vez desde a guerra da independência do colonialismo espanhol. O governo Chavez reorientou prioridades para a maioria pobre. Ele foi capaz de utilizar os rendimentos do petróleo, em particular, para desenvolver saúde, educação e outros programas sociais que tiveram resultados dramáticos na redução da pobreza, eliminando virtualmente a iliteracia e melhorando a saúde da população. Organizações internacionais e agências de recolha de dados têm reconhecido estas notáveis realizações sociais.

Contudo, como alguém que visita a Venezuela regularmente, eu diria que a mudança mais fundamental desde que Chavez chegou ao poder não é a destes indicadores sociais mas sim o despertar político e sócio-psicológico da maioria pobre – um vasto processo popular de mobilização das bases, expressão cultural, participação política e participação no poder. A velha elite e a burguesia foram parcialmente substituídas no Estado e do poder político formal – embora não inteiramente. Mas o medo real e o ressentimento dos velhos grupos dominantes, o pânico e o seu ódio contra Chavez é porque eles sentiram deslizar do seu domínio a capacidade confortável de exercer dominação cultura e sócio-psicológica sobre as classes populares como o fizeram durante décadas, mesmo séculos. Naturalmente, ali ainda há outros muitos mecanismos através dos quais a burguesia e os agentes políticos do ancien regime são capazes de exercer sua influência, particularmente através dos mass media que em grande medida ainda estão nas suas mãos... e eis porque as "batalhas nos media" na Venezuela desempenham um papel tão proeminente.

Dito isto, há toda espécie de problemas e contradições internas na Revolução Bolivariana.

3- Quão generalizados são os planos de nacionalização sob Chavez e há alguma evidência até agora de que eles levam aos resultados desejados?

A grande mudança económica óbvia foi a recuperação do petróleo do país para um projecto popular – e mesmo que haja ainda uma burocrática oligarquia PDVSA. Outras empresas chaves, tais como a siderurgia, foram nacionalizadas. E o sector cooperativo – com todos os seus problemas – tem-se estendido. No entanto, vamos ser claros: o poder económico ainda está em grande medida nas mãos da burguesia.

Recordemos que a revolução venezuelana é a única em que o velho Estado reaccionário não foi "esmagado" como em outras revoluções. A estratégia da revolução tem sido erguer novas instituições paralelas e também tentar "colonizar" o velho Estado. Mas o Estado venezuelano ainda é em grande medida um Estado capitalista. A questão chave é como pode um projecto de transformação avançar enquanto opera através de um Estado corrupto, clientelista, burocrático e muitas vezes inerte legado pelo antigo regime? Se forças revolucionárias e socialistas chegam ao poder dentro de um processo político capitalista como você confronta o Estado capitalista e os travões que ele coloca nos processos transformativos? De facto, na Venezuela, e também na Bolívia e alhures, as instituições do Estado prevalecentes muitas vezes actuam para constranger, diluir e cooptar lutas de massas vindas de baixo.

Do meu ponto de vista, na Venezuela a maior ameaça à revolução não vem da oposição política de direita mas sim da chamada direita "endógena" ou "chavista" e pertencente ao bloco revolucionário, incluindo elites do Estado e responsáveis partidários, desenvolverão um interesse mais profundo em defender o capitalismo global do que na transformação socialista.

4- A revolução tem prosseguido durante mais de uma década. Está a amadurecer ou está a atingir uma etapa de declínio e deformação?

Eu não diria, em resposta à sua pergunta, que a revolução está em "declínio" ou "deformação". De preferência, precisamos ser mais expansivos na nossa análise histórica e mesmo reflexão teórica sobre o que é avançar nesta conjuntura histórica do capitalismo global do século XXI e da sua crise. A viragem à esquerda na América Latina começou como uma rebelião contra o neoliberalismo. Os regimes pós neoliberais empreenderam suaves reformas redistributivas e nacionalizações limitadas, particularmente de recursos energéticos e serviços públicos que anteriormente haviam sido privatizados. Eles foram capazes de reactivar a acumulação. Mas o pós-neo-liberalismo que actualmente não caminha em direcção a uma profunda transformação socialista, está rapidamente a atingir os seus limites.

O processo bolivariano enfrenta contradições, problemas e limitações, tal como todos os projectos históricos! Eu diria que tanto a revolução venezuelana como os processos boliviano e equatoriano podem estar a rebelar-se contra os limites da reforma redistributiva dentro da lógica do capitalismo global, especialmente considerando a actual crise do capitalismo global. O anti-neoliberalismo que não desafia mais fundamentalmente a própria lógica do capitalismo choca-se contra limitações que podem agora ter sido atingidas.

Pode ser que a melhor ou a única defesa da revolução seja radicalizar e aprofundar o processo revolucionário, pressionar pelo avanço de transformações estruturais que vão além da redistribuição. O facto é que a burguesia venezuelana pode ter sido deslocada em parte do poder político mas ainda detém grande parte do controle económico. Romper aquele controle económico implica uma mudança mais significativa na propriedade e nas relações de classe. Isto por sua vez significa romper a dominação do capital, do capital global e dos seus agentes locais. Isto naturalmente é uma tarefa hercúlea. Não há um caminho claro de avanço e cada passo gera novas contradições complexas e nós górdios. É claro que estes são assuntos que toda a Esquerda Global deve encarar.

Recordemos as lições da Nicarágua e de outras revoluções. Alianças multi-classe geram contradições desde que a etapa da lua-de-mel da reforma redistributiva e dos programas sociais fáceis alcancem o seu limite. Então as alianças multi-classe começam a entrar em colapso porque há contradições fundamentais entre distintos projectos e interesses de classe. Nesse ponto uma revolução deve definir mais claramente o seu projecto de classe; não apenas no discurso ou na política mas na transformação estrutural real.

A um nível mais técnico poderíamos dizer que as contradições geradas pela tentativa de romper a dominação do capital global não são uma falha da revolução. A Venezuela ainda é um país capitalista no qual a lei do valor, da acumulação de capital, está operativa. Esforços para estabelecer uma lógica contrária – uma lógica da necessidade social e da distribuição social – chocam-se contra a lei do valor. Mas numa sociedade capitalista violar a lei do valor lança tudo na loucura, gerando muitos problemas e novos desequilíbrios que a contra-revolução é capaz de aproveitar. Isto é o desafio para qualquer revolução orientada para o socialismo dentro do capitalismo global.
01/Fevereiro/2010
Professor de Sociologia, Universidade da Califórnia – Santa Bárbara
[**] Editor do diário grego Eleftherotypia


O original encontra-se em:
http://www.zmag.org/znet/viewArticle/23797

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O crime continua...

Da Agencia Bolivariana de Noticias (ABN):

Gaza a punto de colapso energético por bloqueo israelí

Caracas, 05 Feb. ABN.- Autoridades de Gaza alertaron este viernes que la única planta eléctrica de la franja quedará fuera de servicio esta noche, en medio del crudo invierno, si persiste la escasez de combustible ocasionada por el bloqueo de Israel.

Según un comunicado de la Autoridad de Energía de Gaza, al amanecer del sábado habrá que paralizar las operaciones de la estación generadora de electricidad debido a que Tel Aviv mantiene el impedimento a la entrada de combustible a esta franja palestina, refirió una nota de Prensa Latina.

La nota oficial pide a alcaldes de las municipalidades, al Ministerio de Salud y las dos mayores compañías de telecomunicaciones 'prepararse para lo peor', luego que el jueves en la noche ya hubo que cortar el servicio entre el 30 y el 40 por ciento del enclave.

El gobierno que encabeza el Movimiento de Resistencia Islámica (Hamas) sufre un bloqueo fronterizo arreciado por Israel desde junio de 2007, y recordó que el repentino frente frío en la región obligó a gastar el combustible que había de reserva más rápido de lo previsto.

Los israelíes no permitieron el jueves el paso de camiones cisternas con carburante por el cruce limítrofe habilitado para ello en Karni (norte), denunció el funcionario palestino Raed Fattouh.

Agregó que los volúmenes de gas doméstico y diésel transferidos por el cruce de Kerem Shalom (sureste) tampoco fueron los requeridos para mantener operativa por otra semana la referida planta eléctrica, que ahora sólo usa uno de sus cuatro generadores funcionales.

'Ese generador habitualmente suministra electricidad a la mayoría de los 1,5 millones de palestinos en Gaza durante 16 horas diarias porque no hay suficiente carburante para que trabaje 24 horas', acotó Fattouh.

La población, entretanto, trata de almacenar combustible para mantener operativos generadores privados de edificios e instituciones, pero el nivel de carencias y el drástico descenso de las temperaturas hacen que muchos hogares tengan problemas con la calefacción.

El combustible entra legalmente a Gaza desde Israel por Kerem Shalom en el sur, y la planta eléctrica sólo puede usar diésel industrial israelí, pero la población usa también el que llega de contrabando desde Egipto a través de túneles fronterizos.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Chávez e a mídia (uma e outra e outra vez)

A situação é cada vez mais preocupante na Venezuela. O presidente Hugo Chávez, em mais um de seus delírios ditatoriais, decidiu impor uma nova norma de radiofusão: quem não transmitisse seus discursos, teria sua licença de transmissão cassada. A RCTV, aquele canal de TV aberta fechado por Chávez em 2007 e que passou a funcionar apenas por cabo e pela internet, se recusou a antender legislação tão arbitrária. Resultado: o governo a fechou mais uma vez, outra mostra clara de que Hugo Chávez não passa de um louco e de que a Venezuela vive sob uma ditadura. Certo?

Errado.

Ué, mas é justamente isso que está saindo em todos os jornais, revistas e TVs do Brasil!

Pois é. Triste de nós, os leitores e espectadores brasileiros.

Chega a ser cansativo falar uma e outra e outra vez sobre a manipulação nos meios de comunicação do Brasil, especialmente quando a "pauta" é Venezuela e seu presidente. Mas não tem jeito, é uma espécie de dever cívico tentar romper o senso comum alimentado por estes veículos. Então, vamos aos fatos?

Em primeiro lugar, a nova normativa de radiofusão não foi imposta por Chávez (o que os meios querem nos fazer acreditar para colar nele a pecha de ditador). Foi uma determinação governamental para que as emissoras de TV a cabo nacionais passassem a obedecer a Lei de Responsabilidade Social em Rádio e Televisão (Resorte), aprovada em 2004 pelo Congresso (e não pelo Chávez, o ditador).

Em segundo lugar, tal lei não obriga as emissoras a transmitirem os "discursos de Chávez" (o que os meios querem nos fazer acreditar para colar nele a pecha de ditador). Obriga, sim, a transmitirem as mensagens e discursos que o Executivo nacional ache necessário, assim como mensagens culturais, educativas, informativas ou preventivas de serviços públicos selecionadas pelo governo (estas não podem superar os quinze minutos por dia).

Ora, é óbvio que dentre desses discursos e pronunciamente, também existirão os do presidente, assim como acontece em qualquer país "democrático" do mundo (ao contrário do que os meios querem nos fazer acreditar, para colar no Chávez a pecha de ditador). Isso é exclusividade da "ditadura" venezuelana?

Em terceiro lugar, o governo interrompeu o sinal da RCTV simplesmente porque ela não cumpria as novas regras. As outras seis emissoras que sofreram a mesma sanção já reconheceram estar fora da legalidade, apresentaram os documentos requeridos e prometeram se adequar à nova norma: tiveram seus sinais restabelecidos. Ou seja, é só a RCTV fazer o mesmo.

Agora, feitos tais esclarecimentos, resta debater duas questões fundamentais: uma de ordem jornalística, outra de ordem ideológica, embora as duas estejam fortemente vinculadas.

Primeira: será que os jornalistas da grande imprensa mundial, de maneira geral, e brasileira, em especial, não sabiam ou não souberam pesquisar o que era exatamente essa normativa do governo venezuelano? Será que não conseguiram descobrir que ela se baseava numa lei aprovada pelo Congresso em 2004?

Será que não foram atrás do que diz a lei para constatarem que ela não obrigava ninguém a transmitir "os discursos de Chávez"? Será que esses jornalistas não sabem que a transmissão oficial em TVs privadas ou sua regulação pelo Estado e pela sociedade são mais do que normais nos países desenvolvidos?

Será que não descobriram que a não renovação ou inclusive a cassação da licença de uma emissora é prática amplamente corrente em vários países do mundo, como explica o jornalista chileno Ernesto Carmona nos últimos seis parágrafos deste artigo?

Sim, sabiam. Se não sabiam, simplesmente não procuraram saber. E isso me leva à segunda questão fundamental: qual o interesse dos meios de comunicação brasileiros em "denunciar" os "seguidos atentados à liberdade de expressão cometidos pelo governo Chávez"? Sentido de dever público?

Bem, para responder a essa pergunta, é preciso, primeiro, discutir o que se entende por liberdade de expressão e como tem sido a política de Chávez nesse tema.

Liberdade de expressão é o direito que cada um (isso, qualquer pessoa, independente de raça, gênero, orientação sexual, religião, time de futebol etc etc) tem de transmitir suas ideias, opiniões etc. Mas o que acontece, por exemplo, nos países da América (especialmente nos EUA)? Tal liberdade só é plenamente exercida por uma minúscula, micro, minoria.

No Brasil, 11 famílias praticamente controlam todas as rádios, TVs e jornais de todo o país. Que direito realmente têm as outras 40 ou 50 milhões de famílias brasileiras de se expressarem como bem quiserem atingindo de fato um número considerável de pessoas? Virtualmente nenhum.

Ou seja, apenas 11 famílias exercem de fato a liberdade de expressão no Brasil. E são as únicas responsáveis pela formação das opiniões, valores e imaginários de toda a população. Em resumo, apenas sua ideologia (liberal-burguesa, já que elas fazem parte da elite econômica brasileira) é transmitida livremente. O pior, no caso das TVs e rádios, é que essas se utilizam de um bem público (o espaço radioelétrico) para usufruirem desse direito exclusivo (os jornais também, já que são sustentados por publicidade oficial).

Portanto, o que a grande mídia defende não é a liberdade de expressão, e sim o seu monopólio da expressão. 

Diante desse quadro, o que um governo minimamente sério deveria fazer? Democratizar a comunicação: permitir que outros grupos sociais (e não apenas uma minoria) tenham a possibilidade de expressar suas ideologias e valores. 

Ou seja, independentemente da desobediência ou não de algum aspecto legal por parte de uma grande emissora, a transferência de sua concessão para outro grupo social que seja mais representativo da sociedade implica em ampliação da liberdade da expressão, e não sua restrição.

E o que vem acontecendo na Venezuela? Além da não renovação da concessão pública da RCTV em 2007 (baseada em infrações graves à legislação de comunicação de qualquer país "democrático" do mundo, como o apoio aberto e ativo a um golpe de Estado), e da tentativa permanente de se quebrar esse monopólio midiático, o governo Chávez estimulou e estimula o surgimento e o fortalecimento de inúmeras iniciativas de comunicação popular, como jornais, rádios e canais de televisão comunitários, além de redirecionar uma parte da publicidade oficial para meios independentes e alternativos.

Ou seja, na Venezuela, nunca houve tanta liberdade de expressão. E é isso o que os meios de comunicação brasileiros mais temem que aconteça por aqui.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Quem mesmo está gerando prejuízos e destruição para a sociedade brasileira?

Do Passa Palavra:

Quem mesmo está gerando prejuízos e destruição para a sociedade brasileira?

30 de Janeiro de 2010  
As ocupações são a única alternativa deixada pelo Estado e pelas grandes empresas para as famílias desesperadas, pela miséria e pela fome, reivindicarem o cumprimento da função social da terra e divulgarem para a opinião pública estas injustiças. Por Passa Palavra

A situação dos trabalhadores rurais na macro-região de Iaras, estado de São Paulo, onde se localiza a fazenda Capim (dentro do Complexo Monções, de terras da União) [1], é extremamente grave há décadas. Em uma região com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) semelhante ao de países como a Palestina, segundo o PNUD, lá vivem milhares de famílias sem-terra há anos passando dificuldades, incluindo fome e miséria. Conforme nos afirma o professor de Geografia Agrária da USP, Ariovaldo Umbelino, baseando-se no último Censo Agropecuário de 2006: “na região há 200 mil hectares de terras da União que vêm sendo sistematicamente griladas” [2]. Este quadro só torna ainda mais absurda a longa permanência de extensas terras públicas griladas especificamente pela poderosa transnacional Sucrocítrico Cutrale. Terras públicas que há muito tempo deveriam estar voltadas à reforma agrária, mas, ao contrário, permanecem sob o ilegítimo grilo da multibilionária empresa de exportação de laranjas – que controla cerca de 60% do mercado mundial de laranja, sendo a maior empresa do mundo neste ramo que, no Brasil, exporta mais de 90% de sua produção para o mercado estrangeiro.
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Um cartum de Carlos Latuff

A ocupação da fazenda grilada Capim, realizada em outubro de 2009, não foi a primeira, nem a segunda, nem a terceira que buscava chamar a atenção para a absurda grilagem de terras públicas feita exatamente pela transnacional Cutrale. As ocupações denunciavam também a parcialidade da Justiça e do Executivo, extremamente lentos para arrecadar terras ou recuperar áreas da União griladas, porém extremamente ágeis na hora de reprimir e criminalizar os trabalhadores rurais sem-terra. Ao invés de se inverter as prioridades, o que temos visto nos últimos dias é um acirramento da repressão e do terror contra aqueles que lutam com muito custo para se manter no campo, viver e produzir com dignidade – ao invés de incharem ainda mais as já super-populosas cidades brasileiras. A resposta do Estado, no entanto, associado à grande imprensa e a serviço do agronegócio, é fortalecer ainda mais um modelo agrícola excludente e insustentável sócio-ecologicamente, agravando, em consequência, ainda mais o cenário de desequilíbrio ambiental e de calamidade social que temos vivido nos últimos tempos, principalmente nas grandes cidades brasileiras.
Ora, todas estas ocupações não são feitas sem um profundo conhecimento da região, de sua estrutura agrícola desigual, do cotidiano local e das necessidades das pessoas que lá vivem. Conforme o quadro abaixo, com dados oficiais do Incra, podemos verificar que esta empresa do agronegócio, mesmo monopolizando o bilionário setor mundial de laranjas e sucos, tem se especializado há anos em grilar médios e grandes latifúndios no estado de São Paulo. E mais do que isso: especula nestas terras de acordo com o interesse de seus donos e acionistas, e apenas produz quando e quanto bem interessa para os cálculos do seu monopólio de mercado.
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A Cutrale, junto com a Louis Dreifus e a Citrovita, vem sendo investigada pela Polícia Federal há mais de 5 anos por prática de cartel, o que estaria sendo feito há mais de 10 anos. Um cartel que, sabemos, definiu preços e datas de compra de laranjas dos citrocultores nacionais, arruinando diversos pequenos e médios produtores de laranjas, concentrando o lucro para a empresa e socializando os prejuízos entre os sem-terra, os pequenos e médios produtores e a população pobre em geral. De maneira previsível, a mesma justiça que criminaliza rapidamente o MST atravanca, ou é extremamente morosa, quando se trata de investigar a fundo as acusações que recaem sobre as grandes empresas.
Uma gigante destas definitivamente não precisaria grilar terras, muito menos terras públicas, em detrimento da condição de vida das milhares de famílias pobres e miseráveis sem-terra da região. E por que então grilam??? E por que seguem impunes??? E por que a grande imprensa não denuncia estes terríveis prejuízos para pequenos e médios agricultores, para os ecossistemas das regiões e para a própria União???
Vale a pena citar aqui um pequeno trecho de artigo recente do já referido professor da USP, Ariovaldo Umbelino, sobre a prejudicial atuação de empresas como a Cutrale para o desenvolvimento rural brasileiro:
“Hoje são apenas quatro grupos que controlam toda a laranja: Cutrale (mais ou menos 60%); Citrosuco; Louis Dreifus Commodities – LDC (francesa); e Citrovita, da Votorantim.
A Cutrale tem esse poder todo porque possui uma empresa associada (joint venture) à Coca-Cola mundial nos EUA, de quem é fornecedora exclusiva em escala mundial. Por isso sua condição de empresa “Ltda.”, pois já é parte (menor) do monopólio mundial da Coca-Cola.
Numa reportagem de 2003, a insuspeita revista Veja denunciou a empresa Cutrale de ter subsidiária nas ilhas Cayman, como forma de aumentar seus lucros, ou quem sabe de evasão fiscal… e saiba Deus mais o quê.
O resultado de todo esse processo foi que milhares de pequenos e médios agricultores tiveram que abandonar a produção de laranja. Entre 1996 e 2006, foram destruídos, segundo o Censo Agropecuário do IBGE, somente em São Paulo, nada menos do que 280 mil hectares de laranjais. Mas a Globo não fez nenhuma reportagem. Nem o serviço de inteligência da PM de São Paulo se preocupou em filmar porque os pequenos e médios agricultores estavam destruindo seus laranjais!
Bem… Nós sabemos que os interesses de empresas como a Cutrale e outras afins, controladas por grandes empresários das altas rodas nacionais e internacionais, confluem com os interesses da grande imprensa (que é patrocinada por eles), da grande maioria dos políticos (financiados eleitoralmente por estas empresas), e da maior parte do aparato repressivo do Estado (que trabalha para defender estes interesses, e por eles também são pagos de maneira oficial e extra-oficial) [3].

O espetáculo da criminalização e suas brechas
As imagens desta ocupação e agora destas prisões, espetacularmente veiculadas e forjadas pela grande imprensa (numa “parceria” direta com a polícia) com o intuito de criminalização dos trabalhadores rurais sem-terra e do seu movimento, ao menos não conseguiram esconder de toda sociedade brasileira a absurda existência desta grilagem de terras públicas e destas brutais injustiças decorrentes, exatamente numa região com população extremamente pobre e carente de terras para viver e para produzir. Uma área onde vivia, por exemplo, dentre milhares de histórias semelhantes, a militante do MST, Maria Cícera Neves, que estava há cerca de 9 anos acampada em lona preta e barraco, lutando por um pedaço de chão, quando morreu em agosto de 2009 atropelada por um caminhão enquanto marchava rumo à São Paulo para reivindicar seu direito à terra. Esta história saiu apenas como uma nota de rodapé nestes jornais impressos e telejornais, os mesmos que veiculam incansavelmente que a derrubada de cada pé de laranja daquele imenso e insustentável deserto verde monocultor “era como se o trator passasse por cima de cada um de nós, de toda a sociedade brasileira”, nas palavras deste grande ser humano e grande cidadão brasileiro que é Ronaldo Caiado [4].
Ao não possibilitarem a reforma agrária e não promoverem a democratização do acesso à terra no Brasil, os grandes latifundiários, as grandes empresas grileiras do agronegócio e o próprio Estado, coniventes com tudo isso, não deixam outra alternativa aos milhões de famílias trabalhadoras rurais sem-terra do país, senão a denúncia e a luta pelos seus direitos por meio do recurso legítimo à ocupação de terra e, em alguns casos de necessidade extrema, da legítima desobediência civil. As ocupações são a única alternativa deixada pelo Estado e pelas grandes empresas para as famílias desesperadas, pela miséria e pela fome, reivindicarem seu direito constitucional e o cumprimento da função social da terra, e divulgarem para a opinião pública estas injustiças. Assim como o trabalhador na cidade não tem outra alternativa, diante da exploração, senão parar a produção das empresas em que trabalha ou a circulação de carros e mercadorias pelas ruas (secas ou alagadas) e, assim, chamar atenção da opinião pública para seus gravíssimos problemas. Sim, isso gera prejuízos, sobretudo à imagem e à reputação de políticos e empresários – que outra linguagem não entendem. A história tem demonstrado que as pequenas conquistas dos trabalhadores só têm vez quando estes tipos de pressões legítimas acontecem, e que de outra maneira as “respostas” vêm sempre no sentido de abafar e reprimir – violentamente – tais manifestações.
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Porém, após estes últimos episódios, a imagem da Sucocítrico Cutrale nunca mais será a mesma, já que agora boa parte do povo brasileiro sabe que ela se utilizou, e se utiliza, de terras públicas griladas para acumular bilhões de dólares nas mãos de sua família de proprietários (os Cutrale já apareceram no ranking de maiores bilionários do mundo, segundo a revista Forbes, embora cada vez menos queiram visibilidade), enquanto milhares de famílias de trabalhadores sem-terra continuam sequer sem um pedaço de chão para viver e produzir, logo ali, na sua vizinhança.
Por outro lado, exatamente pelo fato das legítimas e pacíficas ocupações escancararem esta inconveniente realidade, fica clara também a sintonia com que os mesmos grandes latifundiários, as grandes empresas transnacionais, a grande imprensa e setores coniventes do Estado (todos que se beneficiam desta festa) procedem a um processo de inversão da realidade, ao propagarem que os “verdadeiros criminosos” são os pequenos trabalhadores rurais sem-terra: forjando imagens, deturpando fatos e manipulando declarações com o intuito de demonizar os sem-terra [5].
Já em plena disputa eleitoral, e tendo emplacado (mais uma!) “CPI do MST”, exatamente para fins eleitorais e de barganha de poder, não tardarão em aparecer novas e as mais variadas denúncias, divulgadas com estardalhaço pela grande mídia. Os trabalhadores rurais sem-terra aparecerão nestes órgãos de imprensa e nas suas páginas (policiais) como aqueles que geram prejuízos para grandes empresas (estas sim,“exemplares”), para os cofres “públicos” e até mesmo para o “meio-ambiente” – como no caso da “terrível” derrubada de pés da monocultura de laranja. Enquanto bilionários banqueiros seguem impunes (como Daniel Dantas, Salvatore Cacciola e tantos outros), recebendo um habeas corpus atrás do outro; enquanto políticos-panetones [6] se mantêm em seus altos cargos; e enquanto o agronegócio avança na destruição da Amazônia e de tantos outros biomas (como o Cerrado e o Pantanal), mesmo diante de tudo isso, as imagens punitivas que vemos espetacularmente nas TVs são as de trabalhadores pobres sendo criminalizados, presos e muitas vezes assassinados por um aparato policial cada vez mais violento, no campo e nas periferias urbanas. Infelizmente nós sabemos que o preço da rebeldia e da resistência contra tantas injustiças é altíssimo, e quem o está sentindo na pele neste momento são justamente os militantes do MST, sobretudo aqueles que tiveram suas prisões – obviamente políticas – consumadas.

O Estado reprime quem resiste à injustiça
Basta ver o estado das casas e barracos dos trabalhadores rurais que foram presos nesta espalhafatosa “Operação Laranja” e compará-lo com as mansões dos proprietários e acionistas da Cutrale para sabermos quem está gerando injustiça e prejuízo ao país, à sociedade, ao nosso meio-ambiente e à democracia. No entanto, ao invés da denúncia dos crimes da Cutrale, da cobrança pela urgente retomada das terras públicas da União, e da distribuição delas para as milhares de famílias rurais pobres que realmente necessitam, a grande imprensa tenta construir a imagem de que os criminosos são os trabalhadores e os seus movimentos sociais, para isso atuando cada vez mais junto à polícia.
O MST em Manari, foto de Leo Caldas
O MST em Manari, foto de Leo Caldas

É óbvio que, com o crescimento das desigualdades sociais no campo brasileiro, e a falta de alternativas criadas aos milhões de famílias de trabalhadores rurais sem-terra (senão o êxodo rural e o inchaço ainda maior dos bolsões de miséria nas grandes cidades), devido à insistência num modelo agrícola concentrador e depredador da natureza, obviamente a tendência é a pressão da população pobre do campo aumentar ainda mais, cada vez mais. Em contraposição à política de repressão e criminalização dos movimentos sociais, o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), aprovado recentemente pelo Presidente da República, tem entre os seus objetivos estratégicos “a utilização de modelos alternativos de solução de conflitos, de modo a, entre outras ações programáticas, fomentar iniciativas de mediação e conciliação, estimulando a resolução de conflitos por meios autocompositivos, voltados à maior pacificação social e menor judicialização”. Infelizmente, ao invés disso, o que temos visto na prática aqui no estado de São Paulo e em outros estados [7] é o acirramento do caminho da intolerância por parte da Polícia Civil e Militar, da grande mídia e de outros braços ligados ao agronegócio: o aumento da criminalização, da policialização e da repressão dos trabalhadores pobres, intensificando-se assim ainda mais os conflitos.
IMPORTANTE:
Enquanto escrevemos esta matéria, no dia 29/01/2010, tomamos conhecimento que mais militantes do MST foram presos, nesta madrugada, numa ação de “prisão preventiva” realizada em Santa Catarina. Entre eles está uma das lideranças locais do MST, Altair Lavratti.
A impressão que dá, para muitos de nós, é a de que enquanto não acabarem de devastar todas as nossas terras, florestas e rios; enquanto não desmatarem e poluírem com trilhões de litros de agrotóxicos todas as áreas e biomas possíveis; e enquanto não expulsarem e criminalizarem todos os trabalhadores e trabalhadoras rurais do campo – agravando assim ainda mais todos os inúmeros problemas já vividos nas cidades, incluindo o desequilíbrio sócio-ambiental e a própria criminalização dos pobres e negros da cidade; enfim, enquanto estes senhores não acabarem de destruir o campo brasileiro e fazerem explodir as cidades, eles não se darão por satisfeitos, utilizando-se para isso de todos os recursos possíveis e imagináveis (incluindo “reportagens”, prisões e às vezes até assassinatos) contra aqueles que tentam permanecer e produzir dignamente no campo, criando outro modelo de sociabilidade e de produção agroecológica para o país.
E, de fato, estão conseguindo: o mundo parece estar desabando e desaguando sobre as nossas cabeças, sobretudo da população mais pobre, de ascendência indígena e negra no Brasil. E aos que se levantam e resistem a este verdadeiro “projeto de destruição”, a estes continua a ser destinado o chicote, os grilhões, as celas e as balas. Passa Palavra

NOTAS
[1] União é a pessoa jurídica de Direito Público representante do Governo Federal, no âmbito interno, e da República Federativa do Brasil, no âmbito externo.
[2] Grilagem é o método pelo qual grandes fazendeiros falsificaram títulos de cartório para se apropriar das terras públicas. O nome se deve pelo fato de colocar-se títulos falsos em uma gaveta ou baú fechado com um grilo dentro, que ao morrer expele certas substâncias que dão ao papel a aparência de envelhecido. Esse método foi muito comum no interior do estado de São Paulo e data de 1856, data final para que os possuidores de terra registrassem sua posse nos termos da Lei de 1850 (esta lei proibia a ocupação de terras do Estado, a não ser por meio de compra, inviabilizando assim que negros e trabalhadores imigrantes e pobres tivessem a posse da terra, obrigando-os a se submeterem às formas de trabalho impostas pelos grandes fazendeiros).
[3] Em 2006 a Cutrale financiou, via doações que totalizaram R$ 2 milhões, a campanha de 55 candidatos, tais como os parlamentares que votaram pela CPI do MST, Arnaldo Madeira (PSDB/SP) que recebeu R$ 50.000,00, Carlos Henrique Focesi Sampaio, também do PSDB paulista, e Jutahy Magalhães Júnior (PSDB/BA), obtiveram cada um R$ 25.000,00 para suas respectivas campanhas. Nelson Marquezelli (PTB/SP) foi beneficiado com R$ 40.000,00 no mesmo período. A lista dos candidatos que receberam doações da Cutrale pode ser obtida em http://www.mst.org.br/node/8460
[4] Ronaldo Caiado foi um dos fundadores e é ainda hoje um dos maiores símbolos da UDR (União Democrática Ruralista), uma associação de grandes latifundiários, grupos paramilitares de fazendeiros, e representantes do agronegócio. Deputado Federal pelo partido conservador DEM do estado de Goiás, comanda a chamada “Bancada Ruralista” no Congresso Nacional.
[5] Imagens como a aparição de tratores despedaçados, entre outras grandes máquinas, impossíveis de serem quebradas durante uma ocupação de terra, conforme afirma o movimento, conformaram um cenário montado imediatamente depois da saída dos integrantes do MST da Fazenda Capim, em outubro de 2009. No entanto, foram exatamente estas imagens as que mais circularam pela grande imprensa, sem a garantia de espaço para a versão dos sem-terra sobre elas.
[6] Referência ao atual governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, que, tendo sido flagrado por câmeras no momento em que recebia propina [suborno, ou “luvas”] de empresas que coadunavam com o seu governo, alegou que o dinheiro seria destinado à doação de panetones [equivalentes ao bolo-rei português] para a população carente no período do natal.