sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

O ano, enfim, começou

Como no Brasil, o ano na Bolívia só começa depois do carnaval. No fim de 2007, todos previram que 2008 ia ser quente. No entanto, até esta semana, nada de muito importante ou decisivo tinha acontecido.

Mas pode-se dizer que ontem o ano começou. Depois de muito lenga-lenga de um diálogo entre governo e oposição que desde o início estava fadado ao fracasso, levando em conta o contraste de visões dos dois lados, o Congresso aprovou a convocação do referendo ratificatório da nova Constituição e outro sobre um artigo dela, que diz respeito ao tamanho máximo que um latifúndio poderá ter.

De tempos em tempos, o MAS (o partido do governo) ganha pontos com os movimentos sociais que, mesmo apoiando em massa o Evo, não gostam nada quando o governo dialoga com a direita. Por outro lado, muitas vezes parece que o MAS tenta ganhar tempo, mostrando que está aberto ao diálogo e que a oposição nunca recua. Aí, quando as negociações não avançam e a pressão social cresce, eles tomam as medidas radicais, justificando-as com a intransigência da direita.

Agora, é esperar para ver. As regiões opositoras vão seguir com seus estatutos autonômicos e estão chamando para o desconhecimento dos referendos. Mas ainda não se sabe se vão votar pelo "não" à Constituição ou se vão pregar a abstenção.

O "sim" deve ganhar nacionalmente, mas regionalmente deve perder em quatro ou cinco regiões (de nove). Isso pode fazer com que estas mesmas regiões ponham em dúvida a legitimidade da Constituição. Podem dizer que eles votaram contra e, portanto, as novas normas não se aplicam a eles. E é bem capaz que se fale até em separatismo - não mais timidamente, como se discute agora.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

O abominável homem das neves



Tem momentos que quase me convenço de que sou uma aberração. Um extra-terrestre. Hoje, entrei, uma vez mais, num dos poucos ônibus que existem em La Paz (já que a maior parte do transporte é feito por vans ou táxis) e simplesmente não coube dentro dele.

Não tinha assento disponível, tive que ficar em pé. Pescoço torto, a cabeça virada pra direita, quase na horizontal, e os demais passageiros olhando e certamente pensando: “esse cara deveria estar num circo”.

A Bolívia é para pessoas baixas. Ou, pelo menos, não para as muito altas. A média de altura do boliviano deve ser 1,60, 1,65. Nas vans, muitas vezes minhas pernas quase arrebentam o encosto do assento da frente.

Quando entro num táxi (que é barato aqui), o motorista põe todo para trás o banco que estava lá na frente, e quase sempre faz o comentário: “Graaande, hein?”, seguido de uma risadinha. Sorrio aquele sorriso amarelo e respondo: “pois é, hehe”, mas pensando algo do tipo: “sou grande sim, seu gnomo, algum problema?”. Ainda bem que sou um cara calmo.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

A salchipapa


Em foto enviada por Mateus Alves.

Dança da sedução



Sobre a Cueca, dança típica aqui da Bolívia (descobri que do Chile também) que eu descrevi no post "Gota de Agua", encontrei esse trecho no livro "Metal del Diablo. La Vida del Rey del Estaño", do boliviano Augusto Céspedes:

"Varios caballeros bebían en la pieza. Uno bailaba una cueca al son del piano, auroleando con el flamear de su pañuelo la cabeza de la Josefa, cuyas polleras giraban como trompo de moaré".

A cena passa por volta de 1880, em Cochabamba.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O grande encontro

A atração era mútua e já durava meses. A vi pela primeira vez na rua, na esquina da 6 de agosto com a Rosendo Gutiérrez. Eu tinha acabado de sair do cinema. Olhei pra ela, ela para mim. Seu cheiro me chamou a atenção na hora.

Desde então, nos cruzamos diversas vezes, quase sempre na rua. De vez em quando, em alguma lanchonete da cidade. Mas nunca passávamos do contato visual. A atração crescia a cada encontro. Até que ontem, na Villa San Antonio, na periferia de La Paz, nos vimos novamente.

Não teve jeito. Não deu pra segurar. Depois de tanta espera, finalmente experimentei a salchipapa, um potinho de salsicha e batata frita, vendido em cada esquina e que faz o maior sucesso entre os paceños.

Não me arrependi.

O cerco ao Congresso começou...

... e os movimentos falam até em tomarem o Parlamento.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Yo, sí puedo

Subir, subir, subir. Até a Villa San Antonio, bem no alto do morro. Acabei de ir até lá, visitar uma aula que faz parte do programa de alfabetização do governo. É a típica periferia. Casas bem simples, sem acabamento. E o local das aulas é uma escola infantil meio que caindo aos pedaços.

Mas é emocionante. A classe cheia de pessoas, umas trinta talvez. A maioria, idosos. A maioria, mulheres. A maioria, cholas, como são chamadas as típicas indígenas do altiplano. Pele morena, cabelo idem, comprido, geralmente com tranças. Pollera (aquelas saias grandonas), um grande xale sobre os ombros, chapéu-coco e o aguayo, um pano que elas penduram nas costas e que levam de tudo, de comida a recém-nascidos.

Ao contrário do comportamento que geralmente se espera delas, as cholas não estavam nada tímidas diante da presença dos visitantes. Sorriam, falavam, brincavam. Quando encostei sem querer no interruptor e deixei a sala às escuras, gargalharam.

Talvez fosse a felicidade de estarem aprendendo a ler e a escrever.

O governo boliviano usa o método cubano Yo, sí puedo, que erradicou o analfabetismo na ilha e ajudou a fazer o mesmo na Venezuela. Até agora, a Bolívia já alfabetizou mais da metade dos iletrados.

As alunas quase sempre dizem a mesma coisa. Agora, não serão mais humilhadas, não serão mais enganadas. Umas querem ler a Bíblia, outras, jornais. Todas querem participar, depois de terminado o curso, do programa de pós-alfabetização.

Agora, não querem mais parar de estudar.

Cerco ao Congresso

Amanhã (terça), o dia promete ser quente aqui em La Paz. Os principais movimentos sociais anunciaram que irão fazer um cerco ao Congresso se este não convocasse até hoje o referendo para aprovar a nova Constituição.

Vamos ver o que passa. Como sempre, em manifestações desse tipo por aqui, espera-se milhares de pessoas, quando não dezenas de milhares. Por seu lado, a oposição certamente chamará a base de Evo de antidemocrática.

De qualquer forma, devo ir até lá e escrever uma nota pro site do Brasil de Fato. Acompanhem.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Alguém já viu este filme?

No site do Brasil de Fato, uma entrevista que fiz com o Ministro de Governo da Bolívia sobre as denúncias de espionagem por parte dos EUA. E ainda tem os que dizem que é tudo paranóia.

Latinoamérica

Um blog bacana sobre a América Latina, da Mari Del Grande, ex-colega de faculdade, e de uma amiga dela, a Marisa. Como elas mesmas descrevem, é pra quem vê o continente de um jeito diferente do senso comum.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Cuzco ou Cusco?

Outro dia, li na Pukara, uma revista aqui de La Paz que trata a questão indígena, um artigo de um historiador boliviano (não me lembro seu nome, pois já não tenho mais a revista) que levantava a polêmica sobre a grafia correta da antiga capital do Império Inca: Cuzco ou Cusco?

Com “z”, a palavra seria de origem quéchua, língua indígena que é tida como a oficial na era dos incas, e seu significado seria “umbigo do mundo”. Com “s”, a origem seria aymara, idioma ainda bastante falado no altiplano boliviano, e a palavra significaria lechuza, coruja em espanhol.

Para o historiador, embora o quéchua de fato acabou sendo a língua oficial dos incas, o idioma usado no início da civilização era o aymara. Portanto, o correto seria Cusco. Ele reforça sua tese dizendo que a tradução de Cuzco para “umbigo do mundo” é apenas uma suposição, enquanto Cusco para lechuza é uma certeza.

Bem, não sei qual o correto, mas, puxando a sardinha para o lado da cidade onde vivo, a partir de agora escreverei Cusco, com “s”. E farei aulas de aymara, pra ver se cusco quer dizer coruja mesmo. (E tentarei descobrir por que raios dariam o nome de coruja para uma cidade)

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Que Ekeko nos proteja



Ele se chama Ekeko. É o deus da abundância. Se você tiver uma imagem dele em sua casa, e periodicamente realizar oferendas em sua homenagem, nunca te faltará nada.

Para celebrar a tal divindade, os bolivianos inventaram, há muitos anos, a Feira das Alasitas, onde são vendidas miniaturas de todo tipo. Em La Paz, é uma das festas mais tradicionais. Pra variar, mais uma celebração do país com fundo religioso.

(É impressionante como aqui, num país bem católico, o catolicismo foi “invadido” pelas tradições religiosas indígenas. É como se os colonizados tivessem dito: “tudo bem, vocês querem impor sua religião, mas vamos fazer do nosso jeito”. A Igreja reprimiu, inquiriu, resistiu, mas no fim foi obrigada a se resignar com os fortes elementos religiosos locais.)

O dia 24 de janeiro é o dia oficial da feira, mas é apenas quando ela começa. Nesse dia, barraquinhas de miniaturas se espalham por toda a cidade. Deve-se comprar algumas, benzê-las (as benzedeiras também se espalham por toda a cidade) e oferecê-las a Ekeko.

Depois do dia 24, a feira continua por semanas, mas concentrada apenas em um local. Hoje fui até lá dar uma olhada. É impressionante a quantidade de barraquinhas e de pessoas que por lá circulam.

Quanto às miniaturas, há do que você quiser. Casas, malas, notas de dinheiro, eletrodomésticos, jornais, bolsas, sacolas, cigarros, diplomas, passaportes, animais, garrafas, armazéns, carros, materiais de construção, pratos, galheteiras, produtos de limpeza etc etc etc. Até pãezinhos (de verdade) uma senhora vendia numa grande cesta.

Eu não vejo muita graça em miniaturas. Mas, por via das dúvidas, comprei algumas. Vai saber.

ps: na foto, Ekeko.

Criaturas exóticas

São quase todos iguais. Chapéu na cabeça, uma roupa despojada, mochila nas costas, máquina fotográfica pendurada no pescoço. Até aí, tudo bem, quem nunca foi turista? Mas o que não dá pra entender nos gringos que visitam La Paz é o motivo de boa parte deles usar chinelos (não poucas vezes, acompanhados de bermudas).

La Paz, mesmo no verão, é fria. Tirando os poucos dias em que, sem nenhuma nuvem no céu, com um sol bem forte, a temperatura chega a uns 20 graus, o resto do tempo não faz mais que 12, 14 graus.

Talvez eles pensem: “estamos na América do Sul, nos trópicos, me recuso a pôr um tênis”.

Aí fica aquela cena ridícula do cidadão de sandália, bermuda e um casaco de lã de alpaca que provavelmente acabou de comprar em alguma lojinha do centro da cidade.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Chapare Libre

Pegue uma jarra de vidro. Coloque um pouco de singani (talvez você tenha que vir até a Bolívia pra conseguir uma garrafa). Despeje um tanto de Amaretto. Jogue depois um outro tanto de Sprite. Dê aquela misturada. Por fim, um punhado (a gosto) de folhas de coca (provavelmente você necessite de outra viagem para a Bolívia).

Está pronto seu Chapare Libre.

ps: Chapare é uma região boliviana conhecida por suas plantações de coca e por sua luta contra as políticas repressivas anti-drogas, que querem erradicar o cultivo.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Produto de importação

Ditado contado certa vez por Vicky, senhora que, junto com o marido e os três filhos, me hospedou nas minhas primeiras duas semanas em La Paz:

Existem as novelas brasileiras, que são excelentes
Existem as argentinas, que são boas
Existem as mexicanas, que são ruins
Existem as colombianas, que são péssimas
E existem as venezuelanas

ps: atualmente, numa das principais redes de televisão daqui, tá passando Cobras e Lagartos. Vicky não perde um capítulo.

ps2: Vicky não é a ñatita da matéria abaixo

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Faz sentido

Piada que acabei de ouvir de Mario Quintanilla, quem entrevistei sobre denúncias de espionagem estadunidense na Bolívia:

"Sabe por que nunca houve um golpe de Estado nos EUA? Porque lá não tem embaixada dos EUA".

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Ñatitas






Domingo, acabei um livro chamado Potosí 1600, de Ramón Rocha Monroy, considerado um dos principais autores bolivianos. É daquelas obras de ficção com rigor histórico. Como o nome revela, trata da cidade de Potosí, na Bolívia, em torno de 1600.

Pra quem não lembra das aulas de história (ou simplesmente não ouviu falar, porque o resto da América Latina é mesmo negligenciado na escola), foi daí que saiu a maior parte da prata sul-americana para o Império espanhol.

Por um tempo, Potosí foi considerada o centro do mundo. Era tanta a riqueza extraída de suas minas que até se criou a expressão "vale um Potosí" para se referir a algo de muito valor.

Enfim, o livro conta, de uma forma muitas vezes sarcástica, a degradação da sociedade que vivia ali em meio a tanta punjança.


Entre os trechos que me chamaram a atenção, está um que fala de uma antiga tradição andina, a Festa das Ñatitas:

"Los indios le hacían reverencias y el Viejo repetía que ellos ocultan calaveras que obran milagros, en particular las de muerte violenta y sin sepultura, como que se rumoraba que Mayta era el preste anual de la Fiesta de las Ñatitas, celebrada en la octava del Día de Difuntos".
Cerca de 400 anos depois, tive a sorte de presenciar uma das edições da tal festa. Ei-la:

Brasil de Fato, edição 246 (de 15 a 21 de novembro de 2007)

O culto popular às ñatitas, entre a fé indígena e a católica

Milhares de bolivianos rendem culto a crânios humanos, aos quais são atribuídos poderes sobrenaturais

Igor Ojeda
de La Paz (Bolívia)

De gorro marrom-claro e óculos de grau, é por volta do meio-dia que Agustina chega, um tanto apressada, ao Cemitério Geral de La Paz. Está atrasada. Há cerca de 20 minutos, o padre local acabara de celebrar a última missa.
Num dia como este, um 8 de novembro de sol forte, presenciar tal cerimônia é imprescindível. Menos mal que Agustina chega a tempo de ser benzida. Caso contrário, as conseqüências poderiam ser desastrosas para quem a acompanha ao cemitério. Ou melhor, para quem a carrega.
Pois, há pelo menos 40 anos, Agustina já não pode caminhar sozinha. Ela está dentro de uma caixa de vidro. Além do gorro e do óculos, traz sobre ela uma coroa de flores. Na cavidade de seus olhos, chumaços de algodão.
Agustina é uma ñatita. Melhor dizendo, Agustina é um crânio. Um crânio de verdade.
Mais do que tudo, Agustina é parte de uma impressionante tradição de se celebrar os mortos numa Bolívia cada vez mais invadida pelas abóboras do Halloween estadunidense. É a Festa das Ñatitas.
Mas, diferentemente do "Dia das Bruxas" boliviano, quando se testemunha crianças brancas fantasiadas, da classe média para cima, levadas por seus pais a pedirem "doces ou travessuras" pelas ruas da cidade, a celebração das Ñatitas é, sobretudo, popular.
No Cemitério Geral de La Paz, os rostos, os cabelos, os gestos, as falas, as roupas, são indígenas, são dos da classe baixa. Todo 8 de novembro, no encerramento da "Festa de Todos os Santos", aproximadamente cinco mil dos de baixo aparecem para a celebração. O que significa que, como Agustina, outras milhares de caveiras – ou ñatitas, como são chamadas – se fazem presentes, carregadas por seus donos. Donos que carregam consigo, antes de tudo, uma fé inabalável.
"Ela nos protege de todos que querem nos fazer mal. Cuida da casa. Às segundas-feiras, a velamos, acendemos velas, fazemos com que masque folha de coca. Fazemos pedidos. Para que não nos falte nada. Outras pessoas vêm a nossa casa para acender velas a ela, quando tem alguém doente na família... Quando as pessoas perdem dinheiro, ela faz aparecer, quando têm problemas, ela os soluciona", explica Reubel Santos, o homem de cerca de 40 anos que conseguiu fazer com que Agustina recebesse a água benta a tempo.
Ele conta que sua ñatita é um antepassado distante e que, no passado, pertencia a seus avós. "Ela nos acompanha há 10 anos, é mais uma da família", diz, num misto de orgulho e carinho.

Tradição andina

Ñatitas , "caveirinhas com nariz chato", em aymara, são almas que ainda não deixaram o mundo dos vivos. Atribui-se a origem de tal culto a épocas pré-coloniais, no altiplano boliviano. Os crânios de posse das famílias são, geralmente, de desconhecidos, embora muitas vezes possam ser de parentes e amigos.
Os próprios fanáticos os recolhem, em cemitérios ilegais, em covas abandonadas, ou os compram de coveiros que os desenterram de tumbas clandestinas.
As ñatitas desconhecidas se comunicam com os vivos através dos sonhos destes. Assim, numa noite bem-sucedida e bem dormida, pode-se descobrir o sexo, a idade e, principalmente, o nome da caveira, com o qual ela será batizada. É através dos sonhos também que uma ñatita comunica a seu dono a chegada de doenças ou desgraças. Além de tudo, as "almitas", como também são conhecidas, realizam desejos.
A cada 8 de novembro, para que mantenha seus "poderes", a ñatita deve ser levada ao cemitério para ouvir missa e ser benzida. Mas isso não significa que, durante o resto do ano, ela pode ser negligenciada. Regularmente, deve-se acender velas e oferecer flores em sua homenagem. Do contrário, tragédias podem ocorrer, e os sonhos não mais virão.
Para que nada de mal lhes aconteça, Sofía e María Aranda, mãe e filha, mantém em sua casa um altar especialmente para Vicky. "Acendemos velas a ela todas as segundas-feiras, e fazemos pedidos. É muito milagrosa. Tudo que queremos, ela nos proporciona. Em relação à saúde, ao estudo, ao trabalho... ela também cuida da casa. O que eu peço, se peço com fé, Vicky me dá", garante Sofía.
Falecida há quatro décadas, Vicky era uma amiga da família. "Tiramos do cemitério", conta, naturalmente, María.
Fé é o que não falta a Josejina Luna, que, pelo segundo ano seguido, traz, em uma caixa de madeira e vidro, Lucas, Ricardo e Cirilo, ñatitas antigas na família. Eram do seu bisavô, antes de pertencerem a seu avô e a ela própria.
Durante o ano, ficam em seu quarto. "Falo com elas, e, às duas, três da manhã, elas fazem barulho. Se uma pessoa tem fé, elas aparecem no sonho", conta Josejina, que se sente protegida. "Eu sempre deixo minha casa sozinha e nunca entrou ladrão".

Sincretismo

Por atribuírem poderes sobrenaturais às ñatitas, seu culto foi, durante muito tempo, proibido pela Igreja Católica, e era realizado quase que clandestinamente. Por isso mesmo, impressiona a fusão da tradição religiosa andina com o catolicismo proporcionada pelas milhares de pessoas que chegam ao Cemitério Geral de La Paz desde as primeiras horas da manhã do dia 8. Quase todas carregando sua ñatita em recipientes de todo tipo e tamanho. Madeira, vidro, papelão. Abertos, fechados. A criatividade também está presente nos adornos dos crânios. Há os totalmente "pelados", os de óculos escuros, os de óculos comuns. Os de boné, gorro, chapéu, sombreiro. O que nunca falta são as coroas de flores.
"Como se chama?", perguntam os que se postam diante de uma ñatita .
Viviana. Bernabé. José. Rosita. Carlitos. Manuel. Isabela. Ribita. Nico. Dionicia. Ilario.
Não importa a resposta. Pétalas de flores e uma ou duas velas, para serem acesas às segundas-feiras, é a oferenda, seguida do sinal da cruz.
Empurra-empurra para entrar na igreja do cemitério. Lá dentro, os devotos se espremem para conseguir benzer sua ñatita.
No momento da última missa do dia, rezada pelo sacerdote local, silêncio total. Segurando suas caixas com os crânios dentro, os fiéis estão atentos às palavras do padre. Outros deixam suas "almitas" em um altar em frente à imagem de Nossa Senhora de Copacabana, padroeira da Bolívia. Todos repetem em coro as palavras do sacerdote. Todos, após o último "amém", fazem o sinal da cruz.
Acabada a missa derradeira, está longe a hora de ir embora. Os fiéis, com suas respectivas ñatitas, espalham-se por todo o cemitério. Instalam-se em algum canto. Das sacolas, saem frangos, arroz, sanduíches de queijo e presunto, salteñas, folhas de coca, refrigerantes, cervejas.
Todos começam a comer, a beber, a conversar animadamente, e a fumar. O cigarro é uma tradição. Tanto os vivos como os mortos – as ñatitas, no caso – fumam nesse dia.
Em cada lado para o qual se olha, avista-se um grupo de músicos, que com suas canções ora tristes, ora alegres, homenageia as almas que ainda não se foram desse mundo. E que certamente voltarão ao cemitério de La Paz no ano que vem.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Quatro décadas sem o Che


Vou começar a publicar aqui algumas matérias minhas na Bolívia (antigas, claro). Acho que podem ajudar a dar uma pequena mostra do atual momento que vive o país.

Abaixo, a primeira delas, sobre os 40 anos da morte do Che, em outubro (a foto é de Daniel Cassol):


Brasil de Fato, edição 241 (de 11 a 17 de outubro de 2007)

Os 40 anos sem San Ernesto de La Higuera

Vila onde o revolucionário argentino foi assassinado é palco de atos em sua memória; para parte da população local, ele é santo

Igor Ojeda
de La Higuera e Vallegrande (Bolívia)

Em outubro, quase não chove em La Higuera, lugarejo do interior da Bolívia onde, há 40 anos, foi fuzilado o revolucionário argentino Ernesto Guevara de la Serna, o Che.
A seca, apesar de comum, é um tormento para os habitantes da vila. Eles vivem basicamente da agricultura, além da criação de gado. No entanto, sempre que uma grande quantidade de visitantes invade a região para render homenagem à memória do guerrilheiro famoso, chove.
Pelo menos é o que garante à reportagem do Brasil de Fato Victor Vallejos, que vive em La Higuera desde que nasceu, há 38 anos. Para o homem de forte traços indígenas, não há dúvida de que San Ernesto de La Higuera, como Che é cultuado por uma parte da população da região, é, de fato, um santo milagreiro. Mas não só isso. "Conhecemos o comandante Che como um herói, que veio à Bolívia procurando uma vida melhor para todos", diz.
Nas florestas do interior boliviano, Che Guevara procurou uma vida melhor para todos durante meses. Desembarcou no país, com alguns guerrilheiros, em novembro de 1966, com a idéia de deflagrar um foco revolucionário que se espalharia por toda a América do Sul. Com falta de apoio incisivo da esquerda local e dos camponeses, a guerrilha de Ñancahuazú foi debilitando-se aos poucos. Che resistiu até 8 de outubro de 1967, quando foi preso pelo Exército da Bolívia, sob a orientação da CIA, a agência estadunidense de inteligência. Foi levado a La Higuera, onde ficou retido e local onde foi fuzilado no dia seguinte.

A presença de Che

Chegar a esse minúsculo povoado, a 2.160 metros de altitude, não é tarefa fácil. Depois de pouco tempo da partida do pequeno ônibus da cidade de Santa Cruz de la Sierra, o asfalto acaba e começa uma estrada de terra que, a certa altura, torna-se uma sinuosa e estreita serra às margens de altíssimos desfiladeiros.
Depois de cerca de oito horas de viagem, chega-se a Pucará, uma pequena vila onde seus habitantes, de pé e encostados na parede do lado de fora de suas casas, observam, num misto de curiosidade e desconfiança, a chegada do ônibus que, desse ponto, segue para outra cidade.
Junto com um francês e quatro argentinos, a reportagem negocia com Román, dono de uma van "fantasiada" de ambulância ("comprei assim", explica), e segue viagem, por cerca de meia hora, por mais uma estrada de terra sinuosa e à beira de profundos precipícios profundos. No entanto, quem dirige é o filho de Román, Beisman. Ele tem 13 anos.
La Higuera é um vilarejo onde vivem apenas 27 famílias e a energia elétrica ainda não chegou. Não é incomum encontrar, em suas casas, inscrições alusivas a Che. Há somente uma rua, que dá, em frente da pracinha local, em uma estátua do revolucionário, sorrindo, vestido de militar e com a mão direita levantada, segurando um charuto.
A uns poucos metros acima, avista-se, em cima de uma pedra, um enorme busto do comandante, ladeado por uma cruz e onde lê-se abaixo: "Seu exemplo ilumina um novo amanhecer". Mais adiante, está a escola onde Che foi mantido preso e executado. Hoje, abriga um pequeno museu em sua memória.

Viajantes

É 7 de outubro. À meia-noite, ou seja, quando se completa 40 anos da captura do revolucionário argentino pelo Exército da Bolívia, está previsto um ato para celebrar a data, atividade que faz parte do II Encontro Mundial Ernesto Che Guevara, organizado pela Fundación Che Guevara.
Enquanto isso, centenas de pessoas, de todo o mundo, chegam ininterruptamente à vila, e vão ocupando os últimos lugares nos campings e pousadas improvisadas. Depois de instaladas, ou não, concentram-se nas proximidades da pracinha para aguardar o início do ato.
Um dos que esperam pacientemente é o boliviano Luis Pereira, um senhor de 78 anos que enfrentou cerca de 20 horas de ônibus para, desde a cidade de Cochabamba, chegar a La Higuera, com o objetivo de "prestar reverencia a um herói, a um idealista", diz. "Che foi exemplo para toda a humanidade, pois ele praticou o verdadeiro amor de um pelos outros", completa.
Outro senhor, dessa vez um argentino de 76 anos, também fez questão de estar em La Higuera. Para isso, viajou por três dias, desde Buenos Aires. De Che, Jacobo Perelman – o Chiche, como é conhecido –, lembra-se destas palavras: "Quando se perde o armamento, recupera-se o do inimigo. O que não se pode recuperar quando se perde, é a cabeça". Lembra-as bem porque ouviu da própria boca do comandante. "Quando a Revolução Cubana saiu vitoriosa, nós, da Federação de Jovens Comunistas (FJC), do Partido Comunista argentino, formamos um movimento de solidariedade com Cuba. Recebemos um convite para irmos a Havana, onde Che nos recebeu, por quatro horas. Escutava muito, foi muito cordial e firme", conta Chiche, que viu pessoalmente o guerrilheiro outras duas vezes.

A América acorda

Por volta da meia-noite, o ato teve início. Entre os presentes no palco, Leonardo Tamayo, o Urbano, um dos cinco sobreviventes da guerrilha da Bolívia; o filho de Roberto Peredo, o "Coco", morto em combate na mesma guerrilha; e Rogelio e Enrique Acevedo, que lutaram com Che na Sierra Maestra em Cuba.
O presidente da Fundação Che Guevara, Oswaldo Peredo, lembrou que os aniversários de morte do guerrilheiro argentino eram recordados com um sentimento de nostalgia e desolação, e as atividades eram realizadas clandestinamente. "No entanto", disse, "há dez anos, o povo decidiu que não haveria mais homenagens clandestinas. Os atos são todos públicos, com a testa erguida e o peito aberto. Agora, eles [os militares] é que estão reclusos e são obrigados a fazerem seus atos em um quartel".
Já para Urbano, o fato de muitas pessoas terem ido render homenagem ao "homem que lutou e morreu pela causa mais justa" é um sinal de que "os povos de nossa América estão acordando. Acordou a Venezuela, sob a direção de Hugo Chávez. Da mesma maneira, o fez o heróico povo da Bolívia, sob o comando de Evo Morales".
À uma e 45 da manhã, Urbano e o filho de Coco, também chamado Roberto, acenderam uma grande fogueira, simbolizando uma vigília em honra de Che Guevara.

Guevaristas

No dia 8, em Vallegrande, distante cerca de 60 km de La Higuera, o grande destaque foi a presença do presidente da Bolívia, Evo Morales. Vallegrande é a cidade para qual Che foi levado depois de morto para ser apresentado à imprensa internacional na lavanderia do hospital Nuestro Señor de Malta e também local onde acabou sendo enterrado clandestinamente.
Durante o ato central do II Encontro Mundial Che Guevara, o governo boliviano lançou dois selos comemorativos aos 40 anos da morte do guerrilheiro argentino.
Em seu discurso, feito na antiga pista do aeroporto na qual em 1997 foram encontrados os restos mortais de Che e de mais seis guerrilheiros, Morales falou do legado de Che: "Ele continuará até que se alterem os sistemas econômicos. Estou falando em acabar com o capitalismo". Disse também que a melhor homenagem que se pode prestar ao guerrilheiro é "agir com honestidade, com transparência, e manter uma posição anti-neoliberal e antiimperialista".
Evo afirmou ainda que, hoje, a luta de um bom revolucionário vai além de libertar seu povo. Deve-se recuperar os recursos naturais que lhe pertencem. Em seguida, citou as receitas do Estado que aumentaram com a nacionalização dos hidrocarbonetos.
Por fim, criticou seus oposicionistas. "Haverá muitos repúdios sobre minha presença aqui. Mas não temos o que esconder. Somos guevaristas. Somos humanistas. Somos revolucionários".
Durante o ato, o ceticismo dos que não acreditam no poder místico de San Ernesto de La Higuera foi posto à prova. Enquanto se cantava uma música em homenagem a Che Guevara, os presentes na manifestação começaram a apontar para o céu, maravilhados. Um grande arco-íris dava uma volta completa em torno do sol a pino, formando uma espécie de auréola.

Gota de Agua

Foram quatro meses de espera, mas valeu a pena. Ontem (sábado pós-carnaval), conheci, enfim, um dos bares mais recomendados pelos paceños aos que querem viver uma noite genuinamente boliviana.

Na verdade, são dois, com nomes parecidos. O Ojo de Agua, o mais antigo, e o Gota de Agua. Ambos ficam no centro de La Paz e estão a cerca de um quarteirão de distância. Subindo a Sagárnaga, chegando na Illampu, resolvemos (eu, Marcelo, amigo brasileiro hospedado em casa, e Gonzalo, amigo boliviano do Marcelo) virar à direita e entrar no Gota de Agua.

O lugar é bem aconchegante e, o que é melhor, destino de raríssimos gringos (ou seja, nada típico dali é forçado). Junto com a cerveja, os garçons trazem à mesa um pratinho cheio de folha de coca para os clientes mascarem.

Nas paredes, máscaras folclóricas e whipalas, (bandeira sagrada para os indígenas bolivianos). No fundo da casa, um DJ mostra um repertório latino – principalmente boliviano. Cerca de meia hora depois, sobe ao “palco” o grupo Norte Potosí, com seus trajes típicos e sua música andina. Não demora muito, os casais tomam coragem e começam a dançar.

No intervalo, a música volta a cargo do DJ. Chega a hora de conhecer mais um ritmo. Dessa vez é a Cueca Paceña (pelamordedeus, não se deve pronunciar com o “e” aberto).

Na “pista de dança”, começam a chegar casais e seus respectivos lenços brancos. A idéia é que, acompanhando a música, o homem tente seduzir a mulher: ele agitando o lenço e a perseguindo, ela se esquivando... A quantidade de pessoas que se animou a dançar mostra a popularidade da cueca entre os paceños.

Nesse meio tempo, experimentamos uma das bebidas nacionais da Bolívia, o singani, aguardente de uva, misturado com suco de laranja.

Tudo isso – o show e as bebidas – por 20 bolivianos, o que dá uns R$ 6.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

A planta milagrosa

Fato: chá de coca diminui a azia. Pelo menos a minha.

Num país onde quase todas as comidas levam ají ou locoto, tipos de pimentas, prevenir-se ou remediar-se da queimação é fundamental.

Comecei há um tempo, todas as noites, tomar uma xícara de chá de coca. O negócio funciona mesmo. No começo, é aquele gosto de capim. Mas nada que uma colher de açúcar e o hábito não resolvam.

Aliás, pelo jeito a coca serve pra tudo. É boa para o estômago, fígado, vesícula, é analgésica, afina o sangue, é diurética, engana a fome e atenua o sorojchi, como é chamado aqui o mal de altura. (Dizem que o altiplano boliviano é tão alto que até os condores têm sorojchi)

Não à toa o uso da coca é milenar na região. No museu de arqueologia de La Paz, há estátuas, de épocas pré-incas, que representam pessoas com uma saliência na bochecha, o que indica que estão mascando coca.

Na Bolívia, esse hábito é bastante disseminado. Os "mascadores" enfiam quantidades imensas de coca na boca, e conforme as folhas se diluem na boca, vão colocando mais. O gosto é amarguíssimo, mas depois de um tempo fica uma sensação boa de amortecimento na língua.

E os EUA querem erradicar seu cultivo, sob o pretexto da “guerra” contra o narcotráfico. Primeiro, deveriam erradicar seus laboratórios, empresários, bancos etc, que participam da cadeia de produção da cocaína, e tratar seus milhões de consumidores.

Ah, e quem se interessou pelos poderes do chá de coca, em São Paulo dá para comprá-lo na praça Kantuta, atrás da Portuguesa, onde rola todos os domingos uma feira boliviana (aqui descobri que kantuta é uma flor, símbolo nacional).

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Do carnaval boliviano – parte III (Noite de rock paceño)



Ay! Mamita me duelen los ojos
De ver como te manchan con sangre
Se callaron a más de ochenta personas
Que el gringo ha mandado a matar
Goni go home!
Ay! Mamita tengo los oídos confundidos
De escuchar tanta porquería
Cuando el caballero se va a justificar
Del uso de bala a la turba
Zorro cabrón!

Ay! Mamita te pido perdón
Por las cosas que pasan en tu vientre
Ay! Mamita canto esta canción
A esa gente que dio su ejemplo y su vida
Ay! Mamita recíbelos
Queremos vivir mejor
Ay! Mamita me tiemblan las manos
De un presidente y sus dos promesas
Defendió con las armas su democracia
Luchó contra la pobreza,
Goni cumplió!
Ay! Mamita aún me queda el corazón
Mi guitarra y mi voz al viento

A letra é da música “Ay! Mamita (Pachamama)”, uma das que ouvimos segunda-feira de noite no Equinócio, um bar perto de casa. O show ao vivo foi da banda boliviana de rock Atajo (atalho), uma bela surpresa.

A música trata da Guerra do Gás, de 2003, quando o povo boliviano, puxado pela população de El Alto, se rebelou contra a proposta do governo de exportar o gás através do Chile, o país que lhes roubou o mar. A exigência era que o gás fosse usado para o desenvolvimento interno. Dezenas de pessoas foram mortas pelo exército e pela polícia e o presidente de então, Gonzalo Sanchez de Lozada (o Goni, ou o Gringo), foi obrigado a renunciar.

Mamita, no caso, é a Pachamama, ou Madre Tierra. A terra é mais do que sagrada para os povos andinos, é a fonte da vida.

Inserido musicalmente na categoria “rock urbano” pela crítica local, o grupo de La Paz é um dos mais famosos do país e privilegia a temática social em suas letras. Mas o que chama a atenção mesmo é a exploração que eles fazem de ritmos folclóricos dos Andes (como a kullawadas), do resto da América Latina (como a cumbia, aquela do Tevez), do blues e do reggae.

O resultado é bem interessante. Suas músicas são bem contagiantes e levantam a galera.

No site do Atajo, pode-se saber mais sobre a banda e baixar suas músicas. Vale a pena dar uma espiada.

Do carnaval boliviano – parte II (Diabladas, morenadas, caporales...)



No sábado de carnaval cedo, eu e a Sue, amiga que ficou hospedada em casa por um tempo, pegamos um ônibus rumo à Oruro, cerca de 3 horas de La Paz. O carnaval da cidade é famoso internacionalmente e é inclusive considerado Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade pela Unesco.

A sua peculiaridade é o sentido religioso das celebrações, expressados por danças e fantasias tradicionais dos povos indígenas bolivianos. A idéia é cultuar a Pachamama, ou Madre Tierra. No entanto, por influência da Igreja Católica, hoje a homenageada é a Virgen del Socavón, que ganhou esse nome por ter “aparecido” em um socavón (galeria) de uma mina de prata da cidade.
Por um longo trajeto formado pelas ruas de Oruro, inúmeros grupos, acompanhados de bandas musicais, desfilam até o santuário da virgem. No desfiles, representam diversas danças típicas.

Uma delas é a diablada, que, através de suas coreografias e vestimentas, representa a luta do bem contra o mal. Outra dança famosa é a morenada, que trata do sofrimento dos escravos negros do altiplano. Há também a tobas, caporales, tinku etc.

Do alto da precária e perigosa arquibancada de madeira, temerosos de que ela desabasse e atentos às bexigas de água que voavam de um lado ao outro da avenida, pudemos observar tudo isso. O espetáculo é bem bonito e interessante, e nos impressionamos com o preparo físico que é necessário para fazer determinadas coreografias durante duas ou três horas a 3.700 metros de altitude.

Quem tiver pela Bolívia no carnaval de 2009, vale apena dar uma espiada em Oruro. Só tem que ter muita paciência com a guerra de água (os gringos são alvos preferenciais) e com os batedores de carteira, que são muito hábeis.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Do carnaval boliviano – parte I (A terceira Guerra da Água)




Em 2000, na cidade de Cochabamba, a população decidiu rebelar-se contra a privatização dos serviços de água e passou a realizar marchas e bloqueios até expulsar a transnacional estadunidense Bechtel da cidade, não sem muita repressão por parte da polícia. Entre os líderes da revolta, estava Evo Morales.

Em 2005, em El Alto, cidade vizinha à La Paz e famosa por sua capacidade de mobilização social e pela enorme população indígena aymara que possui, repetiu a dose e pôs para correr a francesa Suez.

Os dois episódios ficaram conhecidos como Guerra da Água.

Mas, no sentido literal do termo, guerra da água é o que acontece nos quatro dias de carnaval na Bolívia. Nas praças, nas ruas, nos desfiles, em todo lugar, crianças, adolescentes, jovens e até adultos, munidos de seus sprays de espuma, bexigas e fuzis de água, armam verdadeiros campos de batalhas onde ninguém escapa de ser molhado, muitos menos os que não têm a mínima vontade de participar da brincadeira, o que, obviamente, é o meu caso.

Andar pelas ruas, sossegado, é bastante arriscado, principalmente se você tem cara de gringo, o que, obviamente, é o meu caso. De um carro em movimento, da janela de uma casa, do outro lado da avenida, quando você menos espera, uma bexiga d’água pode te atingir em cheio. O que, obviamente, foi o meu caso.

Nas fotos, imagens da rebelião em Cochabamba.

Brevíssimo comentário sobre as eleições estadunidenses

Não é curioso que a "melhor democracia do mundo" tenha demorado 232 anos para proporcionar a uma mulher ou a um negro a possibilidade de chegarem à presidência?

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

A invenção da salteña


- Más que secreto, es un hallazgo, comadre, o una invención. He estado husmeando el cuaderno donde mi mamita anotaba sus recetas, y hay una de empanadas de jigote que se me ha ocurrido reformarla.
- ¿Reformarla?¿Y por qué?
- Porque tu compadre Francisco dice que mis empanadas no le quitan el frío. Y entonces he pensado que si fueran más calentitas y picantes, quizá… Pero el detalle no está en el ají o en el horno. Esa es mi invención.
- ¿Pero en qué está entonces, comadre?
- En el caldo. Si son caldositas, si contienen un jugo picante, no hay frío que aguante.
- ¿Pero… pero cómo piensas hacerlas caldosas? No se me ocurre manera sin que se remojen y se hagan un estropajo.
- Ahí está el secreto, comadre.

(…)

La Mamay había molido entretanto unas dieciséis vainas de ají colorado, y las rehogaba con una libra de manteca hasta que el pícaro condimento quedó suelto. Comedida, Maruja acercó una olla de caldo de huesos de res y una taza, para echarlo al ají, pero Leonor la detuvo.
- Ahí está el secreto, comadre: por más caldo que le eches, igual se seca en el horno, quizá porque está muy caliente para que la masa cueza en un padrenuestro y diez avemarías. Pero yo tengo la solución. Es una sustancia con la que unté la papa y el lomito de res picados. Esta mezcla ya viene reposada desde ayer. Y vas a ver el resultado.
- Los hijos y las empanadas se hacen de noche – sonrió Maruja.
Echaron una porción del jigote mezclado con el ají rehogado en cada trozo de masa, cerraron ésta y la repulgaron con destreza, usaron una bandeja que introdujeron por la boca del horno, rezaron el segundo misterio gozoso, repitieron una docena de letanías y quitaron del horno las empanadas perfectamente cocidas.
Leonor sonreía triunfal cuando tomó con las manos desnudas una de ellas y la ofreció a su comadre, no sin antes prevenirle que tuviera cuidado con quemarse. Maruja la abrió soplándose los dedos, quitó una parte de la masa repulgada y lanzó un grito de dolor porque estalló el jugo caliente, le mojó la mano y la obligó a soltar la empanada que se estrelló en el piso en una hemorragia de un líquido tornasolado que brotaba sin fin del vientre de la horneada criatura. Leonor festejó con una carcajada, quitó el jugo de las manos de su comadre y las ungió con aceite de oliva para controlar la quemadura.
- Este es mi secreto – dijo riendo –. Debes servirte con mucha precaución para no quemarte las manos, los labios, la lengua, la boca entera.

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"Potosí 1600", Ramón Rocha Monroy

Copyleft

Em tempo: o crédito da definição de La Paz é de Tatiana Merlino.

Praticamente um paceño


Tudo bem, já vivo em La Paz há quase quatro meses. Demorei, enrolei e ouvi gritos de incentivo de vários amigos até, enfim, criar um blog.


A idéia é simples: compartilhar pensamentos e histórias sobre a vida nos Andes. O país, a cidade, a cultura, as pessoas, as comidas, as curiosidades. E também, claro, sobre o processo que vive o país desde a vitória de Evo.


É isso.


Saludos e espero que tenham paciência para me acompanhar.


ps: na foto, La Paz, a cidade que afundou.