segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O que deu no Cesinha?

Do site Vi o Mundo:

Caras e caros:

O jornalista Duarte Pereira, ex-dirigente da Ação Popular, a quem admiro pela retidão de princípios, enviou a algumas pessoas o texto de César Benjamin, “Os filhos do Brasil”, acompanhado de um comentário crítico.

Envio a vocês, abaixo, minha resposta ao Duarte.

Abraços,

Gilberto Maringoni

*****

Caro Duarte:

Você sabe do respeito imenso que tenho por você, por seu discernimento político e por sua história.
Por isso quero falar-lhe como amigo e companheiro.
Não acho correto darmos credibilidade ao Cesar Benjamin neste episódio.
Ele tem também um passado de lutas e uma capacidade de elaboração respeitável.
Mas há tempos, Cesar resolveu buscar um espaço em voo solo, descolando-se de qualquer ação coletiva.
Não sei exatamente o que se passa. Não sei se é uma vaidade imensa, não sei se é alguma questão política, ou se um modo de se fazer política com o fígado.
Uma denúncia como a que ele faz não é uma denúncia pessoal.
Só encontro paralelo recente no caso Miriam Cordeiro. Levanta-se um pecado íntimo para se atacar uma vertente política.
Por que a denúncia não foi feita antes?
Por que a denúncia foi feita na Folha?
Por que ela é feita quando o governo tem uma atitude digna na questão hondurenha?
Por que ela é feita quando Lula recebe um inimigo figadal de Israel?
Por que ela é feita quando há um afrouxamento mínimo na política monetária?
Por que ela é feita quando se travam as privatizações dos aeroportos?
Por que ela é feita quando a direita faz uma ofensiva de conjunto na América Latina?
Por que a Folha abriu uma página inteira a ela?
Por que ele faz isso na boca de uma campanha eleitoral?
Por que ele faz isso quando o candidato da direita - José Serra - começa a cair nas pesquisas?
O caso me evoca outra lembrança triste.
No início dos anos 1970, alguns militantes da esquerda revolucionária, muito jovens, não aguentando as torturas a que foram submetidos na prisão, foram para a TV.
Afirmavam estarem arrependidos da luta.
Anos atrás eu os classificava com o epíteto seco de 'traidores'.
Hoje, pensando no fato de serem adolescentes, pondero meu tom.
Não fizeram um papel edificante.
Causaram prejuízos irreparáveis.
Mas eram meninos acuados.
O caso mais evidente foi o de Massafumi Yoshinagui, da VPR. Foi até capa de Veja, em 1971. Viveu atormentado com seu gesto, até se suicidar em 1976, aos 26 anos de idade.
Quase 40 anos depois, Cesinha - que não é mais um menino - vai para as páginas e holofotes da grande mídia, fazer o que as classes dominantes querem.
Recebi notícias que blogs da direita estão difundindo o texto.
Conheço o Cesinha há cerca de 25 anos.
Sinto que nós o perdemos irremediavelmente.
Fico envergonhado com o papel que ele está desempenhando.
Seu passado não merece isso.
Mas a História irá julgá-lo.
Por ora fica na ponta da minha língua o adjetivo que usei contra os que foram à televisão naqueles anos.
E não encontro atenuantes para César Benjamin.
Faço votos que ele se dê bem no outro lado.

Abraços,
Maringoni

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O martírio da “Gandhi” do Saara

Brasil de Fato, ediçao 352 (de 26 de novembro a 2 de dezembro de 2009)

Aminetu Haidar, ativista do Saara Ocidental, faz greve de fome na Espanha para poder voltar a seu país, ocupado desde 1975 pelo Marrocos

Igor Ojeda
da Redação

Aminetu Haidar tem 42 anos, mas aparenta se aproximar dos 50. Não é para menos. Já foi muito torturada. Permaneceu quatro anos detida em uma prisão secreta, sem contato com o mundo exterior. E já fez uma greve de fome de 45 dias, que deixou sequelas irreparáveis em seu organismo, como problemas na coluna e uma úlcera hemorrágica.
Por tudo isso, seu novo jejum, iniciado em 16 de novembro, pode lhe trazer consequências ainda mais graves. E ela está disposta, se necessário, a levá-lo até o fim. A única coisa que exige é voltar para casa.
Aminetu é saarauí. Ou seja, nasceu no Saara Ocidental, país do noroeste da África colonizado pela Espanha e que, desde 1975, é ocupado a ferro e fogo pela monarquia de Marrocos, para quem ela é, talvez, a maior pedra no sapato. Pois Aminetu luta há décadas pela independência e soberania de sua nação. Por optar pela via pacífica, é considerada por muitos como a “Mahatma Gandhi saarauí”.
Assim, algumas das principais armas são palestras e conferências no exterior, onde denuncia a opressão que sofre a população do Saara Ocidental. Na última de suas viagens, Aminetu foi a Nova York, no fim de outubro, para receber um prêmio por seu ativismo. Na volta, fez escala em Las Palmas e Madrid, onde trata a úlcera regularmente.
Ao regressar à El Aaiún, capital de seu país, decidiu agir como ela e outros independentistas sempre agem. No formulário de entrada, no espaço “País de residência”, escreveu “Sarra Ocidental”, em vez de “Marrocos”.
Já os funcionários da imigração não agiram como o usual. Em vez de riscarem o nome da nação ocupada e escreverem “Marrocos” por cima, resolveram detê-la. Depois de 24 horas presa, Aminetu foi mandada de avião, sem passaporte, para Lanzarote, nas Ilhas Canárias, na Espanha.

Greve de fome

Ao chegar lá, a primeira coisa que fez foi tentar pegar um vôo de volta, mas a polícia local não permitiu. Sua entrada no país ibérico fora autorizada mesmo sem passaporte, pois Aminetu portava um cartão de residência, concedido em 2006 para que ela pudesse ser tratada em Madrid das doenças das quais sofre. No entanto, sem passaporte, não pôde sair. Aminetu, que se diz “sequestrada” pela Espanha, deu um prazo para que sua situação fosse resolvida. Sem ser atendida, iniciou o jejum, no próprio aeroporto.
“Ela decidiu pela greve de fome porque não havia nenhuma solução até o momento para que voltasse ao Saara Ocidental. É uma medida de protesto”, explica, por meio de contato telefônico, o ator espanhol Guillermo Toledo, porta-voz da plataforma de artistas “Todos com o Saara Ocidental”, que atendeu a chamada destinada a Aminetu.
“Ela não está falando, está muito debilitada, quase não se escuta sua voz”, justifica ele, que está 24 horas por dia ao lado da ativista, como forma de solidariedade. Segundo Guillermo, as sequelas da primeira greve de fome de Aminetu torna “duplamente brutal” a atual. “Seu estado físico é muito precário”, conta.
A agência de notícias oficial do Marrocos informou que a detenção e posterior expulsão da militante saarauí por parte das autoridades do país se deu devido ao “rechaço em cumprir com as formalidades administrativas”, que consistiam em preencher a ficha de ingresso adequadamente.
Diante da repercussão internacional da medida extrema tomada por ela em Lanzarote, Marrocos e Espanha propuseram, cada um, sua própria solução para o caso. “O Ministério de Relações Exteriores [espanhol] propõe que ela receba o estatuto de refugiada, o que ela rechaça, pois isso a tornaria apátrida. Ou seja, ela nunca poderia voltar a seu país. O Marrocos propõe que ela tire outro passaporte. O que ela igualmente rechaça por já ter esse documento. A única solução que ela aceita é que a devolvam ao Saara Ocidental”, sentencia Guillermo.

História de luta

O título de “Mahatma Gandhi saarauí” encontra respaldo em sua história de militância pacífica pela soberania do Saara Ocidental. “É difícil resumir em poucas palavras a vida tão intensa e ativa dessa lutadora pelos direitos de seu povo que se foi convertendo, com o decorrer dos anos, em um símbolo da luta pela identidade e pelo reconhecimento político do povo saarauí”, diz, por correio eletrônico, Santiago Jiménez Gómez, responsável do Gabinete de Estudos e Comunicação Permanente da Coordenadora Estatal de Associações Solidárias com o Saara Ocidental (CEAS).
Em 1987, aos 20 anos, após participar de uma manifestação em favor do respeito aos direitos humanos e à autodeterminação do povo saarauí, Aminetu, juntamente com outras 700 pessoas, foi presa pela polícia marroquina. Sem julgamento e sem direito a advogados, permaneceu encarcerada por quatro anos em centros secretos de detenção, onde sofreu inúmeras torturas e humilhações. Foi dada como morta por seus conhecidos.
“Me amarravam a uma mesa e colocavam, na minha boca, olhos e nariz, um pano impregnado de um líquido que cheirava à cândida. Também me davam chutes, me flagelavam com um cabo elétrico e, além disso, fui agredida por cachorros”, relatou ao jornal espanhol El País. Durante vários meses, teve que ficar sentada em um banco de um corredor, com os olhos vendados para, depois, finalmente, ser jogada em uma minúscula cela, que compartilhou com outras saarauís.
Após ser solta, Aminetu se converteu em “porta-voz contra as injustiças que se cometem contra seu povo, tanto dentro do Saara Ocidental como em contato com numerosas organizações internacionais”, lembra Santiago.
Em 2005, já com dois filhos (hoje, com 15 e 13 anos), foi presa novamente por participar de outra manifestação, ficando sete meses na chamada Cadeia Negra, de El Aaiún. Foi quando realizou sua primeira greve de fome, de 45 dias, por sua libertação e por melhores condições carcerárias. Ao sair, ganhou ainda mais projeção, interna e externamente.

Solidariedade e omissão

É por isso, por sua história, diz o ator Guillermo Toledo, que Aminetu Haidar foi expulsa do Saara Ocidental pelo governo marroquino e “sequestrada” pela Espanha. “A temem por sua forma de luta pacífica. Pelo massivo apoio que tem. Se ela fosse terrorista, jogasse bomba, perderia esse apoio”.
De acordo com ele, a solidariedade que a militante vem recebendo nos últimos dias é igualmente massiva. “Está vindo de todas as partes do mundo”. Nomes como os dos escritores José Saramago e Eduardo Galeano e do ator Javier Bardem já lhe enviaram mensagens de apoio.
“O único que não está solidário com sua causa – do contrário, vem atuando com profunda insensibilidade – é o governo espanhol. Atua desse jeito por causa das suas relações econômicas com o Marrocos. Para não pôr em risco essas relações com o regime marroquino, que é um regime que persegue, reprime, tortura, assassina. É uma atitude que causa surpresa, porque a Espanha costuma levantar a bandeira dos direitos humanos”, indigna-se Guillermo, para quem, ao impedir que Aminetu volte a seu país, a Espanha comete um delito internacional. “A atitude do governo é desprezível. Nenhuma membro dele, seja de baixo ou alto escalão, se dignou a telefonar para saber de seu estado de saúde”, protesta.
O fato é que, a cada dia sem solução, mais débil fica Aminetu, fazendo com que a possibilidade de um final trágico para essa história não seja descartada. Mas, caso isso ocorra, Santiago Jiménez avisa: “Se essa atitude a levar ao martírio, sua vontade de luta, sua memória e seu sentido de sacrifício habitariam o coração de cada homem e mulher, novos e novas Aminetu. Não contribuiria para apaziguar o conflito e duvido muito que as autoridades saarauís seriam capazes de acalmar a desesperação e a raiva coletiva”.

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A nova estratégia do rei

Expulsão de ativista pelo Marrocos vincula-se a uma “escalada” repressiva contra a luta da população saarauí por sua independência

da Redação

Militantes pela independência do Saara Ocidental veem a ação do governo marroquino contra a ativista Aminetu Haidar como parte de uma “escalada” na repressão que vem ocorrendo nos últimos meses.
Em 8 de outubro, por exemplo, sete membros de organizações de direitos humanos e da sociedade civil do Saara Ocidental foram presos quando regressavam ao seu país após uma visita aos acampamentos de refugiados saarauís de Tinduf, na Argélia, dirigidos pela Frente Polisario, articulação política e militar de independentistas do país do oeste africano.
Ahmed Alnasiri, Brahim Dahane, Yahdih Ettarouzi, Saleh Labihi, Dakja Lashgar, Rachid Sghir eAli Salem Tamek estão sendo acusados pela Justiça do Marrocos – subordinada ao rei, Mohamed VI –, entre outras coisas, de “colaboração com o inimigo” e ataques à “integridade territorial” marroquina. Devem ser julgados em breve por um tribunal militar, que pode, inclusive, condená-los à morte.
Para Santiago Jiménez Gómez, responsável do Gabinete de Estudos e Comunicação Permanente da Coordenadora Estatal de Associações Solidárias com o Saara Ocidental (CEAS), tais argumentações não se sustentam, pois “é difícil acusar de traidores a quem não se consideram marroquinos”. Além disso, segundo ele, a própria ONU reconhece o Saara Ocidental como território “pendente de descolonização e submetido a Marrocos em virtude de conquista militar”.

Nova estratégia

Mas, na verdade, para a monarquia marroquina, pouco importa a solidez jurídica de suas acusações contra os sete militantes detidos. Segundo Santiago, tanto a prisão destes quanto a ação contra Aminetu Haidar são consequência de uma mudança na estratégia do país de Mohamed VI em relação ao Saara Ocidental.
Ainda de acordo com Santiago, o início de novas conversações e a nomeação de um novo enviado especial da ONU parecia indicar um período de distensão, esperança interrompida pelas ações de Marrocos. “Estou particularmente convencido, e tomara que me equivoque, que toda esta tensão crescente não é senão parte de uma estratégia com a qual o Marrocos tenta romper o ritmo da negociação, justificando, assim, que não há condições adequadas para continuá-las. Condições que o Estado marroquino contribuiu muito para criar”.
A tal mudança de estratégia foi confirmada em 6 de novembro, quando, em ocasião do 34º aniversário da “Marcha Verde”, manobra militar que permitiu a ocupação do Saara Ocidental, o rei marroquino pronunciou um discurso convocando a Justiça e as forças de segurança a atuarem com mais firmeza contra “os adversários da integridade territorial do Marrocos” e desbaratar “os complôs urdidos contra a 'marroquinidade' do nosso Saara”.
Isso, na opinião de Santiago, indica “uma mudança brusca e calculada de atitude que busca eliminar a liderança da resistência da população saarauí a seus invasores – com o encarceramento de boa parte de seus mais destacados dirigentes e a expulsão de uma personagem do valor simbólico de Aminetu Haidar – e amedrontar a população do Saara Ocidental ocupado”. (IO)

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Espanha: apoio e omissão

da Redação

“Vi muitas coisas ao longo da minha vida, mas nunca imaginei que o grau de cumplicidade do Estado espanhol com Marrocos chegaria tão longe”, disse à imprensa a ativista saarauí Aminetu Haidar, que iniciou greve de fome em 16 de novembro depois de ser impedida pela Espanha de retornar a seu país.
A colaboração do país ibérico com a monarquia marroquina, na verdade, vem sendo denunciada desde 1975, quando, por meio de um acordo secreto, o primeiro deixou o território saarauí livre para a entrada das tropas militares do segundo. Desde então, não importa a tendência do governo de turno, a Espanha segue com sua política de “olhos fechados” às violações dos direitos humanos da população do Saara Ocidental por parte do Marrocos.

“Alinhamento”


“[A Espanha executa] uma política cheia de declarações ambíguas e de fatos bem expressivos que evidenciam sua falta de neutralidade e seu alinhamento, às vezes quase submisso, às posições marroquinas”, protesta Santiago Jiménez Gómez, responsável do Gabinete de Estudos e Comunicação Permanente da Coordenadora Estatal de Associações Solidárias com o Saara Ocidental (CEAS).
Entre as “evidências” listadas por ele, estão a venda de armas a Marrocos, a prática da pesca em águas territoriais saarauís, negociada diretamente com a monarquia árabe, e as “gestões” por parte de personalidades políticas do governo para que o Saara Ocidental não seja reconhecido por alguns países da América espanhola.
Segundo Santiago, as motivações espanholas para manter tal apoio são muitas. Entre elas, destacam-se os interesses econômicos de investidores do país no Marrocos e o de “pessoas que condicionam sua capacidade de decisão sobre interesses coletivos à obtenção de benefícios individuais generosamente presenteados pela monarquia marroquina”.
“Tudo vale em um cambalacho onde a justiça, a legalidade, a equidade e a defesa do mais fraco não são cotizados a preço de mercado”, conclui. (IO)

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Uma luta invisível

Na imprensa brasileira, isso não é digno de notícia: desde o dia 16, Aminetu Haidar, ativista do Saara Ocidental, está em greve de fome. Poucos sabem, mas seu país, antiga colônia da Espanha, é ocupado há 34 anos pela monarquia do Marrocos.

Em resumo: ela retornava a seu país depois de uma viagem ao exterior, foi enviada para a Espanha pelas autoridades marroquinas, e, na Espanha, está sendo impedida de tomar um voo de volta. Por isso, decidiu pela greve de fome.

Aminetu, por lutar pacificamente pela independência, é considerada a "Mahatma Gandhi" de sua nação. O fato de sofrer de diversas doenças só torna mais perigoso seu jejum. Mas, pelo jeito, ela não irá recuar.

Notícias sobre o caso dela podem ser lidas aqui.

Nos próximos dias, postarei a matéria que fiz sobre o assunto para a edição do Brasil de Fato que circulará a partir de amanhã.

Enquanto isso, abaixo, quem quiser saber o contexto da luta do Saara Ocidental, uma entrevista que fiz há alguns meses com um ativista uruguaio que é solidário à causa:

Uma luta invisível

População do Saara Ocidental sofre, há mais de três décadas, a opressão da ocupação promovida pelo reino de Marrocos, apoiado por potências estrangeiras

Igor Ojeda
da Redação

Dos povos oprimidos, a população do Saara Ocidental talvez seja a mais esquecida do planeta. Poucos sabem que esse país do noroeste da África está ocupado desde 1882. Primeiro, pela Espanha. E, a partir de 1975, pelo Marrocos, que aproveitou a saída das tropas coloniais para impor seu domínio sobre o território saarauí, rico em fosfato, pesca e petróleo. Desde então, os saarauís, reunidos politicamente e militarmente na Frente Polisario, lutam contra as forças marroquinas – apoiadas atualmente pela França –, pela realização de um referendo sobre sua independência e, até, contra um muro de 2.500 quilômetros de extensão. Leia, a seguir, trechos da entrevista com Emiliano Gómez López, presidente da Associação Uruguaia de Amizade com a República Árabe Saarauí Democrática (RASD), que visitou por diversas vezes a nação africana.

Brasil de Fato – O que é a Frente Polisario?

Emiliano Gómez López – O Saara Ocidental, era, até 1975, o Saara Espanhol. Aliás, era uma província da Espanha. Em 10 de maio de 1973, depois de um período de idas e vindas dos nacionalistas saarauís, criou-se a Frente Polisario (Frente de Libertação Popular de Saguía el Hamra e Río de Oro, as duas regiões geográficas do país). É uma frente que reúne as vontades políticas de todos os setores independentistas, que tinham abandonado a possibilidade de uma via pacífica de independência e optaram pela luta política revolucionária armada. A primeira ação militar da Frente Polisario foi em 20 de maio de 1973, data que marcou o nascimento do Exército Popular de Libertação, que hoje constitui as Forças Armadas da República. Essa organização político-militar independentista conseguiu, em dois anos e meio, tomar o controle de praticamente todo o território, estabelecer negociações políticas com o governo colonial, e chegar a um acordo de repartir o território. Tudo parecia estar encaminhado à independência, porque a ONU também a estava pedindo, desde 1963, 1964. Mas aconteceu aí uma desgraça: as mudanças políticas na Espanha, devido à morte de Franco [Francisco Franco, ditador entre 1936 e 1975]. Ele estava morrendo, a incerteza política na Espanha era muito grande, não se sabia o que ia acontecer. Muitos pensavam que poderia estourar de novo uma guerra civil, e isso foi aproveitado pelo rei de Marrocos, Hassan II [exerceu o cargo de 1961 a 1999], que montou aquela encenação da chamada Marcha Verde, quando 350 mil marroquinos armados do Corão, dos retratos do rei e das bandeiras norte-americanas, foram em massa, através do deserto, até a fronteira do Saara Espanhol para tomá-lo, para “recuperá-lo” para o reino. O governo franquista tinha assinado um acordo secreto com Marrocos e Mauritânia, para, em troca de alguns privilégios econômicos, transferir a colônia às mãos da monarquia marroquina e da presidência da Mauritânia. Foram os acordos secretos de Madrid, de 14 de novembro de 1975. Nesse momento, as tropas marroquinas já estavam invadindo militarmente o Saara, a Frente Polisario estava combatendo contra os novos ocupantes, e o exército espanhol ia entregando as posições em combate. Essa era a ordem. Que foi uma verdadeira vergonha para a Espanha.

O senhor disse que o Exército de Marrocos estava recuperando o Saara. Antes tinha o controle?

O Marrocos nunca teve nenhuma soberania sobre o Saara Ocidental. Secularmente, as tribos saarauís tinham uma forma de governo federal próprio. Tinham o chamado Conselho dos 40, que se reunia sempre que havia alguma ameaça estrangeira, para regular as relações entre as tribos. Eram os anciãos. Mas, invocando o suposto direito ancestral, o Marrocos convocou o Tribunal de Haia, para que este emitisse um parecer para ver se efetivamente o Marrocos tinha direitos. O Tribunal, depois de três meses, depois de investigar toda a documentação espanhola, argelina, marroquina, chegou à conclusão de que não havia nenhuma ligação de soberania entre o reino de Marrocos e o Saara Ocidental. Nesse mesmo dia, começou a invasão. A política do fato consumado. E desde então, estão lá.

E qual era o interesse do Marrocos em ocupar o Saara Ocidental? Por que ele queria esse território?

Há vários fatores. A monarquia, profundamente corrupta, tinha a oposição de setores nacionalistas progressistas das Forças Armadas marroquinas. Uma das razões para começar a invasão era jogar o exército lá para o meio do deserto. Quanto mais longe do palácio, melhor. Essa foi uma das razões internas. Outra razão era a de tomar o controle das jazidas de fosfato do Saara Ocidental, uma das maiores e mais ricas do mundo. Nem precisa abrir buraco, é só tirar uma camada de areia. As reservas eram calculadas em 10 bilhões de toneladas. Além disso, no mar territorial do Saara Ocidental tem um dos bancos de pesca mais ricos do mundo. Lá, todo ano pescam uns cinco, seis, oito mil navios. E todos eles pagam direitos para pescar aí. Quanto pagam? Não sei. Talvez 30, 40 mil dólares para poder trabalhar aí o ano inteiro, cada navio. Todo esse dinheiro, que recebia a Espanha, agora vai para os bolsos não do Marrocos, mas do rei do Marrocos.

Qual foi a característica da colonização espanhola? Foi igual ao do resto do continente, de exploração de recursos naturais?


Na realidade, desde que a Espanha começou a ocupação do Saara Ocidental, em 1882, nunca fez nada. Aproveitava a costa saarauí para ter bases para os barcos de pesca. Não tinha outra importância, até que descobriram a presença das jazidas de fosfato. Aí, o governo espanhol fez um investimento muito grande. Todo um complexo minerador que implicava extração, transporte e carregamento dos navios. Tudo aquilo começava a dar lucros para o governo da Espanha, porque era uma companhia do Estado espanhol, mas aí começou a invasão marroquina. As instalações foram construídas para extrair até 10 milhões de toneladas por ano. No primeiro ano, o governo espanhol exportou dois milhões, no segundo ano, cinco milhões, e no terceiro, acabou, porque começou a guerra. Portanto, quem está aproveitando agora é o Marrocos. Aproveitando as próprias instalações espanholas. Eles exploram os minérios e os direitos de pesca.

Exportam para quem?

Para muitos países. No Marrocos, também há jazidas. Só que, claro, quando você tem as principais jazidas do mundo, você se converte em monopolista, e pode impor preços no mercado internacional. Isso é o que está fazendo o Marrocos, pois a companhia que explora é do Estado. Na verdade, não é do Estado, é do rei. O rei é o principal acionista da companhia estatal. Estamos falando diretamente da riqueza do rei.

O senhor disse que os soldados que participaram da invasão marroquina vinham também com bandeira estadunidense.

Foi uma coisa muito esquisita. Quem autorizou o começo da operação, da Marcha Verde, foi Henry Kissinger [ex-secretário de Estado dos EUA]. Tudo isso foi feito em cumplicidade com o governo norte-americano.

Desde então a monarquia marroquina já era aliada dos EUA?


Sim. Os EUA têm interesses estratégicos no Marrocos. Porque é a zona de confluência da 6ª Frota, do Mediterrâneo, e da 2ª Frota, do Norte do Atlântico. Portanto, o Marrocos era uma peça importante no esquema de dominação geoestratégica dos EUA. O Marrocos de um lado, o Egito do outro, e a África do Sul lá no sul. Era o Triângulo das Bermudas.

Então a invasão do Saara Ocidental foi de interesse dos EUA.

Foi tudo cozinhado entre a monarquia marroquina, os EUA e a França. Naquele tempo, neste último, já estava o Valéry Giscard d'Estaing, de direita. A França tem também interesses muito fortes na região.

Quais são?

A França é a ex-potência colonial. Marrocos, Tunísia, Argélia, Mali, Senegal. No meio daquele oceano francófono, está o Saara Ocidental hispanófono. A França foi embora, politicamente, mas economicamente, ficou. O domínio continuou. Esses interesses neocoloniais amarravam os interesses da burguesia, do feudalismo marroquino, com os do imperialismo francês. E estava em jogo aquele prestígio da França. “Aqui mando eu”. Por isso que sempre foi o aliado principal do Marrocos. E é até agora. Além disso, havia os interesses econômicos.

Desde 1975, quando começou a invasão marroquina, como evoluiu a resistência saarauí?

A Espanha vai embora numa operação que culmina em 27 de fevereiro de 1976, dia em que sua bandeira é arriada pela última vez. Nesse mesmo dia, no interior do deserto, a Frente Polisario proclama a República Democrática Saarauí [RASD], para que não houvesse nenhum vácuo jurídico que pudesse ser aproveitado pelos novos ocupantes. Imediatamente, essa república jovem, recém-nascida, já é reconhecida por sete países da África. A primeira tarefa da nova república: salvar a vida da população civil, que estava ameaçada de genocídio pelas tropas marroquinas. Entraram matando, acabando com tudo. Bombardeios de napalm, de fósforo branco. Todos aqueles que puderam, fugiram para o interior do deserto, para os acampamentos da Frente Polisario, procurando proteção. E a aviação marroquina os bombardeava. Teve um acampamento desgraçadamente famoso em Um Draiga que foi bombardeado por três dias seguidos. Mataram 2.500 pessoas. Imagina quantos desapareceram. A verdade é que houve um perigo real de extermínio da população. Então a Frente Polisario fazia um combate ferrenho para impedir o avanço das tropas marroquinas. Ao mesmo tempo, evacuava a população civil rumo à Argélia. O presidente argelino, Houari Boumédiène [1965-1978], abriu a fronteira, e aí foi a salvação da população civil. Hoje, os acampamentos estão no mesmo lugar. É o ponto mais extremo do Deserto de Saara. No inverno, atinge a temperatura de quase 0ºC. No verão, ao meio-dia, 60ºC. Você percorre a região inteira de carro e encontra um arbusto, outro a cinco quilômetros, outro a dez quilômetros. Só isso! O resto é areia, pedra, areia, pedra. No meio do nada, eles montaram os acampamentos para sobreviver. Então, o Exército Saarauí, uma vez que culminou a etapa de resgate da população civil, passou a uma fase de ofensiva. E assim foi de 1976 a 1991. Quinze anos depois, a partir das negociações promovidas pelas Nações Unidas e a OUA [Organização da Unidade Africana], chegou-se a assinar o acordo de cessar-fogo. Na guerra, as Forças Armadas Saarauís não puderam expulsar os marroquinos. Mas estes tampouco puderam acabar com os saarauís. Quando as tropas da ONU entraram, tinha, do lado saarauí, 15 mil combatentes. Do lado marroquino, 165 mil homens, armados pelo melhor armamento da África do Sul, França, Espanha e EUA. Em 1980, o exército marroquino ficou quase encurralado pelos ataques do Exército Popular Saarauí. Aí, com a ajuda diplomática, política e financeira dos EUA, e de Israel, construíram os muros fortificados para evitar os ataques do Exército Popular Saarauí. Começaram a construir um muro em torno da região das jazidas. Depois fizeram outros. Hoje tem um muro que vai do norte até o sul, são mais de 2.500 quilômetros. Tem 150 mil soldados permanentemente deslocados ao longo do muro, que está precedido por campos minados, por campos de arames farpados. Eles têm sistemas de radares que detectam os movimentos de uma pessoa a 10 quilômetros de distância. A cada cinco quilômetros, há uma posição de infantaria. A cada dez quilômetros, uma posição de artilharia pesada. Detrás do muro, estão as bases dos blindados. E, por cima de tudo isso, há a aviação, continuamente patrulhando. Estima-se que isso está custando ao Estado de Marrocos, em média, 4 ou 5 milhões de dólares por dia.

Provavelmente, com a ajuda financeira dos EUA, França...

Logicamente. E mais: os saarauís falam “por que o Marrocos é subdesenvolvido?”. Precisamente porque o dinheiro que podiam empregar no seu desenvolvimento estão empregando em gastos militares. Então, aquela divisão do deserto pelo muro, paras os saarauís, foi um choque, o deserto parecia livre, mas, de repente... uma muralha. As negociações procurando um acordo político deram como resultado o cessar-fogo que entrou em vigor em setembro de 1991. Com uma condição fundamental: que, em poucos meses, fosse realizado um plebiscito para que a população saarauí pudesse manifestar sua vontade a respeito de seu futuro político, sem pressões de nenhum tipo, livremente, tudo isso controlado pelas Nações Unidas. Escolher entre ser livres, independentes, ou ser parte do reino de Marrocos. Acontece que desde então, o reino de Marrocos tem se dedicado a sabotar, a por empecilhos diversos, para impedir a realização do referendo. Hoje já falam: “referendo não, isso é nosso, não tem discussão. Poderemos dar no máximo, uma autonomia”. Como se fosse uma província autônoma, mas sob a soberania do Marrocos. Já nem aceitam o referendo. Os saarauís dizem que aquele acordo que propiciou o fim da guerra tem sido violentado, e que, portanto, a guerra pode voltar. Essa é a situação hoje.

Esse conflito se deu na época da Guerra Fria. Houve um apoio, para a Frente Polisario, por parte da União Soviética, de Cuba etc?


Da União Soviética nunca. De Cuba sim. Desde o início da proclamação da República, Cuba apoiou de uma forma só: admitindo, no seu território, estudantes saarauís. Hoje, já passaram, por Cuba, milhares de saarauís. São médicos, engenheiros. São chamados de “cubaarauís”.

Por que o senhor acha que a União Soviética não interviu?

Na minha opinião, porque tinha um bom comércio com o Marrocos. Eram pragmáticos. Nunca deram nada, nem um pedaço de pão. Nem sequer o reconhecimento político. Os únicos países da Europa que reconheceram politicamente e diplomaticamente a República Saarauí foram a Iugoslávia, que não existe mais, e a Albânia, que mudou totalmente. Só. Mas do resto do bloco socialista europeu, nenhum deles. A ajuda militar veio da Argélia e, fundamentalmente, depois, havia os armamentos que eram pegos dos marroquinos. Nos acampamentos, há um museu militar, uma pequena mostra do que os saarauís capturaram. Tanques sul-africanos, norte-americanos, canhões auto-propulsados franceses, caminhões franco-germanos, metralhadoras, armamentos ligeiros e morteiros espanhóis.

Nesses acordos de 1991, além da realização do referendo, quais eram as bases dele?

O referendo era o principal. Primeiro, entrariam os cascos azuis e uma força multinacional de polícia, para preparar o terreno para a realização do referendo. Outro ponto era o transporte, por parte da ONU, dos refugiados para o território saarauí. Três meses após os acordos, iriam realizar o referendo. Ou seja, iria ser em janeiro de 1992.

E por que não foi realizado?

Nesses mesmos dias, o rei Hassan II falou: “espera aí, eu tenho aqui uma lista de saarauís que não estão contemplados no censo espanhol”. Porque a base do padrão eleitoral seria o censo espanhol, que contava 74 mil saarauís. O rei tirou uma lista de 120 mil. Imagina, numa população com 74 mil eleitores, e você põe 120 mil a mais. Eram os saarauís nascidos em Marrocos, que teriam direito a votar também. A Frente Polisario nunca aceitou. Nem a ONU. Ninguém aceitou. Mas, com isso, o rei bloqueou o referendo. Então, tiveram que fazer uma depuração e chegaram à conclusão que só 10 mil tinham direito. Aí, o Marrocos não aceitou. Então, inventaram outra coisa. E assim foi passando o tempo. Por que o Marrocos faz isso? Porque tem o respaldo da França. E a França tem veto no Conselho de Segurança da ONU.

Qual a população do Saara Ocidental hoje?

Aproximadamente 300 mil pessoas. Entre os que estão nos acampamentos, nos territórios ocupados, e os dispersos pelo mundo. Nos acampamentos, são 180 mil. Nos territórios ocupados, uns 90 mil. Só que os marroquinos enfiaram colonos... a mesma política de Israel. Além dos 165 mil soldados, tem todo o aparelho de administração colonial. E além disso, enfiaram 120 mil colonos. Ou seja, hoje a população saarauí é minoria dentro dos territórios ocupados. Então, a impaciência chega, e, por não poderem, por enquanto, optar pela via armada, começaram, em 2005, uma rebelião pacífica, a Intifada Saarauí. Nos acampamentos, estão desejando começar a guerra de novo.

Esse foi um movimento espontâneo ou foi impulsionado pela Frente Polisario?

Foi uma mistura. Começou em maio de 2005. Até hoje, não tem parado em nenhum momento. São quatro anos de rebelião pacífica. Por enquanto, os saarauís não deram nem um tiro. No máximo, são pedras. Mas a repressão é muito grande. Neste momento, tem presos políticos em greve de fome há 30, 40 dias. Reclamando melhores condições na prisão. Mas, desde maio de 2005, desapareceram 15, e morreram quatro ou cinco. E milhares passaram pela prisão e pela tortura. Espancados nas ruas, também milhares. Homens e mulheres. Continuamente. O presidente saarauí está pedindo para a ONU para que esta cuide dos direitos humanos da população que está nos territórios ocupados. O tema foi levado ao Conselho de Segurança este ano, e foi até defendido pelo embaixador norte-americano. Pela primeira vez. Quem ficou sozinha foi a França. Ficou em evidência perante o mundo inteiro que só eles não permitem que a ONU cuide dos direitos humanos da população saarauí. Mas, pela primeira vez, o governo norte-americano assume uma posição diferente da de anteriores governos. Então, estamos numa fase promissora, porque, por um lado, a Intifada continua. Por outro lado, a Anistia Internacional, a Human Rights Watch, o Parlamento Europeu, têm emitido relatórios denunciando a violação permanente dos direitos humanos e pedindo à ONU que tomem conta disso. Por outro lado, o lobby pró-Saara Ocidental tem um peso que antes não tinha sobre o governo norte-americano. Antes, só os marroquinos, sobretudo com o Bush. O que está pedindo o governo saarauí? Uma coisa só: vamos fazer o referendo. Por que eles não fazem? Têm medo, porque a população saarauí quer ser independente. E tem uma coisa interessante. Os protagonistas da Intifada são os jovens saarauís. Mas os jovens que já nasceram nos territórios ocupados. Coisa que o Marrocos não conseguiu ganhar, sequer ideologicamente, foi a juventude. E mais: há filhos de colonos marroquinos que, por terem nascido no Sarra Ocidental, se sentem saarauís. Essa é uma derrota política muito forte para a monarquia. Ela se mantém somente na base da ocupação das Forças Armadas e do aparelho de repressão.

O senhor falou de governo saarauí. Foi o governo instituído pela Frente Polisario, não é?

O governo saarauí por enquanto é de partido único, o partido da Frente Polisario. Mas esse partido tem uma existência condicionada à independência. O dia em que a República for totalmente soberana, que tiver o domínio sobre todo o território, automaticamente a Frente Polisario fica dissolvida e daí nascerão x partidos. É um acordo das forças políticas saarauís de combater todos juntos sob uma só bandeira, a da independência. São por definição, religiosos. Sunitas. Mas bastante liberais. É uma República comum e corrente, tem Poder Executivo, Legislativo e Judiciário.

Que não são reconhecidos internacionalmente.

Hoje, a República Saarauí é reconhecida por 82 países. Em toda a América Latina, só faltam três países para darem seu reconhecimento: Brasil, Argentina e Chile. O primeiro foi o Panamá, em 1978. Tem embaixada em Havana, Caracas, Cidade do México e Cidade do Panamá.

Como é a população saarauí hoje? Do que ela vive, quais suas características etc?

A população saarauí que está há 33 anos nos acampamentos no sul da Argélia sobrevive graças a duas coisas. A sua determinação de sobreviver, e à solidariedade internacional. Dos organismos humanitários, da União Europeia, toda ajuda do governo argelino, e muita ajuda do povo espanhol. Porque embora o Executivo esteja totalmente a favor do Marrocos, a população espanhola está com os saarauís. No nível municipal, autonômico, estão com os saarauís. Concretamente, o Zapatero [José Luis, presidente da Espanha] e o chanceler Moratinos [Miguel Ángel] têm se inclinado a favor da monarquia marroquina. Têm até dado de presente armamento.

Por quê?

Eu gostaria de saber. Deve ter interesses econômicos muito fortes de empresas espanholas no Marrocos para a exploração de diversos setores, turismo, minérios... interesses da monarquia espanhola... e deve ter alguns interesses pessoais de alguns políticos espanhóis, quem sabe o que.

Como é a economia do Saara Ocidental?

Lá nos acampamentos tem manufaturas artesanais, algumas hortas, uma agricultura muito precária. Imagine, no meio do deserto.

E a população dos territórios ocupados, como vivem?

Sobrevivem, não sei como, porque são discriminados. Eles trabalham nas coisas que foi pondo lá a indústria extratora das jazidas de fosfato, trabalham na pesca, mas sempre são de quinta categoria. Se têm algum problema, são demitidos imediatamente.

No Saara Ocidental, nessa região, existem empresas francesas, espanholas, estadunidenses...

De todos os lugares. Porque, para piorar, há quatro, cinco anos, descobriram que tem petróleo e gás natural. Há uma campanha mundial das organizações progressistas para impedir a exploração dos recursos naturais saarauís. Já obrigaram empresas norueguesas, australianas a se retirarem, sob argumentos éticos. Na realidade, segundo o direito internacional, ninguém pode tirar, porque é um território ocupado. Mas tem empresas espanholas, que exploram a pesca...

Que negociam diretamente com o Marrocos.

Claro. E tem outras nacionalidades, explorando minérios, pesca. E agora, querem morder o petróleo também. Voltando, a Frente Polisario falou: “se nós fizermos o referendo, vamos ganhar. E se ganharmos, os colonos marroquinos podem ficar. Não vão ser nem expulsos, nem discriminados”. E eles cumprem. Os saarauís são muito direitos nesse sentido. Eles têm um sentido de hospitalidade impressionante. Claro, é cultural do deserto. É a garantia de sobrevivência.

Tem alguma coisa que o senhor gostaria de acrescentar?

A importância que hoje teria um reconhecimento por parte do Brasil. O peso internacional é grande. No fim das contas, estamos falando de um governo de esquerda. Um governo de esquerda deve ter determinados princípios que guiem sua atuação internacional. Já são 28 países na América Latina que reconhecem o Saara Ocidental. O Brasil fala que tem uma política de neutralidade, mas não é verdade. Porque quando você tem um forte que agride e uma vítima que é agredida, e você tem relações com o forte, e não tem com a vítima, então isso não é neutralidade. O Brasil tem embaixada marroquina em Brasília. Por que não tem a embaixada saarauí? Um dirigente de esquerda não pode ser neutro. Você tem que estar sempre do lado da vítima da injustiça. Eu acho que um governo de esquerda no Brasil deveria adotar medidas similares. Não estaria fazendo nenhum ato vanguardista. Mas seria muito importante. Porque quanto mais pesar na balança internacional o reconhecimento a favor da República Saarauí, menos probabilidades haverá de estourar novamente uma guerra. Mas se o povo saarauí for condenado a não ter outra saída que não seja a guerra, vai correr sangue de novo.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

E se Ahmadinejad não está realmente dizendo o que dizem que ele diz?

Pese sua retórica anti-imperialista, Ahmadinejad definitivamente não pode ser considerado um presidente de esquerda. Nacionalista, talvez. Mas "de esquerda" é forçar a barra.

Por outro lado, chega a ser comicamente trágico o fato de sua visita ao Brasil ser tachada pela mídia grande como "a mais polêmica de um chefe-de-Estado desde a ditadura", como acabei de ouvir na Globo News.

Pera lá. Por que a imprensa não considerou nem um pouco polêmica a vinda do Shimon Peres, presidente de Israel?

Vejamos:

Peres foi um dos líderes dos ataques à Faixa de Gaza que mataram mais de mil civis palestinos entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009. Não tenho conhecimento de algo semelhante comandado por Ahmadinejad.

Peres é um dos mais duros executores do sionismo israelense, que oprime, prende, tortura e mata o povo palestino há décadas. Que se saiba, não há nada equivalente do outro lado, embora Ahmadinejad imponha alguma repressão interna.

Israel possui a bomba atômica há muito tempo, com a cumplicidade e o silêncio dos EUA e das demais potências ocidentais. Já Ahmadinejad vem sendo bombardeado por sua suposta intenção de também ter a bomba.

Ora, por que o Brasil pode receber Shimon Peres, mas não o Ahmadinejad? (Para não mencionar Bush e Obama, que seguem matando milhares no Iraque e no Afeganistão) Será que a cobertura enviesada da imprensa brasileira sobre as duas visitas tem a ver com o fato do primeiro ser apoiado pelos EUA, e o segundo odiado?

O engraçado é que tem vezes que os meios mal conseguem disfarçar o lado que escolheram, embora pregam a imparcialidade e objetividade. O Jornal da Globo de hoje diz que por onde o presidente iraniano passa, há protestos (por onde Shimon Peres passa, não há?). Ao abrir a Folha Online mais cedo, cliquei no título "Para analista, visita de líder do Irã mostra apoio indireto do Brasil".

Para começar, claro que o tal "apoio indireto" ganha ares negativos. Em segundo lugar, o tal "analista" é ninguém menos que pesquisador-chefe do Instituto de Contraterrorismo de Israel. Juro que gargalhei quando li isso. Claro que a Folha pode ouvir quem quiser para apoiar seu próprio ponto de vista. Mas dar um caráter imparcial a notícias desse tipo é desonestidade das bravas.

Por que tanto malabarismo para condenar Ahmadinejad? Ah, sim. Ele nega o Holocausto e prega a destruição de Israel. Será mesmo?

Recomendo a leitura do artigo abaixo, em português de Portugal. É de três anos atrás, mas segue atual. Defende que os discursos de Ahmadinejad, (que, como todo iraniano, fala farsi, e não árabe, como muitos pensam) são grosseiramente traduzidos pela mídia ocidental, que se auto-reproduz mecânica e acriticamente. Ou seja, segundo o artigo, ele nunca pregou a destruição de Israel e nunca negou o Holocausto.

O curioso é que, na entrevista que ele deu ao William Waack, que pode ser vista e lida aqui, isso se confirma no trecho:

Na mesma resposta, ao falar sobre o Holocausto, Ahmadinejad alterou um pouco suas declarações anteriores, que eram a de negá-lo totalmente. "A questão que apresentamos é muito clara. Eu fiz dois questionamentos, fiz duas perguntas claras. A primeira questão era: se o holocausto aconteceu, onde aconteceu? Claramente, aconteceu na Europa. Todo mundo sabe disso. Se aconteceu, aconteceu na Europa. A segunda pergunta: o que isso tem a ver com o povo palestino: por que o povo deveria pagar por isso? Por que deveriam dar a terra dos palestinos por causa de crimes cometidos na Europa?"

"Alterou um pouco suas declarações anteriores" ou nunca as fez?

Se realmente essas declarações nunca foram feitas, como fica a condenação em uníssono que a imprensa faz do Ahmadinejad?

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Pôr palavras na boca de Ahmadinejad

Virginia Tilley*

Perante esta terrível confusão no Médio Oriente, convém esclarecer uma coisa: O Irão não esta a ameaçar destruir Israel. O presidente iraniano não anunciou qualquer acção contra Israel. Ouvimos repetidas vezes que o Irão está fortemente "empenhado em aniquilar Israel", porque o seu presidente Ahmadinejad, "louco" ou "inconsciente" ou "ortodoxo", ameaçou repetidamente destruir Israel. Mas cada alegada citação, cada suposta afirmação, está errada.

A citação mais infame – "Israel deve ser varrida do mapa" – é a mais ostensivamente falsa. No discurso proferido em Outubro de 2005, o sr. Ahmadinejad nunca usou a palavra "mapa", nem o termo "varrer". Segundo especialistas da língua farsi, como Juan Cole, e mesmo serviços conotados com a direita como o MEMRI, o que ele disse na realidade foi que "este regime que ocupa Jerusalém deve desaparecer dos anais do tempo".

O que significa isso? Nesse discurso numa conferência anual anti-sionista, o Sr. Ahmadinejad estava ser profético, mas não intimidador. Ele citava o Imã Khomeini, que proferiu esta afirmação nos anos 80 (num período em que Israel, efectivamente, vendia armas ao Irão, o que, na altura, não era encarado com tanto desagrado). Ele acabara de relembrar ao público que o regime do Xá, a União Soviética e o Saddam Hussein que pareciam imensamente poderosos e imutáveis e, no entanto, os dois primeiros praticamente desapareceram sem deixar rasto e o terceiro agoniza na prisão. Da mesma forma, também o "regime ocupante" em Jerusalém haveria de desaparecer um dia. A sua mensagem era, no fundo, a de que "também isto passará"

Mas, então, e as outras "ameaças" a Israel? O mundo dos mexericos aproveitou-se bem do alegado comentário feito posteriormente, durante esse mesmo discurso: "Não há dúvida: a nova onda de agressões na Palestina vai apagar o estigma da face do mundo islâmico". "Estigma" foi interpretado como sendo "Israel" e "onda de agressões" tinha um tom assustador. Mas, na realidade o que ele disse foi: "Eu não duvido que o novo movimento na nossa querida Palestina é uma onda de moralidade que se alastra por todo o mundo islâmico e que, em breve, irá limpar esta nódoa de vergonha do mundo islâmico". "Onda de moralidade" não é a mesma coisa que "onda de agressões". A afirmação anterior esclarecia que a "nódoa de vergonha" era o fracasso do mundo islâmico em eliminar o "regime ocupante".

Durante meses, académicos como Cole e jornalistas como Jonathan Steele do jornal londrino The Guardian têm denunciado estes erros de tradução, enquanto muitos mais vão aparecendo, como, por exemplo, os comentários do Sr. Ahmadinejad num encontro da Organização dos Países Islâmicos a 23 de Agosto de 2006. Segundo a Rádio Free Europe (Europa Livre) ele afirmou "que a "cura principal" para a crise no Médio Oriente é a eliminação de Israel". "Eliminação de Israel" implica destruição física: bombas, ataques aéreos, terrorismo ou atirar judeus ao mar. Tony Blair classificou a declaração traduzida como "chocante". Porém. O Sr. Ahmadinejad nunca disse tal coisa. Segundo a versão da al-Jazeera, o que ele realmente afirmou foi que "a cura verdadeira para o conflito é a eliminação do regime sionista, mas primeiro deve haver um cessar-fogo imediato".

São evidentes as intenções infames em traduzir constantemente "eliminação do regime ocupante" por "destruição de Israel". Por "regime" entenda-se o governo e não as populações ou cidades. O "regime sionista" é o governo israelense e o seu sistema legislativo que anexaram território palestiniano e mantêm milhões de cidadãos palestinianos sob ocupação militar. Muitos activistas dos Direitos Humanos da linha predominante acreditam que o "regime" israelense deve ser efectivamente alterado, embora discordem da forma como deve ser feito. Alguns esperam que Israel se redima por uma mudança de filosofia e governo (regime) que permitiria a solução dos dois Estados. Outros acreditam que o Estado judeu é intrinsecamente injusto, uma vez que incorpora, no Governo da Nação, princípios racistas, e reclamam a sua transformação numa democracia secular (mudança de regime). Nenhuma destas ideias sobre a mudança do regime implica a expulsão dos judeus (em direcção ao mar) ou a devastação das suas vilas e cidades. Todas implicam uma mudança política profunda, necessária para a implantação de uma paz justa.

O sr. Ahmadinejad proferiu outras declarações na Organização dos Países Islâmicos que atestam claramente a sua opinião de que o caso de Israel deve abordado no enquadramento do direito internacional. Por exemplo, ele reconheceu a realidade das actuais fronteiras quando afirmou que "qualquer agressor deve retornar à fronteira internacional libanesa". Reconheceu a autoridade de Israel e o papel da diplomacia quando observou que "devem ser preparadas as condições para o regresso dos refugiados e deslocados e os prisioneiros devem ser trocados". Também apelou ao boicote: "Nós propomos que as nações islâmicas cortem de imediato todas as relações políticas e económicas, explícitas ou não, com o regime sionista". Uma grande parte dos principais grupos judeus de defesa da paz, entidades religiosas americanas e bandos de organizações de defesa dos direitos humanos já afirmaram o mesmo.

É, ainda, de justiça, uma palavra final sobre a "negação do Holocausto" do sr. Ahmadinejad. A negação do Holocausto é um assunto muito sensível no Ocidente, quando ele notoriamente serve o anti-semitismo. No entanto, em qualquer outro lugar do mundo, as incertezas sobre o Holocausto devem-se a simples desinformação. É um erro pensar que existe muita informação sobre o tema a nível mundial (Sejamos um pouco mauzinhos: os americanos revelam a mesma espantosa estreiteza de horizontes relativamente ao conhecimento geral quando, por exemplo, atingem a meia-idade sem entender que as forças militares americanas mataram, pelo menos, 2 milhões de vietnamitas e acreditam que quem tal afirma é anti-americano. A maioria dos franceses ainda não admitiu que o seu exército dizimou um milhão de árabes na Argélia)

O cepticismo acerca da história do Holocausto começou a espalhar-se pelo Médio Oriente, não porque as pessoas odeiem os judeus, mas porque essa história é utilizada como argumento para justificar o direito de Israel à "autodefesa" através do ataque a qualquer país nas suas proximidades. As populações do Médio Oriente estão tão habituadas a falsidades do Ocidente legitimando as ocupações colonialistas ou imperialistas, que muitos se interrogam se o argumento dos 6 milhões de mortos não será mais um mito ou uma história exagerada. É desanimador que o Sr. Ahmadinejad pareça pertencer a este grupo menos culto, mas ele nunca foi conhecido pelo seu elevado nível de qualificação.

Ainda assim, o sr. Ahmadinejad não disse aquilo que a Subcomité americano sobre Política de Inteligência declarou: "Eles inventaram o mito do massacre dos judeus e colocam-no acima de Deus, religiões e profetas". Na realidade as suas palavras foram: "Em nome do Holocausto, criaram um mito e consideram-no mais importante do que Deus, a religião e os profetas". Esta linguagem refere-se ao mito do Holocausto não ao Holocausto em si mesmo, ou seja, "mito" no sentido de "místico", ou aquilo que foi feito com o Holocausto. Alguns escritores, entre os quais importantes teólogos judeus, têm criticado o "culto" ou o "fantasma" do Holocausto, sem, no entanto, negarem a sua ocorrência. Em qualquer dos casos, a principal mensagem do sr. Ahmadinejad é a de que, se o Holocausto aconteceu tal como a Europa o descreve, então é a Europa, e não o mundo islâmico, a responsável por ele.

Por que razão as palavras do sr. Ahmadinejad são tão sistematicamente mal traduzidas e a sua imagem diabolizada? Será preciso perguntar? Se o mundo acreditar que o Irão se prepara para atacar Israel, então os EUA e Israel podem invocar justificação se atacarem primeiro. Com este intuito, a campanha de desinformação acerca das afirmações do sr. Ahmadinejad tem sido preparada até ao pormenor com uma nova leva de mentiras: promover o (inexistente) programa de armas nucleares.

A actual agitação à volta do programa de enriquecimento nuclear iraniano está a ser arquitectada de forma tão semelhante à história das armas de destruição maciça no Iraque que devemo-nos interrogar por que razão não obtém da parte da comunidade internacional apenas uma gargalhada sonora. Com tantos temas respeitantes ao Irão – petróleo, hegemonia americana, fantasias neo-conservadoras de "um novo Médio Oriente" – a administração de Bush criou um receio internacional profundo acerca do programa de enriquecimento nuclear iraniano (ver Ray Close, Porque o Bush optará pela guerra contra o Irão). Mas os inspectores da Agência Internacional de Energia Atómica, depois de examinar as instalações e relatórios do Irão, não encontraram provas de um programa de armas. E a comunidade dos serviços secretos americanaos também não.

Todos os especialistas concordam que, mesmo que tal programa exista, só daqui a cinco ou dez anos o Irão teria urânio enriquecido em quantidade suficiente para uma arma que fosse, como tal uma acção militar preventiva neste momento não se justificaria. Até mesmo o relatório recente da subcomité sobre Política de Inteligência, dominadp pelos Republicanos, que indica que o governo americano não tem a informação necessária sobre o programa iraniano de armamento para o impedir, confirma claramente que a alegada "inteligência" é dispersa e inadequada.

A distracção casual da administração Bush em relação ao programa nuclear da Coreia do Norte indica que a questão central não é, de facto, as armas nucleares. As intenções dos neo-conservadores é mudar o regime no Irão e, por isso, puseram os seus propagandistas a postos para difundir o medo das "armas nucleares" tal como o tinham feito sobre as armas de destruição maciça no Iraque. Comentadores de retórica republicana e da ala direita já se alinharam, repetindo obedientemente afirmações infundadas que o Irão tem um "programa de armas nucleares", que ameaça o mundo, em especial Israel, com o seu "programa de armas nucleares" e que devem ser impedidos de completar o seu "programa de armas nucleares". Aqueles que, nervosamente, chamam a atenção para a falta de provas claras sobre qualquer "programa de armas nucleares" do Irão são apelidados de ingénuos e fantoches.

Pior ainda, a administração Bush levou esta farsa até às Nações Unidas, intimidou o Conselho de Segurança a emitir uma resolução (SC 1696) exigindo que o Irão cesse o enriquecimento de urânio até 31 de Agosto e ameaçando com sanções caso não o fizesse. A par da actuação desastrosa a respeito do ataque de Israel ao Líbano, o Conselho de Segurança esboroou-se numa incompetência submissa e humilhante perante este assunto.

Tal como todos os fantasmas, a alegação das armas nucleares é difícil de contrariar porque não pode ser completamente refutada. Pode ser que alguns cientistas iranianos estejam algures, em alguma instalação subterrânea, a trabalhar em tecnologia de armas nucleares. Se calhar alguns prospectores para a Coreia do Norte já exploraram as possibilidades de arranjar componentes extras. É possível que, em algum momento, uma nave espacial extraterrestre tenha embatido no deserto do Nevada. Normalmente, só porque uma coisa não pode ser contestada não a converte em verdade. Mas no universo dos neo-conservadores as possibilidades são realidades e uma certa imprensa cobarde apresenta-se pronta para bater a continência e trombetear em alta voz parangonas alarmistas. Não é preciso muito para que, através da repetição constante da expressão "eventual programa de armas nucleares", a palavra "eventual" se desvaneça silenciosamente.

Em qualquer dos casos, a prova é apenas um detalhe para a administração Bush cujo anseio pelas armas nucleares é motivo suficiente para justificar um ataque antecipativo. Nos Estados Unidos, em debates que antecederam a invasão do Iraque, as pessoas insistiam, por vezes, que era grave a falta de provas sobre a existência de armas de destruição maciça. Nessa altura, a Casa Branca argumentava que, uma vez que Saddam Hussein "desejava" tais armas, o mais provável seria que ele viesse a tê-las no futuro. Por conseguinte, crimes de pensamento, mesmo imaginários, eram agora puníveis com invasão militar.

Será que os EUA vão mesmo atacar o Irão? Generais americanos estão justamente preocupados que o bombardeamento das instalações nucleares do Irão despoletaria ataques sem precedentes sobre as forças de ocupação americanas quer no Iraque, quer às bases americanas no Golfo. O Irão poderia mesmo bloquear o estreito de Ormuz, por onde passa 40 por cento do petróleo mundial. A difusão da militância terrorista dispararia. Os prejuízos potenciais para a segurança internacional e para a economia mundial seriam incomensuravelmente perigosos. Os neo-conservadores da administração Bush parecem capazes de cometer qualquer loucura, por isso nada disto lhes interessa. Mas mesmo estes senhores devem ter-se acalmado quando Israel fracassou em aniquilar o Hezbollah com recurso a violência idêntica, planeada para o Irão, sob a forma de ataque aéreo.

Mas Israel pode atacar o Irão e este pode ser o plano. Em conjunto, os dois países podem compensar-se mutuamente das suas respectivas limitações estratégicas. Os EUA têm contribuído com a sua influência de super potência, preparando o terreno para as sanções, sabendo que o Irão não cederá no seu programa de enriquecimento. Tendo disseminado, internacionalmente, a crença (infundada) que o Irão ameaça com um ataque directo a Israel, o governo israelense pode, assim, reclamar o direito à autodefesa ao enveredar por uma acção preventiva unilateral para destruir a capacidade nuclear de um Estado declarado em ruptura com as directivas das Nações Unidas. Uma retaliação directa do Irão contra Israel está fora de questão porque Israel é uma potência nuclear (contrariamente ao Irão) e porque a capa protectora da segurança americana protegeria Israel. Uma reacção a nível regional contra alvos americanos poderia ser coarctada pela (escassa) confusão sobre a cumplicidade indirecta dos EUA.

Nesse caso, aquilo a que estamos a assistir é a criação, por parte dos EUA, do contexto de segurança internacional para o ataque unilateral de Israel e a preparação para cobrir a retaguarda de Israel na sua sequência.

É este realmente o plano? Alguns indícios sugerem que esse cenário está em cima da mesa. Nos últimos anos Israel tem comprado novos mísseis destruidores de bunkers ("bunker-busting"), uma frota de caças F-16 e três submarinos alemães Dolphin da mais recente tecnologia (e tem mais dois encomendados), ou seja, o armamento mais adequado para atacar as instalações nucleares iranianas. Em Março de 2005, o Times de Londres noticiou que Israel tinha construído um modelo rudimentar das instalações Natanz no deserto iraniano e estava a efectuar uma série de exercícios de bombardeamento. Nos últimos meses, oficiais israelenses declararem publicamente que, no caso de as Nações Unidas não tomarem medidas, Israel bombardeará o Irão.

Mas o Hezbollah, aliado do Irão, ainda é uma ameaça nos flancos de Israel. Assim, atacar o Hezbollah foi mais do que um ensaio para atacar o Irão, como disse Seymor Hersh — era necessário para atacar o Irão. Israel não conseguiu aniquilar o Hezbollah, mas o resultado pode ainda ser melhor, agora que a Resolução 1701 do Conselho de Segurança responsabilizou toda a comunidade internacional pelo desarmamento do Hezbollah. Se a Resolução 1701, patrocinada pelos EUA, tiver êxito, a agressão ao Irão é uma certeza.

Enquanto Israel e os EUA tentarem pôr em prática esse plano mal engendrado, iremos continuar a ler em todos os fóruns que o presidente iraniano – esse fascista islâmico, irracional e perigoso, que odeia judeus, nega o Holocausto e ameaça "varrer Israel do mapa" – é suficientemente insano, como se pode comprovar, para cometer um suicídio nacional ao lançar um (inexistente) programa de armas nucleares contra o poderoso arsenal nuclear de Israel. A mensagem tem sido bem martelada: contra este mito criado pelos media, Israel tem mesmo de "se defender".

* Professora de ciências políticas, cidadã americana a trabalhar na África do Sul e autora de The One-state Solution: A Breakthrough For Peace In The Israeli-palestinian Deadlock (A solução do Estado único: um passo para a paz no impasse israelo-palestiniano) – University of Michigan Press e Manchester University Press, 2005. O seu contacto é: tilley@hws.edu .

Battisti nas mãos de Lula

Abaixo, uma entrevista sobre o caso Battisti com Carlos Lungarzo, militante de direitos humanos, e um artigo do jornalista Sebastião Nery sobre a conjuntura na Itália dos anos 70 e 80.

“O julgamento de Cesare Battisti é uma farsa”

Para Carlos Lungarzo, membro da Anistia Internacional, processo no STF sobre extradição de ex-guerrilheiro baseia-se em “fraude” iniciada na Itália

Dafne Melo
da Redação

A longa espera do escritor italiano Cesare Battisti poderá chegar ao fim no dia 12 (dia da veiculação desta edição), quando o Supremo Tribunal Federal (STF) dará prosseguimento ao julgamento de pedido de extradição feito pelo governo da Itália. Na primeira audiência, quatro ministros votaram a favor da extradição e três contra. Marco Aurélio de Mello pediu vistas, o que paralisou o processo.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Carlos Lungarzo, militante de direitos humanos, membro da Anistia Internacional dos Estados Unidos e professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que Mello certamente irá votar contra a extradição.

Resta ainda a dúvida se o mais novo membro da casa, José Antonio Dias Toffoli, indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, irá votar ou não. “Tenho expectativas moderadamente otimistas”, diz Lungarzo, que prepara um livro sobre o caso Battisti, ainda sem previsão de lançamento.

Cesare Battisti foi preso em 2007 no Brasil. Militante da organização italiana Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) entre 1976 e 1978, é detido em 1979 e condenado, dois anos depois, a 12 anos de prisão por ocultar armas e formação de bando armado. Foge, então, para o México, depois França. Em 1993, na Itália, é acusado e condenado à prisão perpétua por quatro homicídios. Battisti, em entrevistas à imprensa, defende- se das acusações e diz que não era um “militante militar”, ainda que tenha participado de assaltos à mão armada para financiar as atividades de sua organização.

Seus defensores apontam uma série de contradições e irregularidades que põem em dúvida a legitimidade de seu julgamento. Nenhuma testemunha o teria reconhecido. Além disso, o processo de 1993 contou com depoimentos de ex-militantes que receberam benefícios através da “delação premiada” ou que deram as declarações sob tortura. Segundo Lungarzo, não há uma única prova concreta, e o réu foi julgado à revelia. O fato mais contraditório é que Battisti foi condenado por dois homicídios que ocorreram no mesmo dia, um em Milão, às 15h e outro em Mestre, às 16h50. A distância entre as cidades é de 275 quilômetros, aproximadamente. Leia a seguir a entrevista com Carlos Lungarzo.

Brasil de Fato – Quais são suas expectativas em relação ao julgamento do dia 12 de novembro?

Carlos Lungarzo – Tenho expectativas moderadamente otimistas. A votação está quatro a favor da extradição e três contra. Com o voto do ministro Marco Aurélio de Mello, que certamente votará contra a extradição, teremos um empate. De acordo com o regimento interno do Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente, nesse caso, o Gilmar Mendes, não pode dar o voto de minerva, salvo fosse um assunto de grande repercussão pública. Se o regimento for respeitado por Gilmar Mendes, o empate favorece Cesare Battisti. Mas todos nós sabemos que, apesar do STF ter algumas figuras boas, Mendes e Cesar Peluso, o relator do caso, atuam de maneira muito arbitrária. Isso é perigoso e talvez não se possa manter o equilíbrio necessário. Outra possibilidade é que outros ministros entrem para votar e há, possivelmente, um ministro que teria dito que pode mudar seu voto. Então, sou moderadamente otimista.

O senhor poderia fazer um resgate do caso Battisti?

Ele foi capturado por uma operação conjunta da Polícia Federal brasileira, serviço secreto italiano e Interpol, em 18 de março de 2007. Imediatamente após ter conhecimento do fato, o governo italiano pediu sua extradição, que começou a ser tramitada. Porém, a Itália não a fez conforme as regras, ou seja, através do Ministério das Relações Exteriores [Itamaraty]. Eles foram direito ao STF, numa postura petulante do governo italiano, que demonstrou menosprezo pelo governo brasileiro. Então, em janeiro deste ano, o ministro Tarso Genro deu a Battisti a condição de refugiado pela lei 9474/1997 [que versa sobre concessão de refúgio]. No artigo 33, há a definição de que o reconhecimento da condição de refugiado, que é dada pelo Executivo, impede qualquer pedido de extradição. Ou seja, no momento em que Tarso Genro concedeu o refúgio, o processo de extradição se extinguiu. O STF, entretanto, decidiu aceitar o pedido do governo italiano, mas, a rigor, esse processo não existe, foi eliminado. Três ministros, inclusive – Eros Grau, Joaquim Barbosa e Carmen Dulce, que votaram contra a extradição – disseram que o processo estava prejudicado.

Por isso o julgamento é ilegítimo?

Sim, é uma farsa. E a fraude começa no processo de Battisti na Itália. As dez testemunhas são familiares das vítimas que sequer reconheceram Battisti em fotos. Só não é familiar uma delas, Rosana Trentin, que afirma que viu um casal que poderia ser Battisti e sua namorada, mas não sabe explicar muito o que viu, se mataram alguém ou não. Além disso, há três crianças dentre as testemunhas. Provas materiais não há nenhuma, nenhum laudo técnico. Sua condenação, em 1993, também se deu com depoimentos de militantes que colaboraram com a Justiça, utilizando o recurso da “delação premiada”. Pietro Mutti, na Itália, atribuiu a ele uma série de assassinatos. Foi uma delação premiada, sua pena foi de perpétua para oito anos. Outro delator teve redução de dois terços na pena e outros dois assinaram sob tortura. No meu livro, há uma parte em que transcrevo o comentário de um deles, que afirmou ter resistido tudo o que pôde e que acabou assinando o que a polícia lhe exigiu.

E o STF aceita essas afirmações para dizer que é crime comum e não político?

Aqui no Brasil, diria que o relatório do STF é ainda pior, pois toma todos essas acusações falsas da Justiça italiana e ainda acrescenta suas próprias ideias, dizendo que Battisti tem “estilo sanguinário” e todo tipo de preconceito. Enfim, não se sabe exatamente o que está por trás disso, mas sabe-se que quando o julgamento foi divulgado, um ex-embaixador da Itália reuniu-se sigilosamente com o Gilmar Mendes e ninguém sabe uma linha do que eles conversaram.

Por que o governo italiano quer prender Battisti de qualquer maneira?

Lá há uma sede de vingança muito grande em relação ao que se aconteceu há 30 anos, nos “anos de chumbo”. Há um caso famoso, em 1980, em que um grupo que era da direita fascista – no qual estava o atual ministro da Defesa italiano [Ignazio La Russa] – colocou explosivos em um trem em Bolonha que mataram 84 pessoas e feriram 200. Como houve acomodação jurídica, nunca se soube se eles eram culpados ou não. Mas os familiares das vítimas e algumas pessoas atribuem o atentado à esquerda: “ah, isso é coisa das Brigadas Vermelhas”. Tentam achar um bode expiatório. Então, junta a sede de vingança, com falta de informação e necessidades políticas do governo italiano – não só da parte de Silvio Berlusconi [primeiro-ministro italiano].

O governo italiano pode ter a intenção de, a partir desse caso, gerar algum tipo de jurisprudência para pedir extradição de outros militantes que estão aqui no Brasil?

Certamente, isso é um balão de ensaio. Se Battisti for extraditado, eles não vão parar por aí. Existem uns 600 italianos dos “anos de chumbo” refugiados no Brasil. Acredito que é um plano para usar isso como propaganda. Mais que isso, se eles concedem extradição, todo sistema de concessão de refúgio do Brasil cai por terra.

A Itália tem fama de dar péssimo tratamento a seus presos políticos. Isso poderia pesar na decisão?

Só neste ano, 62 presos políticos se suicidaram nas prisões da Itália. Nos últimos nove anos, a média tem sido essa. No total, parece que nesse tempo cerca de 500 já cometeram suicídio. Há juízes em diversos lugares do mundo que se recusam a extraditar italianos devido às péssimas condições do sistema carcerário. Teve uma juíza americana que se recusou a mandar um mafioso porque disse que a prisão italiana era o caminho para a morte.

Qual é o contexto histórico do surgimento dos grupos armados de esquerda na Itália, na década de 1970?

A história começa com o fim da fascismo na Segunda Guerra Mundial. Os EUA estavam muito preocupados com o crescimento de partidos de esquerda na Europa. E eles tinham crescido mesmo. O Partido Comunista Francês era muito forte, e o da Itália era o que mais tinha filiados em toda a Europa. Então, tinha um plano que juntava a CIA, o Tratado do Atlântico Norte [Otan], setores da Igreja Católica e da máfia, a direita do Partido Democrata Cristão e, sobretudo, setores do Exército. Formaram um rede que atuou em toda Europa, mas na Itália foi muito forte, onde foi chamada de Operação Gladio, que passava pelo terrorismo de Estado. Eles começaram, a partir de 1969, a fazer uma série de atentados grandes, como bombas em lugares públicos. A primeira foi na praça Fontana, em Milão. Até esse momento, não havia esquerda armada na Itália, com exceção de uma divisão de autodefesa do Partido Comunista, que era formada com armas que usaram para combater na Segunda Guerra, contra os fascistas. Aí, nos anos 1970, aparecem as Brigadas Vermelhas, que aos poucos vai ficando cada vez mais violenta. E aí vão surgindo muitos grupos, dentre eles o de Battisti, o PAC. No geral, apoiavam greves, faziam propaganda e não eram muito violentos. Até que em 1978 decidiram matar um torturador da prisão de Udine. Battisti saiu do PAC logo após esse assassinato, justamente porque tinha críticas a essas ações violentas. Aí foi quando fugiu para o México.

Battisti sempre negou os crimes atribuídos a ele?

Há 18 anos ele nega, negou sempre. Desde que trabalho com direitos humanos, nunca vi alguém negar um crime por tanto tempo.

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A cabeça de Battisti

Sebastião Nery

Em junho de 1982, foi encontrado estrangulado em Londres, embaixo da “Blackfriars Bridge” (“a Ponte dos Irmãos Negros”), o banqueiro italiano Roberto Calvi, presidente do Banco Ambrosiano, que acabava de quebrar, e tinha como diretores o cardeal Marcinkus, o conde Umberto Ortolani e o chefe da P-2 italiana (maçonaria), Licio Gelli. Nos dias seguintes, na Itália e na Inglaterra, apareceram assassinados varios outros ligados a Calvi. Não é só na Santo André paulista que se limpa a área. No meio da confusão estava o conde papal Umberto Ortolani, um dos quatro “Cavaleiros do Apocalipse”. Quando, a partir de 90, a “Operação Mãos Limpas” chegou perto deles, o conde, banqueiro do Vaticano e diretor do jornal “Corriere de La Sera”, depois de mais um magnífico almoço com Brunello di Montalcino, mostrava-me Roma lá de cima de sua mansão no Gianiccolo e me dizia : - Isso não vai acabar bem.

MÁFIA

Depende o que é acabar bem. O Ministério Publico e a Justiça enfrentaram a aliança satânica, que vinha desde 1945, no fim da guerra, entre a Democracia Cristã e aliados e a máfia italiana. Houve centenas de prisões, suicídios. Nunca antes a máfia tinha sido tão encurralada e atingida. Responderam com atentados e bombas, detonando carros e assassinando procuradores, juízes e a esquerda radical. Os grandes partidos (a Democracia Cristã, o Socialista e o Liberal) explodiram. O Partido Comunista, conivente, desintegrou-se. E meu amigo conde, condenado a 19 anos, morreu em 2002, aos 90 anos.

"FORTES PODERES"

O banqueiro, o maçon, o cardeal e o conde eram uma historia exemplar do satânico poder dos banqueiros, mesmo quando, como ele, um banqueiro de Deus, vice-presidente do banco Ambrosiano do cardeal Marcinkus, que fugiu para os Estados Unidos e nunca saiu de lá. Os que criticam, sem razão alguma, o ministro Tarso Genro, por ter dado asilo político ao italiano Cesare Battisti, deviam ler um livro imperdível : “Poteri Forti” (“Fortes Poderes, o Escândalo do Banco Ambrosiano”), do jornalista italiano Ferruccio Pinotti, abrindo as entranhas do poder de corrupção do sistema financeiro, de braços dados com governos, partidos, empresários, maçonaria e mafia.

"MÃOS LIMPAS"

A “Operação Mãos Limpas” não teria havido se um punhado de bravos jovens, valentes e alucinados, das “Brigadas Vermelhas” e dos “Proletarios Armados pelo Comunismo” (PAC), não tivesse enfrentado o Estado mafioso, naquela época totalmente comandado pela máfia. O governo, desmoralizado, usava a máfia para elimina-los. Eles reagiam, houve mortos de lado a lado e prisões dos principais lideres intelectuais, como o filósofo De Negri (asilado na França) e o romancista Cesare Battisti, tambem exilado na França e agora preso no Brasil. Eu estava lá, vi tudo, escrevi. Quando cheguei a Roma em 90 como Adido Cultural, a luta ainda continuava, sangrenta, devastadora. Foram eles, os jovens rebeldes das décadas de 70 e 80, que começaram a salvar a Italia. Se não se levantassem de armas na mão, a aliança Democracia Cristã, Partido Socialista, Liberais e Máfia estaria lá até hoje. Berlusconi é o feto podre que restou e um dia será extirpado...

BERLUSCONI


O ex-presidente da França, Jacques Chirac, corrupto com atestado publico, a pedido de Berlusconi retirou o asílo politico de Battisti e o Brasil lhe deu. Tarso Genro está certo. O problema foi, era, continua político. O fascista Berlusconi (primeiro-ministro) é apoiado pelos desfrutaveis ex-comunistas Giorgio Napolitano e Massimo d`Alema, que se esconderam quando o juiz Falcone foi assassinado e o procurador Pietro, hoje no Parlamento, comandou a “Operação Mãos Limpas” Não têm autoridade nenhuma. Por que não devolveram Caciolla, o batedor de carteira do Banco Central, quando o Brasil pediu? As Salomés de lá e de cá querem entregar à máfia a cabeça de Battisti.

www.sebastiaonery.com.br

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A grande mídia e a desigualdade racial

Pesquisa do Observatório Brasileiro de Mídia:grandes revistas e jornais tem posição contraria a agenda de interesse dos afrodescendente

Venício Lima

O “Dia da Consciência Negra” é comemorado em todo o país na data em que Zumbi – o herói principal da resistência simbolizada pelo quilombo de Palmares – foi morto, 314 anos atrás: 20 de novembro de 1695. Muitas revoltas, fugas e quilombos aconteceram antes da Abolição em 1888.

O Brasil de 2009 é, certamente, outro país. Apesar disso, “os negros continuam em situação de desigualdade, ocupando as funções menos qualificadas no mercado de trabalho, sem acesso às terras ancestralmente ocupadas no campo, e na condição de maiores agentes e vítimas da violência nas periferias das grandes cidades”.

O estudo Síntese de Indicadores Sociais (SIS), divulgado em outubro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que, de 1998 a 2008, dobrou o número de negros e pardos com ensino superior. Mesmo assim, os números continuam muito abaixo da média da população branca: só 4,7% de negros e pardos tinham diploma de nível superior em 2008, contra 2,2% dez anos antes. Já na população branca, 14,3% tinham terminado a universidade em 2008. Dez anos antes, eram 9,7%. Entre o 1% com maior renda familiar per capita, apenas 15% eram pretos ou pardos no total da população brasileira.

A grande mídia e a desigualdade racial

Diante desse quadro de desigualdade e injustiça histórica, como tem se comportado a grande mídia na cobertura dos temas de interesse da população negra brasileira, vale dizer, de interesse público?

Uma pesquisa encomendada pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), realizada pelo Observatório Brasileiro de Mídia (OBM), analisou 972 matérias publicadas nos jornais Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo, e 121 nas revistas semanais Veja, Época e Isto É – 1093 matérias, no total – ao longo de oito anos.

No período compreendido entre 1º de janeiro de 2001 a 31 de dezembro de 2008, foi acompanhada a agenda da promoção da igualdade racial e das políticas de ações afirmativas em torno dos seguintes temas: cotas nas universidades, quilombolas, ação afirmativa, estatuto da igualdade racial, diversidade racial e religiões de matriz africana.

Não é possível reproduzir aqui todos os detalhes da pesquisa. Menciono apenas cinco achados de um Relatório de quase 100 páginas.

Com graus diferentes, os jornais observados se posicionaram contrariamente aos principais pontos da agenda de interesse da população afrodescendente. Em toda a pesquisa, as políticas de reparação – ações afirmativas, cotas, Estatuto da Igualdade Racial e demarcação de terras quilombolas - tiveram o maior o percentual de textos com sentidos contrários: 22,2%.

As reportagens veicularam sentidos mais plurais do que os textos opinativos que, com pequenas variações, se posicionaram contrários à adoção das cotas, da aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e da demarcação de terras quilombolas. A argumentação central dos editoriais é de que esses instrumentos de reparação promovem racismo. Em relação à demarcação das terras quilombolas, os textos opinativos em O Estado de S. Paulo, 78,6%, e O Globo, 63,6%, criticaram o Decreto n.º 4.887/2003 que regulamenta a demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. O argumento principal foi o de que o critério da autodeclaração é falho e traz insegurança à propriedade privada.

(A íntegra deste artigo se encontra aqui)

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

“Precisamos de uma Internacional de movimentos sociais”

Abaixo, uma excelente entrevista que o Brasil de Fato fez com o vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera:

“Precisamos de uma Internacional de movimentos sociais”

Vice-presidente da Bolívia cobra mais iniciativa dos movimentos sociais latino-americanos, pede visão “continentalizada” da esquerda e afirma que o atual processo político ainda não põe a superação do capitalismo em jogo, mas dele emergem ações comunistas no interior da sociedade

Elena Apilánez e Vinicius Mansur
de La Paz (Bolívia)

Álvaro García Linera não é um vice qualquer. Além de acumular o posto de presidente do Congresso boliviano, ele é um dos principais responsáveis pelas articulações políticas do governo de Evo Morales e talvez o mais destacado teórico do processo pelo qual passa a Bolívia atualmente. Sua larga bagagem política e intelectual, além de o credenciar a receber títulos como o “vice-presidente mais atuante do continente” ou o “intelectual mais importante da América Latina na atualidade”, também o capacita para dar largas e aprofundadas respostas, fazendo com que nossa entrevista não chegasse nem à metade das perguntas preparadas. Em meio à atribulada agenda de um vice-presidente e candidato à reeleição em campanha, Álvaro García concedeu ao Brasil de Fato duas rápidas horas de uma conversa pouco factual e mais analítica sobre o processo político que vive a América Latina, em geral, e a Bolívia, em particular.

Brasil de Fato – Um olhar sobre a história política latino-americana indica que, de certa forma, ela se move por ondas. O senhor acha que essa ascensão recente de governos oriundos de organizações com trajetórias de esquerda configura uma nova onda?

Álvaro García Linera – Creio que este é um ciclo muito novo e inovador sem comparação nos últimos 100 anos da história política latino-americana. A única coisa comum no século 20 foram as ditaduras militares. Fora disso, a esquerda teve presença descompassada na região. Processo parecido foi a onda de luta armada, mas não era presença vitoriosa de esquerda; era combativa, resistente, por parte da ala mais radicalizada. A vitória em Cuba trouxe uma leva guerrilheira, que nos anos 1960 estava em todo o continente. Quando a esquerda armada triunfa na Nicarágua, o continente já tinha outros ritmos, outras rotas. Então, pela primeira vez em 100 anos há uma sintonia territorial da esquerda, com governos progressistas e revolucionários. A direita já tinha essa habilidade de “continentalizar” suas ações.

Quais elementos dão unidade a essa sintonia?

O que permitiu a leva de governos progressistas foi o ciclo neoliberal. Ciclo que, mais ou menos, golpeou todos os países de maneira quase simultânea em seus efeitos e defeitos. O atual processo é muito inovador por seu caráter “continentalizado” de esquerda, pela busca de políticas pós-neoliberais – umas mais radicais, outras menos –, por ser um ascenso da esquerda através da via democrática-eleitoral, por ser a primeira vez que ela projeta estratégias de caráter estrutural coordenadas a nível continental. Antes, a esquerda tinha um olhar sobre o continente em termos da conspiração revolucionária. Nunca em termos de economia, de comércio, de criar um mercado comum, uma defesa comum. É uma série de desafios sobre os quais ela nunca tinha refletido, que tem a ver com o exercício de governo, com sua maturidade de reflexão. E também é inovador porque isso se faz sem um pensamento único de esquerda. Não há um referente comum como a URSS, por sorte; não está a China, melhor ainda. O processo de esquerda são muitas coisas agora. Pode ser marxista ultra-radical, pode ser socialista, pode ser vinculado ao pós-modernismo intelectual, pode ser mais nacionalista... e todos são esquerda. Isso é muito rico, permite uma pluralidade de reflexões, de discursos, de ideias. Não há o modelo a imitar ou uma “igreja” que dita o bom comportamento, como ditava antes. É um momento de reconstrução plural do pensamento de esquerda, ainda primitivo. Mas, temos que ver a história em processos que podem durar 50, 80 anos. Não nos desesperemos por não ter as coisas consolidadas agora, por não termos com claridade um grande programa de esquerda continental e mundial. Isso vai demorar 20 anos pelo menos, depois de várias derrotas, de várias vitórias e outras derrotas. Este é um momento germinal e ainda há pedaços do continente que estão em outro rumo. Isso é normal, inclusive, é possível prever a curto prazo uma volta parcial do pensamento e dos governos de direita em alguns países no continente e não vamos nos assustar. Lutemos contra isso, mas este é um processo longo e lento, vai requerer ainda várias levas de ascenso social e popular que permitam despertar toda a potência desse momento histórico, que ainda não se fez visibilizar totalmente. Ainda faltam novas ondas. Não esqueça que Marx usava o conceito de revolução por ondas. Elas vão e voltam, logo vêm de novo e regressam um pouco. A onda atual é das primeiras, logo haverá um pequeno refluxo à espera de uma nova onda que permitirá, a depender dos homens e mulheres de carne e osso, expandi-la a outros territórios e aprofundar as mudanças que até agora são superficiais, parcialmente estruturais.

Este processo coloca a superação do capitalismo em jogo?

Marx dizia que o comunismo é o movimento real, que se desenvolve diante de nossos olhos, e que supera a ordem existente. Não é uma questão de teoria, de discurso, é questão de realidade. E está claro que a primeira meta pautada pelas forças populares diversas do continente foi, em primeiro lugar, frear o esvaziamento social, democrático e material que caracterizou o processo neoliberal. Esvaziamento material a partir da exteriorização dos excedentes, esvaziamento social com a retirada dos direitos conquistados nos últimos 100 anos e esvaziamento democrático mediante a aterrizagem da doutrina única, liberal e individualista. O segundo momento é de reconstituir e ampliar direitos da sociedade, assumir controles do excedente econômico, expandir a geração da riqueza com sua distribuição. Essas demandas sociais surgem a partir de 1995 e são de caráter democrático-social, no sentido marxista do termo. Ainda não foram atendidas plenamente, como é o tema da terra, entretanto, elas já abriram espaço para demandas mais radicais, mais comunistas, que ainda são incipientes, parciais e fragmentadas. Veja a experiência argentina com a tomada de fábricas, as experiências no Brasil, na Venezuela, as empresas sociais na Bolívia, criadas no nosso governo, reivindicadas pelo povo, ou a potencialização dada às estruturas comunitárias, para buscar um desenvolvimento diferente à economia de escala, com tecnologias alternativas, articulações de produção. Todas elas avançam, têm a experiência de gestão e regridem. Aqui na Bolívia, com a questão da água: existia uma experiência falida [privatização da água em Cochabamba], defende-se a socialização do controle da água, implanta-se outra gestão e, em seguida, ela retrocede. Ou seja, essas potencialidades comunistas da sociedade – porque não há comunismo que não venha da sociedade, não há comunismo de decreto, não há socialismo de Estado, isso é sem sentido – têm ainda uma força muito dispersa, uma presença embrionária, não conseguem coagular, mas estão latentes. Seguindo essa leitura, hoje, em 2009, não estamos diante de uma perspectiva de superação do capitalismo. Dizer outra coisa é nos enganar. Mas emergiram ações da sociedade que apontam para o socialismo, construído pelas próprias classes trabalhadoras. Existem sinais, sementes, aflorações, mas ainda não constituem a razão dominante da sociedade.

E quanto isso amadurecerá?

Em dez, 20 anos? Não se pode definir. O que pode fazer o revolucionário é, a cada sinal de socialismo – como a reapropriação, por parte dos produtores, de sua própria produção com democratização e socialização da tomada de decisões –, reforçá-lo para que se expanda. O dever do comunista é meter-se de cabeça a cada abertura, não inventar o comunismo. O comunismo é a capacidade real do povo de produzir e se associar. Eu tenho a leitura de Marx, ao avaliar a Segunda Revolução Industrial, em 1850, que dizia que serão necessárias dezenas, milhares de lutas, de fracassos, de pequenas vitórias, depois novamente fracassos, para que, da própria experiência da classe trabalhadora, surja a necessidade de associar-se para tomar o controle da produção. E isso é uma visão muito, mas muito otimista do ciclo que está emergindo.

(A entrevista, na íntegra, pode ser lida aqui)

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Por que cantar o hino nacional?

Com dois dias de atraso, republico um excelente texto sobre nosso hino nacional, escrito para o site Via Política por ocasião das comemorações da proclamação da República:

Por que não canto o Hino Nacional

Por Mário Maestri, de Porto Alegre

Uma linguagem mandarinesca esconde os verdadeiros conflitos de uma sociedade dividida por interesses de classe, um Estado fundado e construído através da produção consciente da miséria, da exploração e da desigualdade

No início do século 19, os soldados franceses enviados por Bonaparte para vergar a barbárie e restabelecer a civilização na parte francesa da ilha de Santo Domingos, futuro Haiti, escutavam, ao longe, assustados e perplexos, o ressoar da canção querida que seus oficiais lhes proibiam cantar. Eram os negros insurrectos que, entoando a Marselhesa, surgiam da profundeza da noite para desbaratar as linhas do exército invicto.

Avante, filhos da Pátria
O dia de glória chegou

Contra nós, levantou-se,
O estandarte ensanguentado da tirania.
Escutai, nos campos, rugir esses ferozes soldados?
Eles vêm, nos nossos braços,
degolar vossos filhos, vossas companheiras.
Às armas, cidadãos! Formai, vossos batalhões!
Marchemos! Marchemos!

A Marselhesa teria sido composta para o exército do Reno, em 1792, pelo capitão-engenheiro Claude-Joseph de Lisle Rouget. Ela transformou-se na principal canção popular marcial e, muito mais tarde, no hino nacional da França, pela decisão e vontade anônimas e soberanas da população nacional em armas.

A Marselhesa foi selecionada entre tantos outros hinos porque, na forma e no conteúdo, sintetizava o entusiasmo com que a França democrática, republicana e plebeia levantava-se para vergar os aristocratas e conservadores que, dentro e fora do país, coligavam-se contra a revolução.

Após o golpe militar de 1799, Bonaparte proibiu aos soldados franceses cantar a Marselhesa, tamanha era seu poder de invocação democrática e revolucionária. A tradição conta que teria apenas permitido que fosse entoada, por uma única vez, em 1805, em Austerlitz, quando da grande vitória sobre os imperadores da Áustria e da Rússia.

Pela Internacional!

No século 19, através do mundo, a Marselhesa tornou-se a canção do movimento democrático e socialista. Em 1870, com a Terceira República francesa, ela foi reconduzida como hino patriótico francês. Portanto, em 1871, na Comuna de Paris, o mundo do trabalho e a ordem do capital defrontaram-se, de armas à mão, cantando o mesmo hino.

Durante os combates parisienses, foi composto o “Canto da Internacional: hino dos trabalhadores”, que o jornal oficial da Comuna falhou ao prognosticar como a possível “Marselhesa da nova Revolução” – como lembra Luiz A. Gini. Cem mil trabalhadores foram mortos, fuzilados ou aprisionados durante e após os combates pelas forças da reação burguesa.
O Canto da Internacional não prosperou. Porém, a canção revolucionária A Internacional, com música do operário Pierre Degeyter [1888] e poema escrito por Eugène Pottier, que participara da Comuna, em 1871, terminou celebrizando-se, no fim do século 19. Desde então, A Internacional constituiu o hino dos trabalhadores franceses e de todo o mundo, cantado com a mesma música nos mais diversos idiomas.

De pé, ó vítimas da fome!
De pé, famélicos da terra!
Da idéia a chama já consome
A crosta bruta que a soterra.
Cortai o mal bem pelo fundo!
De pé, de pé, não mais senhores!
Se nada somos neste mundo,
Sejamos tudo, ó produtores!
Refrão (bis)
Bem unidos façamos,
Nesta luta final,
Uma terra sem amos
A Internacional.

Macieira não dá laranjas. A gênese histórica e social radicalmente distinta do hinário patriótico brasileiro explica seu nulo poder evocativo popular e democrático. A ruptura da união do Brasil com Portugal foi certamente o movimento de independência mais atrasado e mais conservador das três Américas.

Para tranquilizar os interesses britânicos e portugueses, as classes dominantes provinciais do Brasil aceitaram o tacão centralizador e despótico de um príncipe português que era, igualmente, o herdeiro da coroa lusitana que renegavam. Para garantir a continuidade da ordem negreira, os grandes proprietários de todas as províncias optaram por um Estado monárquico, centralizador e antiliberal.

Independência de branco

Muito logo, os senhores teriam a prova amarga da tacanhice da solução bragantina. Em novembro de 1823, apenas 14 meses após o Sete de Setembro, dom Pedro desferia o primeiro golpe militar do Brasil independente, fechava a assembléia nacional constituinte e legislativa e ditava a constituição ant-liberal que governaria o Brasil até 1889.

A Independência de 1822 foi coisa de branco, de escravista e de rico, para branco, escravista e rico. A grande maioria da população trabalhadora, formada por africanos e brasileiros escravizados, prosseguiu sob o jugo absolutista e colonial do bacalhau de cinco dedos do escravista impiedoso.

O Hino da Independência teve autores mais ilustres do que a Marselhesa e a Internacional. A letra foi escrita por Evaristo da Veiga, prócer da Independência, e a música, composta pelo imperador em pessoa. Em verdade, o hino já seria executado, em 7 de setembro, à noite, no Teatro da Ópera, em São Paulo, diante do digno compositor e da igualmente digna elite escravista da cidade. Tudo muito chic e oportuno, portanto! Uma independência socialmente excludente geraria hino esteticamente excludente.

Já podeis da Pátria filhos,
Ver contente a mãe gentil;
Já raiou a liberdade
No horizonte do Brasil.

Como assinala Flávio R. Kothe, em O cânone imperial, o primeiro verso realiza-se na segunda pessoa do plural, comum à linguagem áulica da Corte e desconhecida da população livre pobre, para não falar da população trabalhadora, que se comunicava em boa parte através de línguas e koinés africanas e indígenas.

A contradição berrante entre os “filhos da pátria” que saudavam a “liberdade” que raiara “no horizonte” e as multidões de homens e mulheres de pele negra e parda acorrentadas à escravidão até a morte registrava o fato de que a massa trabalhadora não faria, sequer formalmente, por 66 anos, parte da nação que surgia. A pátria que se criava tinha poucos, mas escolhidos filhos.

República do fazendeiro

O golpe militar de 15 de novembro de 1889 pôs fim a um centralismo monárquico que a Abolição tornara desnecessário e, de lambuja, sufocou a proposta de refundação da nacionalidade brasileira defendida pelo movimento abolicionista. Então, todos os habitantes do Brasil passaram a participar, formalmente, de uma república essencialmente federalista e oligárquica e nulamente democrática e plebeia.

A ruptura com o passado monárquico exigiu a produção de novos símbolos republicanos, em geral construídos com o velho e usado material simbólico imperial, para que não esquecessem que, no fundo, pouco mudara. Em forma ainda mais radical, o hino mais cantado na República materializou formalmente a profunda rejeição, pelas novas classes dominantes, das classes populares, na nova ordem republicana.

As exóticas inversões sintáticas e o elitismo vocabular dos versos do Hino Nacional Brasileiro, musicado por Francisco Manuel da Silva, em 1841, registraram plenamente o elitismo da nova república dos coronéis e latifundiários, onde se manteve o mundo do trabalho na submissão, a ferro e fogo, se necessário, como comprovam, entre outros sucessos, a guerra de Canudos-Belo Monte, em 1897; a Revolta da Chibata, em 1910; a guerra do Contestado, em 1912.

O pernosticismo lexical e o preciosismo sintático usados por Osório Duque Estrada, na construção, em 1909, da letra definitiva do Hino Nacional, foram tão radicais que ele ainda hoje é praticamente incompreensível para a imensa maioria da população, incapaz de dar sentido a vocábulos retorcidos como “plácido”, “retumbante”, “fúlgido”, “resplandecente”, “impávido”, “florão”, “garrida”, “lábaro”, “verde-louro”, “clava” etc.

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heróico o brado retumbante
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da Pátria nesse instante

A linguagem do mito

A esquizofrenia patente de uma população cantando hino que não entende, ensejou propostas de simplificação linguística ou modificação radical da letra da canção pátria, para que o povo pudesse compreender o que cantava. Essas tentativas de remendo ignoram a funcionalidade, na ótica das classes proprietárias brasileiras, do caráter estrangeiro da língua em que foi composto o Hino Nacional.

O linguista marxista Mikhail Bakhtine lembrava que, por além da compreensão, na “consciência histórica dos povos, a palavra estrangeira fundiu-se com a idéia de poder, de força, de santidade, de verdade”. Por isso, em geral, o discurso religioso dá-se em língua impossível ou difícil de ser compreendida pelos crentes. Comumente, seu caráter evocativo se dissolve como sorvete exposto ao sol ao ser traduzido em língua de gente.

Foi com indignação e perplexidade que ouvi meu professor de latim explicar que o mágico e magnético “It missa est” de minha infância queria dizer qualquer coisa como “podem ir jogar futebol que a missa já terminou”. Os conteúdo irracionais de uma narrativa podem ser mais facilmente veiculados quando o estranhamento linguístico que produz nos receptores dificulta eles penetrem racionalmente os conteúdos sociais e ideológicos reais da mensagem.

A linguagem esotérica e arcaica galvaniza comumente sentimentos mágicos e aristocráticos imprecisos e difusos. No mundo das percepções invertidas e alienadas, a sentimentos superiores não pode corresponder, jamais, linguagem e conceitos inferiores. Ou seja, comumente, para que conteúdos elitistas alcancem efeito popular, eles não podem ser vertidos em linguagem popular compreensível.

A linguagem mandarinesca supera a impossibilidade de escrever, em língua de gente, canção que registre, no seio de espaço geográfico nacional, os inexistentes interesses comuns a banqueiros e bancários, a empregadores e empregados, a investidores e desempregados, a latifundiários e sem terra. Assim sendo, a linguagem rebuscada e incompreensível materializa facilmente sentimentos produzidos na esfera da irracionalidade social.

Nesse sentido, a repetição de uma produção verbal semi-compreensível, associada a sentimentos alienados e irracionais sacralizados, enseja que o homem comum, educado na repetição do rito desde criança, associe-se, periodicamente, a ato unitário de celebração nacional que consolida a perpetuação de Estado fundado e construído através da produção e reprodução consciente da miséria, da exploração e da desigualdade. Por tudo isso e mais um pouco, não canto o Hino Nacional.

15/11/2009

Fonte: ViaPolítica/O autor

Mário Maestri, 61, rio-grandense, historiador, é doutor em História pela Université Catholique de Louvain (UCL), Bélgica, e professor do Curso e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Passo Fundo (UPF).

E-mail: maestri@via-rs.net