segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A força que vem do Trópico

Brasil de Fato, edição 287 (de 28 de agosto a 3 de setembro de 2008)

As lutas em defesa da folha de coca na região do Chapare, no coração boliviano, serviram de fermento para a consolidação de um movimento social e político decisivo para a chegada de Evo Morales ao governo

Igor Ojeda
de Chipiriri, Villa Tunari e Cochabamba (Bolívia)

Numa estrada de cascalho em Chipiriri, María Eugenia caminha, ainda sob o efeito da reunião do sindicato de cocaleros, que acabara de terminar.

- Como foi?, pergunto. (Havia esperado três horas por sua saída)
- Boa. Era importante.
- Qual era o motivo?
- Por causa dos professores rurais que participaram do protesto contra o governo. Discutimos o que fazer com eles.
- Ah, pela Lei de Pensões, né?
- Isso. Eles têm todo o direito de se manifestar, mas não às vésperas do referendo revogatório. Serviram como instrumento da direita.
- Entendi. Por isso que vocês estão bravos?
- É. Passamos por tanta luta, tantas humilhações, violações e mortes para chegar a este processo de transformações, que não podemos pô-lo a perder.

Chipiriri não é um lugar qualquer do território boliviano. A pequena e pobre comunidade rural faz parte de uma importante região, famosa internacionalmente: o Chapare, ou Trópico de Cochabamba.
É nessa zona tropical no coração da Bolívia, que, do final da década de 1980 até os primeiros anos do novo século, viveu-se uma verdadeira guerra. De um lado, os produtores de folha de coca, acusados de narcotraficantes. Do outro, os governos de turno, armados com a polícia e o exército, e assessorados pela embaixada dos EUA, com o objetivo de erradicar as plantações.
O saldo: inúmeros mortos, feridos, detidos, traumatizados. Outras tantas estupradas. Mas, felizmente, não só isso. Tamanho terror estatal contribuiu, também, para o nascimento de uma consciência política cujo desdobramento ninguém foi capaz de controlar.
Pois o Chapare foi o berço do Movimiento Al Socialismo (MAS), espécie de partido/movimento social/sindicato que exerce a presidência da República desde janeiro de 2006. E é a região onde despontou como líder sindical e, posteriormente, político, o cocalero aymara Evo Morales, hoje presidente da Bolívia, e impulsionador, como diz María Eugenia, do “processo de transformações” pelo qual passa o país.



María Eugenia mostra como se colhe a folha de coca

Tempos de terror

“Posso ver suas credenciais?”, pergunta Ever Montoya, diretor da Radio Soberanía, antes de aceitar conceder a entrevista. Estamos a poucos metros e alguns dias antes da conversa com María Eugenia.
Entrego minha carteira internacional de jornalista. Ele olha, examina com atenção... e indaga, desconfiado: “O senhor é militar?”. Não, de jeito nenhum, quase exclamo. Ever tinha se confundido com meu endereço em São Paulo que constava no documento. A rua homenageia algum tenente desconhecido.
No Trópico de Cochabamba, os traumas adquiridos com os anos de guerra contra o Estado são perceptíveis a olho nu. Exemplos como esse acima se somam aos relatos dos que viveram, direta ou indiretamente, os horrores dos massacres, das invasões de domicílios, das prisões arbitrárias, das violações às mulheres e crianças.
“Antes, sofríamos. Não nos deixavam semear nossa coquita. Eles vinham e nos tiravam. Sequer nos deixavam coca para o pijcheo [o ato de mascar coca, em quéchua]. Porque nós estamos acostumados a pijchar para trabalhar. Eles diziam que, para ficarmos com um pouco, tinham que obter uma ordem do governo dos EUA. Pedíamos muito, dizendo que nos deixasse pelo menos um pouco para irmos a Cochabamba e trocarmos por vagem, por chuño [variação da batata]. Mas não permitiam”, lembra Luiza Argota, uma senhora cocalera que está no Chapare desde 1963 e que hoje vive em um chaco (como é chamada a pequena propriedade rural) em Chipiriri com o filho, a nora e os netos.
O filho, Claudio López Argota, quase não tem tempo de falar com a reportagem e mostrar a plantação de coca. Precisa remexer as folhas que estão no pátio, sobre uma lona de uns 60 metros quadrados. O processo ajuda na secagem adequada. Do contrário, a coca fica quebradiça e pouco apta para o consumo.
Mas, depois de alguns minutos, Claudio se dá uma folga: “Éramos bem reprimidos pelos governos anteriores. Havia muitas matanças, feridos. A vida não era tranqüila. Nos sentíamos como se estivéssemos em uma guerra. A cada instante, tínhamos que nos mobilizar. Então, nos jogavam gás lacrimogêneo, nos metiam bala. Eles diziam que aqui era a zona vermelha. Agora, mudou. Graças ao novo governo, é um lugar bem tranqüilo. Já dizem que é um paraíso tropical”.
A dirigente María Eugenia, hoje com 30 anos, viveu a “guerra” no Chapare na adolescência e no início da juventude. Ela sentiu o sofrimento na pele, pois seus pais participaram da resistência cocalera.
Quando tinha 8 anos, sua mãe, acusada de narcotráfico, ficou presa por quase cinco meses, até ser solta por falta de provas. Seu pai, em defesa da folha de coca, fez greve de fome durante três semanas, voltando para casa “meio morto”.
“Durante esse tempo, sofríamos muito. Tudo que tínhamos, o dinheiro que meus pais podiam economizar, eles levavam tudo. As coisas novas, cobertores, mosqueteiras, levavam tudo. Então, havia muita pobreza. Mesmo assim, não tínhamos onde viver, e por isso continuávamos aqui no Chapare”, lembra.
Não se conhece exatamente o número de mortos e feridos dos anos de repressão estatal aos cocaleros. No entanto, levantamento feito com base em dados de fontes oficiais e da imprensa pelo pesquisador Fernando Salazar, do Instituto de Estudos Sociais e Econômicos da Universidad Mayor de San Simón (UMSS), de Cochabamba, dá uma idéia aproximada.
No período de 1980 a 2004, teriam sido mortas 95 pessoas (entre elas, oito bebês asfixiados por gás lacrimogêneo, três menores de idade e três mulheres); detidas ilegalmente, 4130, e, estupradas, 13 mulheres, embora tal número seja considerado subestimado. Além disso, entre 1985 e 2004, foram torturados pelas forças oficiais 121 civis (dois menores e oito mulheres).
“Podemos fazer uma comparação com esse gravador. Se quisermos, apagamos o que tem dentro. O que não se pode fazer com a mente das pessoas, as crianças em particular, desde um ponto de vista psicológico. Ou seja, o jovem de agora, a criança de ontem, ainda vive seus traumas. Das invasões, dos gases, do cheiro... associam imediatamente um helicóptero com a presença militar”, lamenta Ever, da Radio Soberanía.

O “combate ao narcotráfico” made in USA

Os cocaleros do Trópico de Cochabamba tinham plena consciência que o inimigo era tanto interno quanto externo. Isso porque, a partir de 1986, o governo boliviano decidiu seguir as políticas antidrogas do governo estadunidense.
O tripé estava formado: guerra ao narcotráfico, erradicação das plantações de coca, e sua substituição por cultivos alternativos. Assim, uma série de planos, programas e leis nesse sentido foram sendo paulatinamente implantados pelas gestões neoliberais, acompanhados por uma duríssima repressão estatal e pela assessoria – militar, financeira e de inteligência – da embaixada dos EUA.
Mas os três eixos de atuação das políticas antidrogas do Estado boliviano não funcionariam sem um quarto pilar, fundamental: a intensa campanha mediática contra os cocaleros.
“Todos éramos narcotraficantes, narcoguerrilheiros. Até o povo nos odiava. Quando íamos nos mobilizar em Cochabamba, nos cuspiam. Era proibido que filho de cocalero ingressasse na universidade. Que fosse aos colégios na cidade. A população não entendia porque lutávamos. Claro, eram mal informados. Porque a lei dizia que coca era cocaína”, lembra Julio Salazar, secretário-geral da Federação do Trópico de Cochabamba.
Hoje, todos os cocaleros fazem questão de frisar que os tempos são outros. De paz, tranqüilidade, respeito à folha de coca. Mas a militarização da época da repressão permanece viva nos postos de controle de drogas do exército, espalhados pelo Chapare.
Sábado, 9 de agosto, estou no carro com María Eugenia e Julio, que havia me prometido a entrevista, mas em Villa Tunari, distante alguns quilômetros de Chipiriri, onde nos conhecemos.
No posto militar do meio do caminho, o dirigente cocalero tenta convencer o soldado a deixá-lo passar sem os trâmites obrigatórios. “Amigo, está chegando o presidente, vamos nos encontrar com ele”. Evo se reuniria com os cocaleros um dia antes do referendo. “Registro”, diz o militar, apontando a guarita em frente, com a voz e a expressão firmes, sem se comover. Resignado, Julio sai do carro com os documentos e se encaminha à identificação.
“Eles abusam. Nos apalpam”, aproveita María Eugenia para protestar. “Às vezes, fazem a gente se despir lá dentro”. Hoje ainda é assim?, pergunto, ingenuamente. “Sim, é”. Olho pela janela do veículo e leio, numa faixa: “Ajude a acabar com o narcotráfico no Chapare”.
Na foto acima, Luiza Argota

Da repressão à organização

“Morrer, antes que viver como escravos” é o que diz o refrão do hino boliviano. E seguindo a canção nacional que os cocaleros do Chapare foram se fortalecendo cada vez mais, à medida que a repressão aumentava.
“Se sabemos cantar, e desde crianças cantamos, então, agora, vamos enfrentar. Morreremos antes do que viver como escravos no Trópico de Cochabamba”, pensaram os sindicalistas, de acordo com María Eugenia.
“Tanta repressão nos obrigou a nos organizarmos. Agora, temos uma estrutura bem sólida. Em nenhuma parte do mundo, acredito que seja tão organizado. Porque, para nos mobilizarmos, são suficientes 24 horas. Sabemos exatamente quantas comunidades existem, quantas centrais, quantas federações. Na assembléia das seis federações [de centrais de sindicatos cocaleros da região], o que se decide é lei, se cumpre”, orgulha-se Julio.
O dirigente chama a atenção para o fato de que, embora um “companheiro” deles seja hoje o presidente, os cocaleros não dependem do governo, pois as bases contribuem financeiramente. “As bases aportam. Portanto, os dirigentes têm que trabalhar para elas”.
Claudio Argota, o cocalero que seca as folhas de coca no pátio de sua propriedade, é um exemplo. “Se não fossem nossas organizações sindicais, não poderíamos entender as coisas que acontecem. Graças a elas, nos metemos na política, temos mais conhecimento”, reconhece.
Hoje, o movimento continua mostrando uma coesão e uma força política impressionantes. Uma mostra clara disso foi a decisão, em junho deste ano, de expulsar a USAID (agência estadunidense de ajuda ao desenvolvimento) de todo o Chapare.
De acordo com os cocaleros, a entidade agia com o objetivo de dividir o movimento. “O dinheiro que vinha dos EUA em nome de desenvolvimento alternativo era usado para comprar dirigentes. Eles tinham moto, tinham soldo. Os opositores não tinham nada, éramos perseguidos, nem sequer dormíamos em casa”, conta Feliciano Mamani Quispe, hoje prefeito de Villa Tunari.
Segundo ele, que em 2002 foi baleado na perna pelo exército, obrigando-o a ficar por quase um ano no hospital, a USAID condicionava o financiamento a, por exemplo, apoio a prefeitos da região. “Se não apóia, perde o dinheiro. Já te põe entre a cruz e a espada”.
Fernando Salazar, da UMSS, identifica dois tipos de dinâmicas no sindicalismo do Trópico de Cochabamba. Um, ao nível das bases, de demandas ao Estado, muito horizontal: as decisões são amplamente discutidas, e tomadas em consenso.
“Quanto à relação com o Estado e organismos internacionais, por exemplo, existe outro nível de representação. É uma dinâmica mais vertical. Aqui há a hegemonia de Evo Morales, seu estilo. A coerção muito forte”, explica.
Segundo ele, a dinâmica das bases surpreende até ao presidente. “Existem esses espaços de horizontalidade que até ele é obrigado a reconhecer. Por exemplo, a eleição de dirigentes. Muitos não são de seu agrado. Seus grandes aliados às vezes são deslocados. Essa é a lógica também do MAS”, analisa.
Acima, Claudio Argota remexendo a folha de coca
O partido-sindicato-movimento

No mercado de coca de Villa 14 de Septiembre, distrito de Villa Tunari onde Evo vivia e militava, já não há mais tanta coca. Um ou outro saco do produto é guardado nos armazéns.
Às vésperas do referendo revogatório dos mandatos do presidente e dos governadores departamentais, o chão do local está forrado de faixas que acabaram de ser pintadas. Dirigentes cocaleros as avaliam. Em azul e branco (duas das cores do MAS, que ainda tem o preto), dizem: “Sim ao processo de transformações. Vote Evo”.
“No Chapare, a organização sindical e a política se confundem”, diz o sociólogo Jorge Komadina. Talvez por isso mesmo, nenhum cocalero entrevistado pela reportagem se referiu ao partido de Evo Morales como “MAS”. Todos, ao falar dele, usavam a expressão “instrumento político”.
Pois foi com essa razão de ser que ele nasceu, em meados dos anos 1990. “Antes, não sabíamos de política. Só estávamos organizados para reclamarmos as reivindicações específicas. Depois, junto com outras organizações do país, pensamos: Por que os produtores de coca, os camponeses, os indígenas, a classe média, a classe operária, não podemos ter um instrumento político?”, lembra Feliciano.
Os cocaleros já estavam fartos de apoiarem eleitoralmente os tradicionais partidos de esquerda ou até os de direita, em troca da manutenção das plantações de coca. As negociações de espaços de poder por parte da esquerda, sem consultá-los, e as políticas de criminalização da coca por parte da direita os fazem repensar suas ações.
“Esse é o momento de coesão do movimento cocalero, e também do movimento camponês em geral, que coincide com o rechaço às comemorações dos quinhentos anos do descobrimento da América, em 1992”, explica Fernando Salazar.
De acordo com ele, a contestação ao Estado colonial ainda vigente no país fez com que, nacionalmente, se trabalhasse muito fortemente o empoderamento dos povos originários, com a formação de uma militância de esquerda, através da educação e comunicação populares, mas para um projeto indígena.
“Era um projeto político de uma nova Bolívia. Entre setembro de 1990 e outubro de 1992, houve um intenso trabalho para que amadurecesse a proposta de criação do instrumento político para a soberania dos povos. Instrumento indígena, com apoio das classes médias e de intelectuais, mas saindo das margens da velha esquerda nacional”, sintetiza.
Assim, o novo “partido” nasce, primeiro, com o nome Assembléia para a Soberania dos Povos (ASP). No entanto, a burocracia da Corte Nacional Eleitoral impede, durantes quatro anos, sua participação nas eleições nacionais e municipais, obrigando o novo movimento a fazer alianças com partidos tradicionais.
Em 1999, “um grupo de intelectuais de esquerda de La Paz, dá a sigla MAS de presente aos cocaleros. Porque estes decidem, de uma vez por todas, lançar-se com partido próprio, enquanto os outros setores ainda estavam na velha prática de buscar alianças”, explica Fernando.
À nova sigla, agrega-se o nome “Instrumento Político para a Soberania dos Povos”. Estava criado o MAS-IPSP. A partir daí, o crescimento eleitoral foi vertiginoso, até conquistar a presidência, em dezembro de 2005.
Segundo Jorge Komadina, o MAS surgiu, a princípio, como um movimento que queria intervir nas eleições municipais, combinando tal atuação institucional com a defesa da folha de coca. “Em virtude de sua luta contra os governos neoliberais, os sindicatos de produtores de coca se constituíram em um setor de vanguarda das lutas sociais na Bolívia. É o movimento social melhor estruturado, que conseguiu articular demandas específicas com um programa político nacional antiimperialista, de defesa da dignidade nacional. Não é casual que Evo Morales, dirigente dos cocaleros, tenha sido o representante das lutas anti-neoliberais na Bolívia”, analisa.
Para ele, por essas razões, o MAS é mais um movimento social que um partido político, pois, apesar de atuar nas eleições, é uma organização política com profunda base social. “É um fenômeno inédito na história boliviana”.
Quanto aos riscos de burocratização devido às funções de governo, Jorge acredita que, até agora, isso não aconteceu, pois existe um fluxo muito intenso entre o presidente e os dirigentes dos movimentos sociais.
Para garantir que Evo não se afaste das bases, os cocaleros o mantêm como presidente da Coordenação das Seis Federações do Trópico de Cochabamba, entidade sindical máxima do Chapare.

Uma metáfora

“O instrumento político seria como a pessoa, e a folha de coca, o sangue. Todas essas ações, concentrações, que estamos realizando, é a folha que nos financia. Cultivamos, vendemos, e com esse mesmo dinheirinho, vamos fazer campanha. A organização sindical, o instrumento e a coca não podem ser separados. Estão muito ligados, porque, da coca, passamos à política”, resume María Eugenia.
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O “controle social” do narcotráfico

Para impedir o aumento das atividades ilícitas na região, sindicatos atuam para garantir que a produção de coca por família se restrinja ao máximo permitido

De Chipiriri, Villa Tunari e Cochabamba (Bolívia)

De forma unânime, os cocaleros do Chapare reconhecem a presença do narcotráfico na região. Mas rechaçam veementemente a criminalização da folha de coca e dos seus produtores. “Pela necessidade das pessoas, elas sempre se metem nisso. Não negamos que isso existe. Não podemos dizer que somos livres de narcotráfico, mas queremos acabar com ele”, diz Feliciano Mamani Quispe, prefeito de Villa Tunari, município local.
De acordo com Fernando Salazar, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Econômicos da Universidad Mayor de San Simón (UMSS), de Cochabamba, o Chapare se tornou uma zona livre de produção de cocaína em meados dos anos 1970. “Todo camponês estava ligado à droga. Não havia outra alternativa. Tudo era caríssimo na região”.
Do início do neoliberalismo no país, em 1985, até 1990, a produção de cocaína se intensifica, ajudada pela vinculação dos governos de então com o tráfico de entorpecentes. “Toda a pobreza da Bolívia vai ao Chapare como último recurso de sobrevivência. Para trabalhar na coca para o narcotráfico”, explica Fernando.
Na década de 1990 em diante, a ligação dos camponeses com a produção da droga diminui, mas a repressão estatal aumenta. No entanto, durante a gestão do presidente Carlos Mesa (2003-2005), na iminência de uma guerra civil – nas palavras do pesquisador da UMSS – entre cocaleros e agricultores que recebiam financiamento para cultivos alternativos, decide-se permitir que cada família possa produzir um cato de coca, ou seja, 1,6 mil metros quadrados (mais ou menos a sexta parte de um hectare).
Tal medida permanece até hoje, mas não é suficiente para garantir a sobrevivência familiar. Claudio López Argota, por exemplo, explica que há, por ano, quatro colheitas da planta, o que rende, aproximadamente, 600 libras.
Com a libra a 20 bolivianos (a moeda do país), a produção de coca gera em torno de mil bolivianos por mês, um pouco menos que dois salários mínimos. “Isso não sustenta, temos que fazer durar até a próxima colheita. Não dá para viver. Nos sustentamos com outros cultivos: cítricos, banana, mandioca, arroz”, conta Claudio.
Mesmo assim, o cato de coca é objeto de um “controle social” por parte dos sindicatos cocaleros. “Nos comprometemos a respeitar para ajudar nosso governo a governar. Não queremos que a comunidade internacional o acuse no tema do narcotráfico”, esclarece Julio Salazar, secretário-geral da Federação do Trópico de Cochabamba. Já María Eugenia Ledezma, secretária de atas da Federação de Mulheres do Trópico de Cochabamba, protesta contra a penalização da folha de coca. “Em seu estado natural, ela não é droga. Para que seja droga, põem químicos, e estes, onde fabricam? Nos EUA, e desde lá vêm. Os postos de controle que deixam esses químicos passar. E nos envolvem pelo fato de que produzimos a folha de coca”. (IO)
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A trincheira cocalera na guerra de informação

de Chipiriri (Bolívia)

Na parede da Radio Soberanía, em Chipiriri, pode-se ler: “A voz soberana do cocalero”. Provavelmente, sem esse instrumento, teria sido muito mais difícil para o movimento sindical do Trópico de Cochabamba avançar em sua organização.
Pois a rádio comunitária local serviu como uma das principais trincheiras da resistência cocalera às políticas de erradicação da folha de coca durante os governos neoliberais. Criada em 1996, o meio nasceu, segundo Ever Montoya, seu diretor, com a necessidade de expressar o pensamento, a idéia, as inquietudes e as aspirações das pessoas assentadas na região.
“Nenhum meio daqui queria sequer difundir sua música, seus costumes. Para as rádios da década de 1970 e 1980, os cidadãos que viviam na área não existiam. Ou seja, se vulneravam os direitos da liberdade da informação e de expressão”, explica.
Por isso, os sindicalistas da Federação do Trópico de Cochabamba começaram a considerar, já nos anos 1980, a possibilidade de se comprar meios de comunicação. “Era importante também para contestar as políticas de erradicação da coca, de sua substituição por produtos alternativos. Por meio de uma ação mediática, tinha-se a imagem que todo o Chapare era zona de atividade ilícita, de narcotráfico”.
Segundo Ever, na época da repressão estatal, a rádio servia como instrumento de convocatória massiva e imediata. Por isso, para ele, é uma das mais combativas que existem. “Defendeu os direitos humanos, a terra e o território de quem veio formar esses assentamentos”.
Hoje, a Radio Soberanía conta com o apoio financeiro das federações de cocaleros do Chapare. Antes de alcance mais limitado, agora chega a todas as comunidades da região. De acordo com Ever, a população local confia na rádio como “único instrumento para dizer sua verdade. Porque não existe outro meio de comunicação crível para eles”. (IO)

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Livro sobre a Bolívia

Quem estiver em Fortaleza amanhã (dia 10)... será lançado, na UFC, o livro "Bolívia Jakaskiwa: mudanças políticas, povos indígenas, educação e reforma agrária", de Raimundo Caruso e Mariléa Caruso.

Os dois estiveram na Bolívia em janeiro, quando fizeram diversas entrevistas.

Lançamento do livro "Bolívia Jakaskiwa: mudanças políticas, povos indígenas, educação e reforma agrária" e conversa com o autor Raimundo Caruso

Dia: 10 de outubro
Hora: 9h30min
Local: Auditório da Reitoria da Universidade Federal do Ceará (UFC)

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

É muita cara de pau

Hoje, recebi um release de uma tal de Human Rights Foundation, que diz estar “preocupada” com a situação de direitos humanos na Bolívia, principalmente no que diz respeito à violência política.

A conclusão é a seguinte: toda a culpa, todinha, é do Evo. Afinal, desde que ele tomou posse, vem incitando a violência, “fazendo propaganda da guerra, apologia ao ódio racial” e convocando a defesa, pelo povo, das transformações (se preciso, até a morte) etc etc.

É incrível a cara de pau.

Então, é assim: durante cinco séculos, uma elite vem saqueando o país e escravizando a maioria da população em seu benefício. Um indígena ganha a eleição para presidente, e, quando tenta fazer algumas mudanças para corrigir tamanha injustiça (nada super radical, socialista ou comunista não, são medidas básicas que qualquer país capitalista minimamente desenvolvido fez), esta mesma elite, que não quer perder seus privilégios, reage. Violentamente.

Aí, a culpa da violência política que existe no país é de quem? Claro, do presidente indígena. Se não tivesse mexido no vespeiro, se tivesse deixado as coisas tais como elas são, nenhuma morte teria ocorrido, oras. Esperemos que ele aprenda a lição...

Inacreditável.

Vale lembrar que em maio, a tal organização foi apresentada com toda pompa, em Santa Cruz de la Sierra (eu presenciei essa cena patética), como observadora internacional do referendo sobre o estatuto autonômico. Detalhe: foi a única de fora da Bolívia, já que ONU, OEA, União Européia etc tinham recusado a participar de tal farsa.

(Claro que o veredicto foi que se viveu uma “festa democrática” em 4 de maio)

Mas as “denúncias” da HRF não terminam aí. A organização menciona, também, as mortes derivadas da repressão estatal contra mobilizações contrárias ao governo. Ignoram (será?) que, por exemplo, no caso dos jovens mortos em Sucre, em novembro, a perícia concluiu que as balas que os mataram não saíram de armas da polícia ou do exército. Portanto, se mesmo assim ainda não dá para isentar o Estado (até a conclusão das investigações), tampouco é honesto condená-lo de antemão.

Mas como pedir honestidade a uma entidade que nem cora de vergonha ao afirmar que inclusive o massacre de camponeses em Pando é culpa do Evo? Claro, afinal, ele é o grande responsável pela criação de todo este clima de conflito, ao denunciar com todas as letras as verdadeiras intenções da oligarquia boliviana.

Talvez o presidente boliviano devesse ser mais como o Lula, o conciliador. Reforma agrária só nos números, crédito e mais crédito para o agronegócio, amplo favorecimento às transnacionais, juros estratosféricos para os banqueiros... mas tudo, claro, com sensibilidade social: taí o Bolsa Família, o aumento do salário-mínimo e o crescimento da classe média da FGV (queria ver se um pai ou mãe de família com mil reais de renda familiar mensal se consideram de classe média).

Será que o Evo não percebe como o Brasil vive na mais santa paz?

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Só para registrar

Há exato um ano, em 6 de outubro de 2007, eu desembarcava em Santa Cruz de la Sierra, meio perdido, sem saber direito como chegar em Vallegrande e La Higuera, para cobrir as celebrações dos 40 anos da morte do Che.

Incrível, parece que foi ontem. Mas, ao mesmo tempo, parece que passou muito mais tempo, pela quantidade de experiências novas que vivi, pessoalmente e profissionalmente.

Poucos têm a sorte de conhecer bem um país como esse e seu povo fantástico, e, além de tudo, presenciar um momento político-social como o atual. Valeu, e como valeu.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Pôr-do-sol em La Paz

E com El Alto ao fundo...

A batata, dos Andes para o mundo

Brasil de Fato, edição 283 (de 31 de julho a 6 de agosto de 2008)

Com uma série de atividades, Bolívia comemora, em 2008, o Ano Internacional da Batata; tubérculo teve origem nas margens do Lago Titicaca

Igor Ojeda
Correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia)

Alguns poucos dias na Bolívia são suficientes para qualquer um notar uma de suas principais peculiaridades gastronômicas: a importância da batata na alimentação local. São raros os almoços em que este tubérculo não seja um dos componentes do prato principal no dia-a-dia dos bolivianos.
Claro que, em tempos de globalização neoliberal e da cultura fast food, sua versão frita já é a dominante nas refeições. Mesmo assim, talvez como em poucos lugares do mundo, é na Bolívia onde se pode deparar com uma imensa variedade – de tamanho, consistência e cor – do alimento. No país andino, existem cerca de mil espécies.
Nas feiras, mercados de rua, ou até mesmo nas redes de supermercados, é possível perceber isso rapidamente. Chuño e tunta, por exemplo, não são outra coisa que denominações para a batata que conhecemos no Brasil, só que cultivada de uma maneira diferente e/ou em ecorregiões distintas.
Por isso, quando, em outubro de 2007, o Fundo das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), declarou 2008 como o Ano Internacional da Batata, diversas organizações e instituições do governo boliviano passaram a pensar e organizar diversas atividades para celebrar o alimento.

Origens

Feiras de produção, exposições de fotos, pinturas, lançamentos de selos comemorativos, iniciativas com vistas a melhorar a produção, investigações... Eventos que buscam ressaltar a importância da batata (ou papa, como ela é chamada na América de língua espanhola) como produto alimentício e a necessidade de valorizar a sua biodiversidade genética. Além de ela formar a base alimentícia da população da Bolívia, pesa decisivamente o fato de muitos arqueólogos atribuírem sua origem, há oito mil anos, nas margens do místico Lago Titicaca (a 3.800 metros de altitude), que o país compartilha com o Peru.
“A informação que temos é que seu cultivo teve início na região do lago, mais ou menos entre Santiago de Huata e Puno. Mas é um pouco equivocado dizer que surgiu aqui ou ali porque, quando se planta, depois de cinco anos é preciso renovar as sementes, e isso imediatamente cria relações sociais, a troca de sementes com outras comunidades. Então, depois que uma comunidade começa, todas as outras em volta passam a fazer esses intercâmbios”, explica a antropóloga inglesa Denise Arnold, do Instituto de Língua e Cultura Aymara (ILCA).

Difusão

Ela conta que há registros iconográficos na região sobre a batata em culturas pré-incas, como a de Chiripa, e que o tubérculo possuía muita importância durante a civilização de Tiwanaku (1500 A.C. – 1200 D.C.), cuja capital estava localizada nas margens do Titicaca. “Antes da queda de Tiwanaku, houve uma crise ecológica e, nesse momento, eles tentaram desenvolver uma produção estatal de batata para manter o controle do Estado sobre o Império e para sustentar suas cerimônias e manter todos trabalhando com eles”, elucida Denise, que lembra, ainda, que para os incas, a produção de batata, e especialmente de chuño, também era vital. “Era uma obrigação de todos os súditos proverem o exército”.
Do Lago Titicaca, o cultivo da batata se difundiu para outras partes da América. “O Império Incaico estendeu seu cultivo em várias regiões do continente sul-americano, e depois os espanhóis tiveram um papel fundamental na disseminação deste tubérculo na Europa e de ali para outros continentes. Atualmente, o cultivo de batata é o terceiro do mundo”, explica Jorge Blajos, gerente de investimentos e finanças da Fundação Proinpa (Promoção e Investigação de Produtos Andinos). Hoje, os principais produtores do tubérculo são a China, a Rússia, a Índia e os Estados Unidos.
Segundo Blajos, a constatação de que ele é a base alimentar dos povos andinos fica facilmente evidenciada pela média de consumo. Anualmente, cada habitante da região ingere 60kg do alimento. Na zona rural, tal número se eleva até os 100kg. “A batata não deve ser entendida como um alimento mais, uma vez que a grande biodiversidade que ela alberga representa, também, cultura e segurança e soberania alimentares”, diz.

Rituais de cultivo

Tamanho significado inclui os rituais cerimoniosos no seu cultivo, relacionados, especialmente, com a fecundidade da terra. De acordo com Denise, a batata, nesse aspecto, possuia, entre os povos pré-invasão espanhola, o mesmo prestígio que o milho, tido por alguns estudiosos como o alimento mais importante, por exemplo, entre os incas. Até hoje, lembra, tais ritos ainda são seguidos.
Estima-se que, apenas em solo boliviano, mais de 280 mil famílias estão envolvidas diretamente na produção do tubérculo – indiretamente, supera as 350 mil. Um número bem significativo se comparado com o total da população do país (cerca de 9 milhões de pessoas).
“Na Bolívia, a batata é o principal produto agrícola da zona andina, com uma área cultivada de 130 mil hectares. Sua produção e comercialização é a principal fonte de ingressos para milhares de pequenos agricultores”, salienta Bajos, do Proinpa. A existência de uma enorme variedade do tubérculo explica-se, segundo Denise, a fatores como a combinação do esforço do ser humano – que, com o cruzamento de espécies, prevenia-se de perdas das produções – e cultivos em diferentes micro-climas.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Potosí

O Cerro Rico visto da praça principal de Potosí


A primeira coisa que chama a atenção ao se chegar em Potosí é o Cerro Rico. Um morro meio triangular, pontiagudo, seco, deteriorado. Logo vem na cabeça sua triste história.

Não é exagero afirmar que, se o Cerro Rico não tivesse existido, a Europa não seria o que é hoje. Foi de suas milhares de galerias que saiu grande parte da prata que financiou a opulência e o desenvolvimento do Velho Mundo. Claro, baseados em um perverso colonialismo e em milhões de indígenas mortos.

Apesar da grande vontade e curiosidade que eu tinha em visitar Potosí, ainda não o tinha feito (só tinha passado de ônibus, indo e voltando de Sucre). A “cidade mais alta do mundo”, a 4.100 metros acima do nível do mar, está a 9 horas de viagem de La Paz, o que, para os padrões bolivianos, é ali do lado.

Justamente por sua prata, Potosí chegou a ser, lá pelo século 17, a capital do mundo. Sua população era maior que a de qualquer cidade européia. Como qualquer lugar “abençoado” por tanta riqueza, a desigualdade era gritante. De um lado, uma elite espanhola e criolla mandando e se lambuzando na luxúria, de outro, milhões de escravos explorados até a morte.

Chegando à cidade, depois do impacto deixado pelo Cerro Rico, a herança colonial nas casas do centro e as igrejas locais são a segunda coisa que impressiona. Dá uma certa raiva pensar na colonização e nos seus cruéis efeitos sobre a cultura nativa – Potosí talvez seja o maior símbolo disso. Mas, ao mesmo tempo, é difícil não admirar a beleza da arquitetura colonial.

As igrejas são um caso à parte. Primeiro, pela quantidade (lembra Ouro Preto). Depois, pelo fato da maior parte delas ter suas entradas voltadas para o Cerro Rico, no sul, e não para o oeste, como dizem que se faz normalmente. Terceiro, pela sua arquitetura “mestiço-barroca”. São realmente impressionantes.




Acima, a catedral de Potosí; abaixo, a igreja de São Francisco

Outro lugar impressionante é a Casa da Moeda (foto abaixo), do lado da praça principal. É uma construção enorme e imponente, que ocupa um quarteirão inteiro. E é, talvez, o melhor museu boliviano. Nela que a Coroa espanhola produziu, durante uns dois séculos, boa parte das moedas de prata que utilizou para manter seu Império colonial.

Durante a visita, pode-se ver algumas delas, desde as mais rústicas, do século 18, até as mais “modernas”. Há, também, as diversas máquinas e ferramentas utilizadas ao longo dos anos. E muitas outras coisas mais, como pinturas religiosas e minérios tirados do Cerro Rico.

Mas o ponto alto da visita a Potosí é a “excursão” às minas locais. Hoje ainda se extraem alguns minérios do Cerro Rico, embora sejam residuais. Só dá para ir até suas galerias através de agências de turismo (pagando algo em torno de R$ 25). Eles fornecem a roupa e o capacete de “mineradores”.

Mas eles não avisam corretamente os turistas. Por exemplo, que quem sofrer um pouco que seja de claustrofobia, ou não estiver com um mínimo de forma física, não tem condições de fazer o passeio. Pois há momentos em que a única forma de se locomover nas galerias é engatinhando, se arrastando, ou até fazendo uma mini escalada. Junta-se a isso a grande quantidade de poeira que se é obrigado a inalar.

A adrenalina e a sensação claustrofóbica são bem significativas. Claro que não é o tempo todo assim, mas tais momentos são realmente desafiadores. Mesmo assim, para mim, valeu bem a pena para conhecer as infernais condições de trabalho dos mineradores. E para imaginar que, se hoje é assim, na colônia deve ter sido muito, mas muito pior.


Minerador num momento de descanso e mascando coca para aplacar o cansaço

Vale também pela oportunidade de conversar com alguns dos trabalhadores e beber com eles. Se te oferecem um trago, recusar é uma grande ofensa. O problema é que o que eles tomam é, muitas vezes, quase álcool puro.

Bem, paciência. O jeito é aceitar o convite, jogar dois goles no chão (um para a Pachamama, a mãe-terra, outro para o Tío, ou seja, o diabo, protetor das minas), beber um pouco, tentar disfarçar a careta e torcer para que não ofereçam outra vez.

domingo, 28 de setembro de 2008

A nacionalização do gás, dois anos depois (parte 2)

Abaixo, a segunda parte da matéria sobre a nacionalização do gás. Daqui a pouco, volto para contar minha visita à Potosí.

Brasil de Fato, edição 281 (de 17 a 23 de julho de 2008)

Processo é marcado por contradições

Conciliando a administração estatal com grandes grupos econômicos, nacionalização não atinge estruturas

de La Paz (Bolívia)

Apesar das recentes medidas tomadas pelo governo boliviano no sentido de avançar na nacionalização dos hidrocarbonetos, existem ainda inúmeras críticas ao processo liderado pelo presidente Evo Morales.
“O erro do governo residiu em executar o decreto de maio de 2006 a conta-gotas, em vez de aproveitar o fervor e a mobilização popular que resultou na medida. Por exemplo, a YPFB devia ter tomado o controle da produção de petróleo em poucas semanas, o que obrigaria a Petrobras a vender suas refinarias imediatamente, em lugar de esperar um ano”, analisa Andrés Soliz Rada, ex-ministro dos Hidrocarbonetos da atual gestão.
Para ele, a recuperação das empresas Transredes, Chaco e Andina (ver matéria) também deveria ter sido executada na ocasião. “E o pagamento das indenizações deveria estar condicionado aos resultados das auditorias previstas pelo decreto, assim como às sentenças judiciais por golpe, evasão de impostos e contrabando, cometidos pelas petroleiras, incluindo a Petrobras”.
Segundo Rada, outro problema derivado da nacionalização é o mau uso dos seus recursos financeiros. Ele critica a destinação do dinheiro a bolsas sociais e a empréstimos a transnacionais e bancos estrangeiros.

Mau negócio

“A Bolívia empresta ao Banco Santander Hispano, por exemplo, a 3% de juros anuais, com o argumento de que ter o dinheiro dentro do país gera inflação. E toma emprestado da Corporação Andina de Fomento (CAF) a 8% anuais. Por que não usar isso numa planta separadora de líquidos, numa refinaria grande para não ter que subvencionar o gás que importamos?”, questiona.
Carlos Arze Vargas, diretor do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Laboral e Agrário (CEDLA), vai mais longe nas restrições ao processo. Para ele, não houve uma verdadeira nacionalização em 1º de maio. “Foi uma reforma basicamente no aspecto tributário do setor. Essa é a principal mudança, ainda que existam outras secundárias, por exemplo, uma maior participação em algumas fases da atividade hidrocarburífera, mas a medida mesmo não consistiu em uma expropriação de ativos nem de direitos”, opina.
De acordo com Vargas, houve uma “negociação de concessões”: as empresas deveriam cumprir a lei, e o Executivo garantir a segurança jurídica, além de acelerar a exportação. “O governo submeteu as empresas à lei, mas com base em contratos renegociados que não significa substancialmente mudanças rumo a um maior controle do excedente”.
Como agravante, os novos contratos, ao começaram do zero, eliminaram as práticas ilegais das petroleiras, e, além disso, não lhes exigem um cronograma de investimentos na produção.

“Capitalismo social”

Na opinião de Vargas, tais contradições encontram explicação na própria ideologia do Movimiento Al Socialismo (MAS, partido do governo), que aspiraria converter pequenos proprietários e a classe média em atores importantes na economia do país, mas sem excluir os grandes grupos, inclusive os monopólios. “É a famosa frase de Evo, de que queremos sócios, não patrões. Ou seja, pode-se conviver com as grandes empresas num novo tipo de capitalismo social. É o capitalismo andino-amazônico de do vice-presidente Álvaro García Linera”.
Daí, viria a proximidade da política de hidrocarbonetos da Bolívia com petroleiras como a Petrobras e a francesa Total. Para Andrés Soliz Rada, a empresa brasileira já recuperou todas as posições que se haviam enfraquecido com a nacionalização. “Se Evo tem terríveis problemas com a meia lua [a oposição regional ao governo], e pede ajuda para o Lula, o que o Lula pode pedir que o Evo possa negar? ‘Eu falo que a meia lua é ilegal, mas o contrato tem que dizer isso, isso e isso.’”, exemplifica.
Em relação aos franceses, Rada conta um episódio descrito em um livro do ex-presidente Carlos Mesa (2003-2005). “Ele diz que se reuniu, numa ocasião, com integrantes do MAS para discutir a lei de hidrocarbonetos. E que, junto com a delegação, estava um homem chamado Gastón Mujía. Ele é o representante da Total na Bolívia!”.
O resultado, segundo Rada, é que, nos dias 27 e 28 de outubro de 2006, data da assinatura dos novos contratos com a petroleira, quem assina primeiro é a Total, enquanto as demais o fazem no dia seguinte. “Acredito que tal relação tenha nascido em viagens prévias de Evo como candidato à presidência”, diz.

Crise energética

A falta de mão dura no trato com as transnacionais e a conseqüente falta de obrigatoriedade de investimentos seriam as causas principais, na opinião de Carlos Arze Vargas, do CEDLA, da crise energética pela qual passa e passará o país (60% da eletricidade vem do gás), além da incapacidade de abastecer suficientemente a Argentina de gás natural.
Atualmente, a Bolívia produz 42 milhões de metros cúbicos ao dia. Cerca de 7 milhões de m³ são destinados ao mercado interno, 31 milhões de m³ ao Brasil, e o restante à Argentina, que recebe menos de 30% do que o previsto. “A crise já se apresentou. A escassez de diesel e de GLP está se tornando crônica. O governo só apela para soluções conjunturais, sem atacar os problemas de fundo, como a construção do Gasoduto Boliviano do Ocidente”, lamenta Rada. (IO)

Estado não arrecada 82% da produção de gás

Desconhecimento do resultado de auditorias nas petroleiras reduz a tributação para pouco mais de 50%

de La Paz (Bolívia)

A idéia que se tem sobre a nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia, decretada pelo presidente Evo Morales, é que, desde então, as transnacionais passaram a receber, de retorno, apenas 18% do valor da produção de gás, e não mais 50%.
No entanto, atualmente, as porcentagens se aproximam mais do segundo que do primeiro caso. Isso porque, em primeiro lugar, o decreto de 1º de maio de 2006 estabeleceu os 32% adicionais de imposto – destinados à YPFB – apenas às operações nos mega-campos de San Alberto e San Antonio, operados pela Petrobras.
Em relação aos restantes, a tributação foi mantida nos mesmos patamares até a entrada em vigência dos novos contratos, em maio de 2007, já que estes tiveram que passar pela aprovação do Congresso Nacional.
Além disso, a cobrança adicional dos 32% aos mega-campos de gás foi estabelecida de forma provisória, também até maio de 2007. A partir de então, a porcentagem cobrada de todas as empresas seria definida através da realização de auditorias nas petroleiras, que analisaria variáveis como investimentos, custos etc.

Tributação menor

Porém, como na ocasião da assinatura dos contratos, em outubro de 2006, as investigações ainda estavam em curso, a YPFB aceitou, temporalmente e de “boa fé”, os dados proporcionados pelas próprias transnacionais.
Entretanto, até o momento, os resultados das auditorias ainda não são conhecidos oficialmente. Enquanto isso, a participação de 32% devido à YPFB se reduziu a uma média de 4%, fazendo com que o Estado arrecade pouco mais de 50%, e não 82%.
“Como as auditorias não foram levadas em conta, voltou a tributação 50-50, estabelecida na Lei de Hidrocarbonetos 3058 [de 2005]. Sustento que esse 50-50 diminuiu um pouco em prejuízo do Estado, já que a YPFB deve subvencionar com 10 milhões de dólares as companhias que trabalham em campos marginais”, lamenta Andrés Soliz Rada, ex-ministro dos Hidrocarbonetos do governo Evo. (IO)

O golpe da Enron na Bolívia

Transnacional estadunidense embolsou 130 milhões de dólares sem gastar um centavo

de La Paz (Bolívia)

O decreto presidencial de 2 de junho deste ano, que estabeleceu o controle do Estado, por meio da compra de ações, de 97% da transnacional Transredes, ganha importância se for levado em conta um fato em especial: a associação desta com a empresa Enron, envolvida no maior escândalo financeiro da história dos EUA.
Em julho de 1994, no contexto de um memorando de entendimento entre Brasil e Bolívia para a construção do gasoduto entre os dois países, ficou acordado que a Enron deveria conseguir financiamento para as obras.
No entanto, o investimento não vem e a Petrobras decide bancar o empreendimento, recebendo da Bolívia, como pagamento, gás natural. No momento da assinatura do contrato, a Enron aparece no lugar da YPFB, a estatal boliviana de hidrocarbonetos, tornando-se proprietária do gasoduto.

Conspiração

Em seguida, a empresa estadunidense, juntamente com a Shell, forma a Transredes, empresa de transporte de gás desmembrada da YPFB no processo de privatização. De acordo com o governo boliviano, a Enron embolsou 130 milhões de dólares sem investir um centavo.
Além disso, segundo Andrés Soliz Rada, ex-ministro dos Hidrocarbonetos, a Transredes “é uma das empresas que mais trabalharam com as correntes separatistas no oriente do país. Isso está demonstrado quando a empresa entregou o gasoduto de Villamontes a Tarija ao governador de Santa Cruz, ignorando o governo”.
Rada conta que quando era ministro, a transnacional apresentava gastos mal explicados, que coincidiam com as datas das mobilizações pró-autonomia em Santa Cruz de La Sierra. (IO)

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A nacionalização do gás, dois anos depois

Já que as coisas por aqui se acalmaram um pouco (até segunda ordem), volto a publicar as matérias que fiz para a versão impressa do Brasil de Fato. Desta vez, sobre a nacionalização do gás.

Como está bastante longa, publicarei em duas partes. A primeira, com os pontos positivos, a segunda, com os negativos:

Brasil de Fato, edição 281 (de 17 a 23 de julho de 2008)

Um novo fôlego na nacionalização do gás

O governo de Evo Morales, que vem sendo criticado por alguns setores da esquerda boliviana por não consolidar o processo iniciado em maio de 2006, acelera as medidas rumo ao controle de toda a cadeia da produção de hidrocarbonetos

Igor Ojeda
correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia)

Evo Morales prometeu: o gás, além de nacionalizado, seria industrializado. Pois, passados dois anos do decreto de 1º de maio de 2006, quando se estabeleceu que os recursos hidrocarboríferos (petróleo e gás) seriam de propriedade do Estado boliviano, sobravam críticas ao presidente indígena.
Alguns analistas da esquerda diziam que a nacionalização não estava consolidada, pois o gás ainda não era processado industrialmente e as transnacionais ainda comandavam a cadeia de produção de hidrocarbonetos.
Além disso, as empresas estrangeiras continuavam a operar nos poços. O que havia acontecido teria sido tão somente um pequeno aumento de impostos a elas (ver matéria), se comparados com os determinados pela Lei 3058, de 2005, formulada no governo de Carlos Mesa (2003-2005).
Pois, em 2008, o governo, como que concordando com os críticos, decidiu acelerar as ações de consolidação da nacionalização. O último capítulo foi executado no dia 14, quando Evo Morales inaugurou, no departamento de Santa Cruz, a construção de uma planta separadora de líquidos do gás natural, que terá a capacidade de produzir, diariamente, 260 toneladas de Gás Liquefeito de Petróleo (GLP, ou gás de cozinha) e 450 barris de gasolina.

Perda econômica

Tal processo industrial é essencial para a economia do país. Na exportação de gás natural ao Brasil e à Argentina, estes recebem, juntamente com o produto bruto, componentes que possuem preços elevados no mercado, como o GLP, a gasolina e outros energéticos. E não pagavam por isso – recentemente, o Brasil iniciou uma pequena compensação financeira. Com a separação, a Bolívia poderá, além de abastecer o mercado interno com tais produtos, exportar com base no valor de mercado.
Mas o novo fôlego dado pelo governo boliviano à nacionalização dos hidrocarbonetos teve início em 1º de maio deste ano. Através de decretos supremos, o Estado passou a controlar, através da compra de ações, 50% mais um das transnacionais Andina e Chaco, além de 100% da Companhia Logística de Hidrocarbonetos Boliviana (CLHB).
A primeira tinha 50% de participação nos dois maiores campos de gás do país, San Alberto e San Antonio (em ambos, a Petrobras participa em 35%). A segunda explorava poços de petróleo cru condensado e gás natural. Já a última, de capitais alemães e peruanos, era responsável pelo armazenamento e transporte de líquidos (diesel, querosene etc).
Em 2 de junho, o governo boliviano emitiu outro decreto, estabelecendo o controle, através da compra, de 97% da Transredes, holding de transporte formada pelas empresas Shell e Ashmore e que contava com a participação da Enron (veja matéria).

Refundação

Além dessas medidas, o Executivo preparou a “refundação” da estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), através da sua recomposição como uma empresa corporativa, ou seja, com subsidiárias em todos os setores da cadeia de produção de hidrocarbonetos (veja matéria). A retomada do controle sobre as empresas Andina, Chaco, Transredes e CLHB insere-se nesse contexto.
Para o ex-ministro dos Hidrocarbonetos do governo Evo, Andrés Soliz Rada, o setor conciliador dentro do Executivo que impedia medidas mais radicais retrocedeu, uma vez que os “avanços de 2008 são muito importantes”. “Os decretos de 1º de maio deste ano são positivos, já que é preferível que se façam as coisas tarde do que nunca”, diz, lembrando, no entanto, que já houve tentativas frustradas de se reorganizar a YPFB.
Segundo o vice-ministro boliviano de Desenvolvimento Energético (órgão subordinado ao Ministério dos Hidrocarbonetos), Jorge Ortiz, o processo de nacionalização dos hidrocarbonetos se sustenta em quatro pilares: a propriedade estatal dos recursos, o controle e direção da cadeia a cargo do Estado, a recuperação das empresas privatizadas e a industrialização do gás.

Propriedade estatal

De acordo com ele, o primeiro passou foi dado em 1º de maio de 2006, com o decreto de nacionalização, e em outubro do mesmo ano, com a assinatura dos novos contratos. “Assinamos 44 contratos com 16 empresas, para investigação e exploração de mais de 60 campos de hidrocarbonetos, que hoje produzem mais de 40 mil barris de petróleo e mais de 40 milhões de metros cúbicos de gás natural por dia. São contratos de serviços, onde as empresas assumem os riscos, e o Estado devolve o investimento e um lucro. Aqui, a propriedade dos recursos é do Estado, através da YPFB, a única que pode comercializar no mercado interno e externo”, explica.
Além disso, segundo Ortiz, o governo estabeleceu 33 áreas de investigação e exploração reservadas à estatal. Ou seja, somente esta pode operar os campos, sozinha ou em sociedade. “Esperamos conseguir os primeiros resultados este ano com o início de perfuração no sul e no norte do país com a YPFB Petro Andina SA Mista, nova empresa onde a YPFB tem 60% e a PDVSA (estatal venezuelana), 40%”, diz.
No segundo pilar, Ortiz destaca o conceito da YPFB corporativa. Agora, a matriz conta com seis subsidiárias, cinco delas recuperadas do processo de privatização (o terceiro pilar). Além das quatro empresas retomadas entre maio e junho deste ano (nas áreas de exploração, transporte e logística), há as duas refinarias compradas da Petrobras em julho de 2007, que formaram a YPFB Refinação. A sexta subsidiária é a YPFB Petro Andina SA Mista.

Atrasado

Já o quarto pilar, a industrialização dos recursos, é considerado o menos avançado pelo vice-ministro de Desenvolvimento Energético, “porque tivemos que começar do zero”. No entanto, ele destaca algumas ações, como a criação da Empresa Boliviana de Industrialização de Hidrocarbonetos – hoje ainda parte da YPFB, mas que no futuro será independente –, a construção da planta de separação de gás em Santa Cruz, a previsão de instalação da “maior planta de separação da América do Sul” no departamento de Tarija e de uma fábrica de plásticos em parceria com a brasileira Braskem.
Mesmo avaliando como bastante positivo o processo de nacionalização iniciado em 2006, Ortiz acredita que ainda falta muita coisa, como o estabelecimento de mecanismos mais efetivos de fiscalização dos contratos com as transnacionais; a exigência de mais investimentos destas; a implementação mais rápida da estratégia das 33 áreas reservadas à YPFB, para que mais campos sejam descobertos; a consolidação da YPFB corporativa com pessoal especializado e com visão política; a melhora da eficiência das empresas recuperadas; e a aceleração da execução de projetos mais específicos, como a instalação de gás domiciliar em todos os lares bolivianos.
“Essas tarefas pendentes fazem parte de uma estratégia nacional proposta pelo Ministério dos Hidrocarbonetos e que será o ponto de referência para se levar adiante as atividades em toda a cadeia de produção”, conclui Ortiz.

O controle estatal sobre a cadeia de produção

de La Paz (Bolívia)

Por meio da YPFB, país pretende dobrar a produção de gás e petróleo até 2013

O governo boliviano promete consolidar, até o fim de 2008, a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) em sua composição corporativa. Ou seja, a atuação em todos os setores da cadeia de hidrocarbonetos, através da matriz e suas subsidiárias.
“Até a nacionalização, a YPFB era uma empresa residual. Não havia possibilidade de empreender por conta própria, só estava em algumas tarefas da comercialização. Depois, em maio de 2008, possibilitou-se a participação em toda a cadeia. Isso vai reposicionar totalmente os termos da produção e os de geração de recursos”, prevê Misael Gemio, gerente de planejamento da estatal.
Para ele, o que resta à empresa é aprofundar tal controle da cadeia de hidrocarbonetos. Para atingir esse objetivo, a YPFB está elaborando um plano estratégico de ação até 2015, que visa mais que duplicar a capacidade de produção.
Ou seja, a Bolívia saltaria de 42 milhões de metros cúbicos de gás natural e 47 mil barris de petróleo produzido diariamente em 2007 para 100 milhões de m³ e 100 mil barris já em 2013. Para tal, estão previstos investimentos de 13,4 bilhões de dólares entre 2008 e 2015, o quádruplo do investido no período 2000-2007 (3,4 bilhões). Só na industrialização dos recursos, serão desembolsados 4 bilhões de dólares.

Dinheiro em caixa

E, devido aos efeitos da nacionalização de maio de 2006, a YPFB poderá aportar algo desse total de investimentos. Sem recursos após o processo de privatizações, a estatal contaria, hoje, com entre 400 e 500 milhões de dólares, segundo seu gerente de planejamento.
Isso porque, com o decreto de dois anos atrás, os dois maiores campos de gás passaram a destinar 32% da produção à empresa. Além disso, o Brasil pagou 100 milhões de dólares em 2007 e pagará outros 100 milhões em 2008 de compensação pelos componentes enviados juntos com o gás natural (ver matéria)
A intenção, segundo Gemio, é resolver imediatamente o problema de abastecimento dos mercados interno e externo, mas também projetar a questão da energia até 2020. “Concebemos a YPFB como um dos atores mais importante da América Latina em termos de energia. Com todas essas medidas, ela está adquirindo valor e também tem a possibilidade de gerar valor”, explica.
Gemio cita como essencial dentro dessa estratégia a recuperação de empresas privatizadas (veja matéria). Segundo ele, estas irão representar, nos próximos cinco anos mais da metade do valor total dos investimentos no setor. A meta é fazer da YPFB, em 2015, a maior empresa do Cone Sul no segmento de gás.

Modelo Petrobras

No entanto, para Carlos Arze Vargas, diretor do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Laboral e Agrário (CEDLA), a estatal boliviana não renascerá totalmente, nos moldes anteriores às privatizações. Para ele, a empresa ainda não possui capacidade técnica nem recursos humanos adequados, sendo, basicamente, um “escritório de administração”.
Segundo Vargas, sua reorganização acentuará o formato híbrido da YPFB, especialmente com a criação de empresas mistas. “A idéia é refundá-la sob o modelo Petrobras. Estatal, mas com lógicas capitalistas e transnacionais”, analisa.
Na opinião dele, no caso das recuperações das transnacionais Andina e Chaco, por exemplo, a YPFB provavelmente aparecerá como controladora acionária, mas a empresa estrangeira continuará na direção. “Porque, mesmo no governo, está muito incrustada a idéia de que o estatal não é suficiente”.
O Estado estaria utilizando a propriedade legal dos recursos para negociar os novos projetos em melhores condições. “Não muda radicalmente a orientação, e sim se adéqua ao que se tem”, critica. (IO)

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Futebol nas alturas, enfim

Aos 46 do segundo tempo da minha “temporada” nos Andes, finalmente pude testar como é o futebol jogado a mais de 3 mil metros de altitude.

Foi a um pouquinho menos que 3.600, já que a pelada foi disputada na zona sul da cidade, que é mais baixa. Era uma quadra de salão numa bonita praça do bairro de Achumani, de classe média alta, cercada por morros secos e escarpados.

A altitude não atrapalhou em nada, mesmo porque, a essa altura do campeonato (sacaram o duplo trocadilho?), já estou mais do que adaptado. Mas a falta de preparo físico depois de um ano sem fazer nenhum tipo de esporte (fora as caminhadas pelas ladeiras de La Paz) influenciou e muito.

Enquanto eu e o Gonzalo, um amigo boliviano, esperávamos o resto chegar (era domingo de manhã, imaginem a ressaca dos jogadores), decidimos nos aquecer numa mini partida de basquete contra dois desconhecidos, mas que eram donos da bola.

25 a 23 para eles, o que não ficou nada mal para quem não jogava esse esporte há uns dois ou três anos (tanto eu como Gonzalo). Mas já senti um cansaço insuportável. Cansaço que se repetiu no futebol, momentos depois. Dez minutos de partida e eu já estava com a língua para fora e agachado, com as mãos no joelho.

Resisti, ajudado pelos períodos no gol e fora da quadra (havia três times), mas meu futebol ficou mesmo no mais ou menos: um gol bonito, outro fácil, dois inacreditavelmente perdidos, um furo no tênis novo e dores em todo o corpo durante o resto do domingo e a segunda-feira inteira.

Mas foi perfeito para matar a saudade.

E por falar em jornalismo pasteurizado...

Vejam, aqui, um retumbante exemplo de uma das críticas que fiz ao jornalismo atual no post anterior. A mesma foto, a de um profissional do mercado financeiro desolado pela quebra da Bolsa, na capa de 45 jornais diferentes.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O jornalismo... cadê?

Se houve algo que fiz questão de fazer durante os últimos acontecimentos por aqui, foi acompanhar a cobertura da grande imprensa. Não preciso dizer que não me surpreendi.

A mídia, seja boliviana, seja brasileira, continua fazendo seu papel sujo. Sei que não tem jeito, que eles não vão mudar. Afinal, defendem seus interesses. Tudo bem, mas não podemos deixar barato.

(Só para esclarecer: não tenho nada contra o fato dos meios defenderem seus interesses ou os de determinados setores da sociedade. Agora, mentir, manipular e distorcer para atingir tal objetivo é que não dá para aceitar)

Pois bem. Hoje, 22 de setembro, dez dias depois do já comprovado massacre de camponeses em Pando, algumas matérias ainda falam em “confronto entre opositores e apoiadores de Evo”.

O boliviano La Razón, do grupo El País, da Espanha, chegou a falar, no dia 19, que havia 15 mortos, "de ambos os lados". Tecnicamente, não está errado, já que tem um morto da oposição. Mas é absurda e evidente a manipulação e a má-fé.

Dando uma olhada nas matérias do Jornal Nacional no site da Globo, a mesma coisa. A impressão é que o governo Evo está implantando uma ditadura, principalmente depois da declaração de estado de sítio em Pando. Não falam, no entanto, que a medida parou com o massacre de camponeses.

Numa matéria do dia 11, o repórter global, que estava em Santa Cruz, chega a ter a cara de pau de falar que a Bolívia estava “dividida”. Claro, só se esqueceu de dizer que a “divisão” é de dois terços para um lado, um terço para o outro.

Em outra matéria, o repórter diz que a oposição “ocupou” as instituições públicas. Já entendi: o MST invade, a oligarquia ocupa.

E, para dar um ar de legitimidade aos protestos violentos da oposição, o Jornal Nacional, assim como os outros grandes meios, chamam os manifestantes de “autonomistas”. Para explicar o que está acontecendo para seus telespectadores (segundo o William Bonner, meros Homer Simpsons), os repórteres da Globo dizem que os oposicionistas só “querem mais autonomia”. Como se tudo que eles desejassem, coitados, fosse apenas um pouco mais de liberdade para administrar suas próprias regiões.

Uma matéria de um veículo de comunicação minimamente sério contextualizaria a realidade boliviana e as demandas “autonomistas”. Falaria que, na meia-lua (Santa Cruz, Beni, Tarija e Pando), a concentração de terras é pornográfica (tudo bem, vai, não precisa usar exatamente esse termo).

Diria que existem centenas de milhares de camponeses pobres e/ou sem terra. Contaria que nas fazendas da região, o trabalho escravo de indígenas é assombrosamente comum. Explicaria, finalmente, que um dos principais pontos – senão o principal – das reivindicações dos “autonomistas” é, vejam que curioso, o controle sobre a distribuição de terras.

Além disso, chamar um lado de “autonomista” automaticamente qualifica o outro lado como “não-autonomista”. E isso não é verdade. A autonomia é uma bandeira histórica da esquerda e dos movimentos sociais do país, pois o Estado boliviano é, de fato, exageradamente centralista.

Mas quem mantinha essa realidade era justamente a oligarquia que estava no poder. Depois que o Evo ganhou as eleições, a direita se reposicionou nas regiões e roubou a bandeira autonômica, mas de uma forma totalmente deturpada. E é contra essa deturpação que os movimentos pró-Evo lutam.

Mas, continuando a listagem das manipulações/deturpações/equívocos da imprensa, uma curiosidade um tanto, digamos, patética. Vejam abaixo os primeiros seis parágrafos de duas matérias do dia 19. A primeira do IG, a segunda da Folha Online:

Morales pede que Brasil expulse bolivianos envolvidos em confrontos

19/09 - 15:28 - Redação com agências internacionais

LA PAZ - O governo da Bolívia, liderado pelo presidente Evo Morales, pediu nesta sexta-feira ao Brasil que expulse os cidadãos bolivianos envolvidos nos confrontos ocorridos em Pando e que se refugiaram nas cidades fronteiriças do Acre.

Depois dos violentos distúrbios que, segundo dados oficiais, deixaram pelo menos 17 mortos e mais de 100 desaparecidos, dezenas de pessoas se refugiaram nos municípios de Brasiléia e Epitaciolândia, no Acre.

O ministro de Governo boliviano, Alfredo Rada, disse à rádio "Red Erbol" que entrou em contato com as autoridades brasileiras para pedir a expulsão "de gente considerada criminosa e que participou de forma direta no massacre em 11 de setembro".

"Entramos em contato com autoridades brasileiras para indicar que (os bolivianos em questão) são delinqüentes sobre os quais há acusações muito graves e, portanto, não corresponderia dar-lhes asilo. Em todo caso, uma vez identificados, é preciso proceder a expulsão do Brasil à Bolívia", disse o ministro.

Rada informou que o governo está trabalhando para conseguir a expulsão dos refugiados, e disse ter informação de que a presidente do Comitê Cívico de Pando, Ana Melena de Suzuki, está refugiada no Brasil, apesar de não estar confirmado que tenha pedido asilo político.

Segundo a "Red Erbol", que cita organizações sociais de Pando, o governo brasileiro negou nos últimos dias um pedido de asilo político do governador de Pando, Leopoldo Fernández.

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19/09/2008 - 16h30

Bolívia pede que Brasil expulse bolivianos envolvidos em confrontos

da Folha Online

O governo da Bolívia pediu hoje ao Brasil que expulse os cidadãos bolivianos envolvidos nos confrontos ocorridos no departamento (Estado) de Pando e que se refugiaram nas cidades fronteiriças do Acre.

Depois dos violentos distúrbios que, segundo dados oficiais, deixaram pelo menos 17 mortos e mais de cem desaparecidos, centenas de bolivianos se refugiaram nos municípios de Brasiléia e Epitaciolândia, no Acre.

O ministro de Governo (Interior) boliviano, Alfredo Rada, disse à rádio Red Erbol que entrou em contato com as autoridades brasileiras para pedir a expulsão "de gente considerada criminosa e que participou de forma direta no massacre em 11 de setembro".

"Entramos em contato com autoridades brasileiras para indicar que (os bolivianos em questão) são delinqüentes sobre os quais há acusações muito graves e, portanto, não corresponderia dar-lhes asilo. Em todo caso, uma vez identificados, é preciso proceder a expulsão do Brasil à Bolívia", disse o ministro.

Rada afirmou que o governo está trabalhando para conseguir a expulsão dos refugiados, e disse ter informação de que a presidente do Comitê Cívico de Pando, Ana Melena de Suzuki, está refugiada no Brasil, apesar de não estar confirmado que tenha pedido asilo político.

Segundo a Red Erbol, que cita organizações sociais de Pando, o governo brasileiro negou nos últimos dias um pedido de asilo político do governador de Pando, Leopoldo Fernández.

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Incrível, não? Os dois textos são 99% idênticos. Isso se explica pela realidade atual do jornalismo não só brasileiro, mas mundial. Quase todas as informações do mundo todo são apuradas por meia dúzia de agências internacionais, e o restante dos meios as reproduzem indiscriminadamente, o que faz com que palavras como “confrontos” e “distúrbios” para descrever o massacre de camponeses em Pando sejam copiadas pela Folha Online e o IG, sem nenhuma contestação.

Hoje, não sobra espaço para a diversidade de pontos de vista que existe no planeta, a não ser pelos blogs e sites de imprensa alternativa que, espero, continuem a crescer.

Mas o caso em questão chega a ser pior. Se observarmos bem os textos, fica difícil de acreditar que os dois meios, separadamente, traduziram a mesma matéria de alguma agência. Pois as palavras são exatamente iguais, assim como a estrutura das frases. Quando duas pessoas traduzem o mesmo texto, sempre existirão algumas diferenças nos resultados finais.

Ou seja, ou IG e Folha Online pegaram a matéria de outro meio brasileiro que tinha traduzido de agência internacional, ou (parece piada) um deles copiou do outro. Seja qual for o caso, o jornalismo sai perdendo.

Na matéria do IG, além disso, havia um “erro” primário. Era um mapa da Bolívia em duas cores. Uma delas mostrava as regiões em que os apoiadores de Evo eram maioria, enquanto a outra indicava onde a oposição era maioria.

Segundo o IG, quatro departamentos eram pró-Evo, e cinco contra. Uma grande mentira. De acordo com o referendo revogatório, de 10 de agosto, o presidente boliviano ganhou em seis regiões, duas das quais governadas pela oposição. Perdeu apenas em três, sendo que em uma delas, por muito pouco.

E então, o que aconteceu com o mapa do IG? Seus editores o “chuparam”, de novo, de alguma agência internacional, que veiculava uma informação completamente equivocada? Interpretaram, erroneamente, o fato de a oposição governar em cinco departamentos como um rechaço ao Evo entre a população destas regiões? Ou fizeram essa confusão propositadamente?

De novo, aqui, seja qual for o caso, o jornalismo sai perdendo.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Ato hoje no Rio de Janeiro

Nesta sexta-feira (19) movimentos populares, sindicais, pastorais e partidos de esquerda promovem um ato em defesa da democracia na Bolívia e denunciam os ataques da oligarquia boliviana, que tenta desestabilizar o governo e derrubar o presidente Evo Morales.

O ato será às 16 horas, no Consulado da Bolívia. Será entregue uma carta à Cônsul, assinada pelas entidades, condenando "firmemente os setores oposicionistas bolivianos que vêm se utilizando da violência contra comunidades indígenas e camponesas, destruindo bens estatais, sabotando a economia nacional e as riquezas naturais, fechando fronteiras, inclusive com o nosso país, e fomentando uma guerra civil".

"Nós, povos latino-americanos e organizações sociais, temos o dever de fazer uma grande mobilização em solidariedade ao Evo Morales para que ele consiga intensificar as reformas em favor do povo boliviano, especialmente o povo índio e mestiço, que foram os grandes prejudicados nesses 500 anos. Agora se trata de fortalecer do governo, que no referendo teve mais de 60%, ou seja, o povo está com ele e quer mudanças", afirma o integrante da coordenação nacional do MST e da Via Campesina, Egídio Brunetto.

As entidades que convocam o ato são MST, Casa da América Latina, Intersindical, CUT, Morena - Círculos Bolivárianos, Central de Movimentos Populares, PCB, PT, PSOL, MTL, Jubileu Sul, PACS, entre outras.

O ato será às 16 horas, no Consulado da Bolívia, que fica na Avenida Rui Barbosa, 664, Flamengo.

Segue abaixo a Carta de solidariedade. __________________________________________________________________

SOLIDARIEDADE AO POVO E AO GOVERNO BOLIVIANO

As organizações políticas e sociais que firmam o presente manifesto dirigem-se aos povos irmãos e instituições da América Latina em geral e do Brasil e da Bolívia, em particular, no sentido de hipotecar solidariedade ao Presidente Evo Morales e ao processo de mudanças democráticas e culturais em curso na Bolívia, diante da radicalização dos conflitos políticos e sociais no país, provocada por setores oposicionistas que não respeitam a vontade majoritária do povo boliviano.

É preciso lembrar que o Presidente boliviano foi eleito legítima e democraticamente, assim como a Assembléia Nacional Constituinte, que já cumpriu sua tarefa de elaborar uma proposta de nova constituição, também foi criada e eleita pela vontade soberana do voto popular. Ressalte-se que o governo boliviano se conduz estritamente nos marcos legais e democráticos e procura fazer com que os recursos naturais do país estejam a serviço do conjunto da população.

O mandato do Presidente foi inclusive confirmado recentemente por mais de dois terços dos bolivianos, numa consulta popular, por ele mesmo convocada, que vinculava textualmente a continuidade do seu mandato à aprovação do processo de mudanças que lidera.

Diferentemente dos chamados "referendos autonomistas" realizados no primeiro semestre deste ano em alguns departamentos, esta consulta popular recente, que teve a maior participação popular da história boliviana, foi legitimada pela participação de todas as forças políticas (inclusive as que hoje recorrem à violência), de observadores internacionais da OEA e de dezenas de países, tendo sido organizada e processada pela Corte judicial eleitoral do país.

Assim sendo:

1- condenamos firmemente os setores oposicionistas bolivianos que vêm se utilizando da violência contra comunidades indígenas e camponesas, destruindo bens estatais, sabotando a economia nacional e as riquezas naturais, fechando fronteiras, inclusive com o nosso país, e fomentando uma guerra civil.

2- repudiamos com veemência as manifestações de racismo e todas as atitudes que atentem contra as liberdades democráticas, a integridade territorial, a soberania nacional e o caráter plurinacional do Estado boliviano.

3- conclamamos os povos, autoridades e instituições brasileiras e dos demais países latino-americanos a prestarem solidariedade ao povo boliviano, condenarem qualquer intento golpista ou separatista e a respaldarem o governo legitimamente constituído.

Brasil, 19 de setembro de 2008

Associação Cultural José Martí, Assembléia Popular Nacional, Adufrj - Ssind, Casa da América Latina, Central dos Movimentos Populares - CMP, Centro Cultural Antonio Carlos de Carvalho - CECAC, Comitê de Solidariedade à Luta do Povo Palestino do RJ, Corrente Comunista Luiz Carlos Prestes, Conam, Campanha Tirem as Mãos da Venezuela, CUT Nacional, Esquerda Marxista, Fam Rio, Forum de Meio Ambiente do Trabalhador - Sepetiba, RJ, Federação Democrática Internacional de Mulheres - FDIM, Intersindical, Jubileu Sul Brasil, Luta FENAJ, Morena - Círculos Bolivarianos, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - MST, Mandato Deputado Marcelo Freixo- PSOL, Mandato Vereador Renatinho - PSOL/Niterói, Movimento Direito Para Quem? - DPQ, Movimento das Fábricas Ocupadas, Movimento Terra e Liberdade - MTL, Movimento Resistência Camponesa, Piauí, Nossa América, PACS, Partido Comunista Brasileiro - PCB, Partido dos Trabalhadores - PT, Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, Refundação Comunista, Rede Alerta Contra o Deserto Verde - Rio de Janeiro, União da Juventude Comunista

E o acordo, sai?

Não quero parecer pessimista, mas acho que as chances do diálogo entre governo e oposição fracassar não são pequenas. Simplesmente por causa de um ponto no qual será bem difícil os dois lados cederem: a terra.

Nas conversas, dois eixos centrais serão discutidos. A distribuição do imposto sobre o gás e a compatibilização da nova Constituição com os projetos autonômicos da meia-lua (Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando).

O primeiro está mais perto de um acordo. Os governadores querem controlar o gás dos seus departamentos, mas acho que podem se contentar com uma oferta de mais dinheiro por parte de Evo. O governo até já propôs a criação de um fundo de desenvolvimento para as regiões com o dinheiro do gás (se bem que não é bem o desenvolvimento regional que os opositores querem).

Já no segundo ponto, a coisa complica. A nova Constituição prevê a autonomia departamental. O que falta, na tal da compatibilização com os estatutos autonômicos, é discutir as atribuições. Ou seja, quais esferas serão de competência dos governos departamentais.

Aí que está. Se os governadores podem ceder na questão do gás, em troca de mais dinheiro, na questão da terra são outros quinhentos. Por um motivo muito simples: na meia-lua, o controle sobre a terra é o principal fator de manutenção do poder das elites locais.

Seus estatutos autonômicos diziam que a titulação, regularização, distribuição etc das terras seriam faculdade dos governos regionais. Ora, obviamente a intenção é manter tudo como está, senão aprofundar ainda mais a concentração fundiária.

Por isso, no eixo “autonomia” do diálogo, a oposição vai querer o controle sobre as terras. O governo não vai aceitar. E aí, a coisa vai travar. E se isso acontecer, voltam as medidas de pressão. E os movimentos sociais que ainda cercam Santa Cruz de la Sierra vão marchar até o centro da cidade. E aí, volta a violência.

Uma saída para esse impasse seria o governo propor o seguinte: a competência sobre as terras é nossa, mas respeitaremos o latifúndio, seja do tamanho que for, que cumpra sua função econômica e social. Mas e aí, será que os movimentos camponeses pró-Evo vão aceitar?

E como garantir que uma propriedade irá cumprir com os requisitos exigidos, se temos o exemplo de Camiri, em Santa Cruz, quando criadores de gado simplesmente impediram, à força, que funcionários do governo fizessem a inspeção nas fazendas locais? As terras da oligarquia da meia-lua, obviamente, não cumprem a função econômica e social. Os escravos guaranis em Santa Cruz que o digam.

Por isso, temo pelo fracasso do diálogo. Espero estar errado.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Imagens do massacre

Assista, aqui, cenas do massacre em Pando, no dia 11. Nas imagens, vê-se os camponeses fugindo, tentando atravessar um rio a nado, enquanto ouve-se sons de tiros.

Posso estar enganado, mas lá pelo minuto 3:06, uma pessoa parece falar: "Vamos quitarles del agua. Hay hartos indios... (uma palavra que não entendi)... ahí". Ou seja, "Vamos tirá-los da água. Há vários índios... (a palavra imcompreensível)... lá".

Ato pela Bolívia amanhã

Não ao golpe separatista na Bolívia!

Abaixo a direita fascista ianque na América Latina!

Na última semana, uma escalada de violência tomou o leste da Bolívia. Como não puderam eleger um representante direto das classes dominantes para o governo central, grupos civis da direita fascista tentam impor um golpe separatista ao país, com vistas à derrubada do governo de Evo Morales e retomar o controle absoluto sobre o país vizinho e, em especial, sobre o gás e os demais hidrocarbonetos.

Tais grupos, liderados pelos auto-intitulados "comitês cívicos" e pelos governadores oposicionistas de cinco departamentos (estados), em coordenação com a Embaixada Norte Americana, implementaram um verdadeiro estado de terror em muitas cidades do oriente boliviano.

O caráter racista destas manifestações - que chamam de “invasor” o indígena do altiplano que migra para as terras baixas - é evidente não somente no discurso. Muitas das ações violentas desta semana se deram justamente nos locais de trabalho e de moradia desta população migrante - como no mercado camponês em Tarija e no bairro popular Plan 3000, em Santa Cruz. Porém, a gota d’água ocorreu na última quinta-feira (11/09), quando 30 trabalhadores camponeses (dados divulgados pelo governo Boliviano até 14/09/2008) foram massacrados por funcionários e grupos paramilitares ligados ao governo oposicionista do departamento de Pando.

Frente a esta situação, chamamos a todos para um ato de repúdio veemente à iniciativa de golpe separatista na Bolívia. Os EUA nunca hesitaram em utilizar a força para impor estados de terror com o objetivo de impedir o avanço das lutas e reivindicações camponesas, indígenas e operárias. Mas a ditadura e o fascismo não voltarão! Abaixo a direita fascista ianque na América Latina!

Chamamos a todos e todas para se juntarem a nós .

Em frente ao Consulado Boliviano na Av. Paulista, no. 1439 .

Quinta-feira, 18 de setembro de 2008, às 17h

MST - MTST - INTERSINDICAL - CONLUTAS

PASTORAL OPERARIA METROPOLITANA DE SÃO PAULO – CONSULTA POPULAR

PSOL - PSTU – PCB

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Três 11/09 e os EUA em todos eles (ou: a lição não aprendida)

Por que nos odeiam tanto?, perguntavam os estadunidenses “comuns” logo após os atentados às Torres Gêmeas e ao Pentágono, há sete anos. Não podiam entender como havia pessoas no mundo capazes de fazer o que fizeram com eles.

Claro que qualquer cidadão minimamente sensato igualmente se chocou com as imagens da época. Afinal, três mil seres humanos foram assassinados.

Mas, ao mesmo tempo, esse qualquer cidadão minimamente sensato não pôde deixar de pensar que os EUA estavam colhendo o que plantaram. Anos e anos de intervenções, coações e total falta de respeito à soberania dos outros países do mundo deram no que deu.

Em 11 de setembro de 2001, poucos se lembraram de um outro 11 de setembro. O de 1973, quando o Pinochet derrubou Salvador Allende e instalou uma ditadura de 17 anos, que muitos qualificam como a mais cruel da América do Sul. Fala-se em 30 mil mortos na repressão que se seguiu.

Pois o 11 de setembro de 1973 foi co-planejado e fortemente apoiado justamente pelos EUA. Não é nenhuma teoria da conspiração. Documentos da CIA que vão sendo abertos pouco a pouco dão os detalhes da operação conjunta.

Exatos 35 anos depois, em 11 de setembro de 2008, dezenas de camponeses são massacrados em Pando, na Bolívia. Os números são incertos, pois ainda muitos estão desaparecidos.

Fortes evidências dão conta de que os assassinos foram armados e recebiam ordens do governador opositor, Leopoldo Fernández. Mesmo que tal versão seja desmentida, o fato é: funcionários de seu governo interceptaram, a balas, uma marcha de camponeses pró-Evo.

Mas o que tem os EUA a ver com isso?, alguém pode perguntar. Oras, de novo, não é nenhuma teoria da conspiração. Desde que Evo tomou posse, em 2006, a embaixada estadunidense, em parceria com a USAID, vem trabalhando para desestabilizar o governo e fortalecer a oposição que, hoje, é mais regional que partidária.

Poucos dias antes das ações da meia-lua se radicalizarem, o embaixador Philip Goldberg (muito bem expulso por Evo na semana passada) teve uma reunião secreta com o governador de Santa Cruz, descoberta por uma rede de TV local.

Mas esse fato mais recente apenas se soma a muitos acontecimentos anteriores, no mínimo, estranhos. Além de várias reuniões com a oposição e o financiamento de viagens dos governadores aos EUA, pode-se citar, por exemplo, o papel da USAID no país.

Sob o pretexto de financiar o desenvolvimento, a entidade fortalecia ONGs e instituições opositoras, além de tentar promover a divisão de movimentos sociais, como me contaram os cocaleros do Chapare.

Outro fato curiosíssimo é o local de trabalho anterior de Goldberg: o Kosovo, bem na época de sua separação da ex-Iugoslávia.

E o que os EUA mais querem para Bolívia, frente à defesa dos recursos naturais promovida por Evo, é sua divisão. Para isso, encontraram os aliados perfeitos: as oligarquias de Pando, Santa Cruz, Tarija e Beni, representadas por seus governadores e comitês cívicos.

Portanto, um dos principais forjadores da crise que hoje vive a Bolívia, e que resultou, entre outras coisas, no massacre de camponeses em Pando, é exatamente os EUA.

Mesmo assim, depois que os estadunidenses “comuns” virem, na CNN, imagens de protestos em frente a sua embaixada em La Paz , cenas de bandeiras dos EUA sendo queimadas e palavras de ordem contra seu país-natal, certamente se perguntarão, mais uma vez: por que nos odeiam tanto?

Testemunhos do massacre

Leia e ouça, aqui, alguns relatos dos acontecimentos em Pando.

E a imprensa continua não chamando as coisas pelos seus verdadeiros nomes

Manchete da Folha Online no sábado à noite: "Dirigente regional acusa Morales de planejar massacre na Bolívia". Fala de declarações do governador de Pando, Leopoldo Fernández, sobre a morte de umas 30 pessoas em seu departamento (estado).

No "confronto" entre camponeses pró-Evo e funcionários do governo departamental, uns 95% dos mortos são camponeses (Dois são funcionários). Fernández diz que o governo planejou o enfrentamento para fazer com que a população de Pando se volte contra ele.

Enfim, desde que isso aconteceu, na quinta, é o governo e organizações de direitos humanos que vêm acusando o governador de armar seus funcionários e de contratar mercenários, inclusive brasileiros e peruanos. Nenhuma dessas acusações tinha sido manchete da Folha Online até o sábado. Ontem não entrei, mas na lista de notícias que vi hoje, nenhuma tinha um título tão forte contra Fernández quanto a acima contra o Evo. Queria acreditar que é por simples descuido.

Quanto às declarações em si, estando há 11 meses na Bolívia e conhecendo um pouco seus personagens, tenho 99,9% de certeza que é uma falácia gigantesca, obviamente pensada para tentar tirar a culpa de cima.

Ele fala algo simplesmente hilário, se não fosse trágico: que os simpatizantes de Evo estavam armados há dias (claro, pelo governo). Então, deixa eu ver se entendi bem. Em um "confronto" entre dois lados, um deles sofre a quase totalidade das baixas. E justamente esse lado que estava armado? Das duas, uma: ou esses camponeses são muito ruins de mira, ou não estavam armados. Alguém se arrisca a dar um palpite?

Há alguns fatos que até a grande mídia boliviana (nem preciso falar, ferrenha opositora a Evo) admite. Primeiro: os camponeses se dirigiam à Cobija, a capital de Pando, para protestar contra o governador, e foram interceptados pelos funcionários a uns 30 km antes de chegarem. Segundo, o que eu já disse acima: a imensa maioria dos mortos são camponeses (fora as dezenas de ainda desaparecidos).

Mesmo assim, a imprensa, seja boliviana, seja brasileira, continua chamando o ocorrido de "confronto" ou "enfrentamento". Eis a descrição da Folha Online em uma matéria de ontem:

"Em Pando, o governo boliviano declarou estado de sítio após os confrontos armados entre grupos de autonomistas opositores e afins ao governo de Evo Morales nos quais quase 30 pessoas morreram, segundo números do Executivo".

Confrontos armados??? Pra mim, isso só tem um nome: massacre.

Enfim, o que esperar de uma imprensa que só volta sua atenção para estes lados quando o fornecimento de gás ao Brasil é cortado ou quando há violência e mortes?

sábado, 13 de setembro de 2008

Os riscos de "iugoslavização"

Leia, aqui, matéria no site do Brasil de Fato sobre os acontecimentos na Bolívia.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Caos na Bolívia: para entender

Excelente artigo para entender o que está acontecendo hoje na Bolívia.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Uma goleada de 0 X 0

Enquanto a oligarquia oriental, meio desesperada, mas não por isso desorganizada, tenta de tudo pra desestabilizar o governo Evo, a vida segue normalmente em La Paz, no ocidente.

E, em meio à tranqüilidade, fui, com um amigo boliviano, outro brasileiro, ver Brasil X Bolívia num bar da cidade. Apesar dos bolivianos já estarem quase sem chance de se classificar à Copa, o interesse no jogo era grande.

Na área no andar de cima do local, onde tinha uma espécie de telão, todas as mesas já estavam cheias. Depois de alguns minutos de briga do cara do bar com a TV, que não queria funcionar direito, enfim conseguimos ver a partida.

O Brasil jogando mal, a Bolívia no papel dela, se segurando e atacando de vez em quando, e, conforme o tempo ia passando, a tensão e a vibração dos bolivianos das mesas vizinhas iam aumentando.

Quando terminou o primeiro tempo, ainda zero a zero, aplausos. Afinal, foram 45 minutos sem tomar gol do Brasil, e fora de casa. No começo do segundo tempo, a revolta com a expulsão de um zagueiro da Bolívia.

O tempo passando, e nada de gol. A tensão no bar aumenta. Cada chute pra fora dos brasileiros, cada desarme, cada defesa do goleiro boliviano são comemorados com gritos e aplausos.

20, 25, 30, 35 minutos do segundo tempo. Eles parecem não acreditar. Já não se conversa mais nas mesas. Os garçons param de atender e encostam num canto, ou sentam em alguma cadeira, e passam a olhar atentamente pra TV.

40 minutos. 41, 42, 43, 44... os gritos e aplausos em comemoração aos ataques frustrados do Brasil sobem de tom. 45 minutos... silêncio total. Daquele ensurdecedor que dizem ter tomado o Maracanã na final da Copa de 50.

A cabeçada do Júlio Baptista toca a rede do lado de fora. Todos no bar acharam que tinha sido gol. Depois de uns dois segundos, percebem que o goleiro tinha mandado a bola pra fora e respiram aliviado.

Mais alguns minutos, o juiz apita o final do jogo e a alegria explode no bar inteiro. Pulos, gritos, aplausos, abraços... Do lado de fora, ouve-se rojões e alguns carros buzinando.

A Bolívia permanecia em último lugar na classificação das eliminatórias para a Copa. Mas acabara de golear o Brasil por zero a zero.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Fim do neoliberalismo?

O Evo acabou de fazer um pequeno rearranjo ministerial. Embora tenha colocado alguns nomes próximos aos movimentos sociais, ele não tirou os ministros rechaçados pelas organizações. Ou seja, os movimentos têm força no governo, mas não mandam completamente.

Na cerimônia de posse do novo gabinete, Evo disse que a hora agora é de acabar a pobreza e mudar o modelo econômico. Em junho, o vice-presidente propôs justamente isso. Abaixo, a matéria sobre o assunto, com o projeto do governo e as críticas de analistas.

Brasil de Fato, edição 277 (de 19 a 25 de junho de 2008)

A busca pelo controle da economia

Governo de Evo Morales propõe aliança entre Estado e pequenos produtores para garantir a predominância sobre os rumos econômicos do país

Igor Ojeda
correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia)

Com o objetivo de desbancar o sistema bancário e a agroindústria do controle da economia, assim como neutralizar a atuação do capital privado nacional e internacional em áreas estratégicas, como petróleo, mineração e comunicações, o governo da Bolívia pretende, a partir deste ano, aprofundar a proposta de um “novo modelo econômico” para o país.
Apresentado pelo vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, no dia 8, o plano tem como meta garantir a predominância do Estado, em aliança com pequenos e médios produtores, na condução da economia.
Segundo o governo, o modelo estará baseado em cinco pilares: a expansão do controle estatal sobre a economia; a industrialização dos recursos naturais; a modernização e tecnificação dos pequenos e médios produtores; a prioridade ao mercado interno, com a exportação do excedente; e a distribuição da riqueza.
“É uma tentativa de pôr em prática o que já está no PND [Plano Nacional de Desenvolvimento, lançado em 2006] e legalizar o que propõe a nova Constituição. Ou seja, a existência de uma economia plural, que incluiria setores que antes não eram considerados adequadamente na economia nacional, como as pequenas e médias empresas. Segmentos que vem sobrevivendo ao grande desemprego que se produz no sistema neoliberal”, analisa o economista Abraham Pérez, do Instituto de Investigações Econômicas (IIE) da Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), de La Paz.
Segundo ele, a prioridade no modelo anterior era o exportador, principalmente da agroindústria do oriente do país. A produção era fortemente subvencionada e as divisas geradas eram destinadas ao pagamento da dívida externa.

Oligopólio

Tal realidade criou uma estrutura oligopólica, que gerou, recentemente, problemas para o país, com o desabastecimento alimentício do mercado interno e a alta de preços. “O novo modelo tenta, em termos teóricos, romper com isso. E recupera o pensamento de Adam Smith. Ele não propôs livre mercado, e sim a concorrência. Foi um forte lutador contra o monopólio. Para que o consumidor seja beneficiado, com preços não tão altos”.
Nesse sentido, as pequenas empresas teriam condições mais vantajosas de acesso ao mercado e teriam a “missão” de produzir alimentos para consumo interno. O governo boliviano quer, portanto, “comprometê-las a assumir o desenvolvimento do país”, resume Pérez.
De acordo com Álvaro García Linera, o Estado neoliberal controlava 17% do Produto Interno Bruto boliviano. Com a nacionalização dos hidrocarbonetos, em maio de 2006, esse percentual passou para 21,7%. A meta é alcançar a 35% em três anos. Com a aliança com os pequenos e médios produtores, pretende-se chegar, de imediato, a 56% e melhorar o poder de decisão estatal na economia.
Nos últimos meses, o governo boliviano tomou medidas nessa direção, como as compras das ações de empresas do setor de hidrocarbonetos (na área de exploração, logística e transporte) e de telecomunicações (a empresa Entel, antes controlada pela italiana Telecom).
Recentemente, criou um ministério que terá a missão de defender as nacionalizações em processos de arbitragens conduzidos pelas empresas estrangeiras. “O governo está recuperando, no campo político, o sentido da soberania, e no campo econômico, o sentido estratégico”, opina o economista do IIE.
Na apresentação do novo modelo econômico, o vice-presidente boliviano afirmou que, se antes as petroleiras estrangeiras, a agroindústria, e os bancos eram a cabeça da economia do país, agora o novo bloco de poder será formado pelos que estavam abaixo: o Estado e o pequeno produtor.

Investimentos

“O estrangeiro é bem vindo acoplando-se ao modelo, pagando impostos. A partir de agora, a Bolívia maneja tudo, não mais os estrangeiros”, disse. Mesmo assim, garantiu que a grande empresa privada será parte do novo plano, que não seria excludente.
Para alavancar a execução do modelo, o Executivo prevê investir, até o final de 2008, mais de 1,6 bilhão de dólares, e espera ingressos de 5 bilhões de dólares provenientes dos hidrocarbonetos e da mineração.
“Estamos gerando um projeto produtivo nacional que nos vai permitir diversificar nossa produção, iniciar um processo de industrialização que não tivemos nos últimos anos, e também gerar um valor agregado que antes não tínhamos”, disse Graciela Toro, ministra de Planejamento do Desenvolvimento, em coletiva de imprensa.
No setor energético, o governo trabalhará para fortalecer a YPFB (a estatal de petróleo e gás); investigará e explorará mega-campos de hidrocarbonetos; construirá uma planta de produção de Gás Liquefeito de Petróleo (GLP) e uma de fertilizantes; e injetará 450 milhões de dólares em uma planta separadora de gás.
Além disso, o Estado destinará 206 milhões de dólares, em 2008, para garantir a soberania alimentar na Bolívia. O governo implantará, por exemplo, fábricas de leite e cítricos, além de dois engenhos de açúcar.
Está prevista, também, a potencialização da Empresa de Apoio à Produção de Alimentos (Emapa) – estatal criada pelo governo Evo – para garantir créditos à produção de arroz, trigo, milho e soja, voltados para o mercado interno. De acordo com Linera, o empréstimo será pago com a produção. No setor da mineração, o governo boliviano já emitiu um decreto subindo o imposto às empresas privadas de 32% a 55% dos lucros, o que fará com que o Estado receba, adicionalmente, pelo menos 136 milhões de dólares.

Para analistas, proposta não rompe com o modelo neoliberal

Vice-presidente boliviano acredita na convivência com grandes empresas transnacionais

de La Paz (Bolívia)

Embora o governo boliviano tenha anunciado a execução de um novo modelo econômico, suas linhas gerais já tinham sido estabelecidas em 2006, pelo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), um programa gradual com a meta de desmontar o neoliberalismo, vigente desde 1985, quando o decreto presidencial 21060 implementou a economia de livre mercado.
O ápice dessa política se deu na primeira gestão presidencial de Gonzalo Sánchez de Lozada (1993-1997), quando empresas estatais foram privatizadas e corporações estrangeiras passaram a atuar no país, com a contrapartida de realizarem grandes inversões, promessa que, de acordo com o governo Evo Morales, não se cumpriu.
No entanto, em entrevista coletiva à imprensa, a ministra de Planejamento do Desenvolvimento, Graciela Toro, afirmou que o decreto 21060 perdeu vigência desde o início da aplicação do PND. Os anúncios feitos por Álvaro García Linera reforçariam essa realidade.
Na opinião dela, o governo boliviano vem trabalhando para dar ao Estado um papel mais determinante na economia, conseguindo transformar uma visão puramente liberal em um modelo mais integrador e produtivo.
Ponderou ainda que, embora alguns traços do neoliberalismo ainda permaneçam, como a lei da oferta e da demanda, o Estado vem intervindo na regulação dos preços. Segundo Graciela, esta intervenção é necessária porque quem define os preços, hoje, são os oligopólios industriais, que não levam em conta fatores como oferta e demanda e as necessidades internas do país.

Capitalismo andino-amazônico

No entanto, para os economistas ouvidos pelo Brasil de Fato, uma ruptura mais contundente com o neoliberalismo ainda está longe. Na opinião de Javier Gómez Aguilar, economista do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Laboral e Agrário (CEDLA), o novo modelo econômico proposto pelo governo insere-se na idéia de uma convivência harmônica entre pequena, média e grande empresa e a economia estatal.
“É uma opção política. Desde sua proposta eleitoral, e posteriormente com o PND, o governo propõe uma reforma por etapas. Propõe o capitalismo andino-amazônico, nos termos usados por Linera [Álvaro García Linera, vice-presidente]. Ele acredita que a pequena empresa, a estatal e a grande empresa podem conviver”, analisa.
Para Aguilar, “essa convivência não existe”, pois as grandes empresas capitalistas tendem a ser concentradoras e a possuírem um forte poder de decisão no comportamento dos mercados.
“É notório o que está acontecendo com os hidrocarbonetos. A Bolívia, através da lei 3058 [de 2005] e com o decreto de nacionalização de maio de 2006, recupera a propriedade, mas não tem um controle total da cadeia do setor. Isso provoca conflitos muito operativos entre o que determina a capacidade das empresas para produzirem, os compromissos que tem o Estado para comercializar com o Brasil e a Argentina, as demandas do mercado interno e a incapacidade do governo para decidir sobre maior produção e maior investimento”, exemplifica.
Portanto, na opinião do economista do Cedla, o novo plano econômico não romperá com o modelo agro-exportador, e a intervenção estatal sobre os preços e o abastecimento de produtos alimentícios terá sempre efeitos de curto prazo, já que, ao não intervir na propriedade privada, o governo não decidirá sobre o destino destes produtos – se para a exportação ou para o mercado interno.

Travas

Segundo ele, esta situação intermediária entre economias estatais, mas com forte presença de decisão de empresas transnacionais, faz parte de um novo modelo que está se impondo na América Latina, que sucede a total liberação de mercados, mas que não rompe plenamente com o neoliberalismo.
“A presença exacerbada do capitalismo em nossos países, através das transnacionais, torna menos possível fazer o que se pôde fazer nos anos 1950, 1960, 1970. A ruptura teria que ser muito mais dramática e as condições políticas internas teriam que ser muito mais favoráveis do que está sendo atualmente para o governo Evo Morales”, analisa.
Além disso, para o Abraham Pérez, economista do Instituto de Investigações Econômicas (IIE) da Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), de La Paz, o modelo neoliberal ainda estaria na “estrutura mental” de alguns membros do governo Evo e instituições do Estado boliviano, como o Banco Central e o Ministério da Fazenda.
Para piorar, “as estruturas legais e regulamentárias que neoliberalismo deixou seguem vigentes. Por exemplo, o Banco de Desenvolvimento Produtivo não pode fazer os créditos fluírem rapidamente, porque possui travas e está controlado pela Superintendência de Bancos e Entidades Financeiras, que não permite o trabalho. Ou seja, exigem garantias que os pequenos produtores não têm condições de cumprir”, lamenta. “Enquanto existirem essas travas, não romperemos com o modelo neoliberal”, alerta. (IO)

PARA ENTENDER

Capitalismo andino-amazônico: Proposto por Álvaro García Linera, vice-presidente boliviano, é um regime fundado nas potencialidades comunitárias, indígenas, camponesas e familiares da Bolívia, que se articulariam em torno de um projeto de desenvolvimento e modernização nacionais. Para Linera, seria uma etapa de transição a um sistema socialista.