quinta-feira, 24 de julho de 2008

Desanalfabetizando

Abaixo, matéria sobre o programa de alfabetização na Bolívia. O novo prazo para a erradicação do analfabetismo é dezembro. Aqui e aqui, os relatos pessoais sobre a visita a Huanco Pallallani e à Villa San Antonio.

Brasil de Fato, edição 264 (de 20 a 26 de março de 2008)

Um passo para a emancipação

Bolívia quer tornar-se, em outubro de 2008, o terceiro país latino-americano a erradicar o analfabetismo

Igor Ojeda
de La Paz, El Alto e Huanco (Bolívia)

Estrada La Paz – Huanco Pallallani, por volta das 6:30 hs de um domingo

Depois de mais de cinco horas de viagem, amanhece. A escuridão vista da janela da caminhonete que há muito tempo não pára de chacoalhar dá lugar a um cenário impressionante.
Quatro ou cinco mil metros acima do nível do mar. Nesse ponto, a paisagem dos Andes é uma fusão entre desfiladeiros acentuados, verdes morros e planícies e picos nevados ao fundo. Em meio aos rios e pequenos lagos que, nessa época de chuva, estão cheios, conjuntos de poucas casas muito simples, de parede de barro e telhado de palha, misturam-se com milhares de lhamas e alpacas que fazem sua refeição diária ou caminham pelos cumes das montanhas.
A viagem através das subidas, descidas e curvas da estrada de terra, esburacada, enlameada, dura cerca de três horas mais, até a pequena Huanco Pallallani, uma pobre comunidade de, talvez, 200 famílias. Em quase toda a volta da mal-tratada praça principal, as rústicas moradias disputam espaço com o mercado de rua, que comercializa de sardinhas a roupas.
Em um ponto do local, um pequeno e simples palco, decorado com a bandeira boliviana e quadros de Simón Bolívar, o herói da independência da Bolívia. É aí que, em algumas horas, aconteceria a cerimônia de declaração de Aucapata, o município do qual Huanco faz parte, como território livre do analfabetismo.

Bairro Horizontes, El Alto, uma sexta-feira de noite

Apthapi, para os aymaras, é a comida compartilhada. Batata, chuño, frango, banana... Com estes alimentos, saboreados, com as mãos, por todos os que restam em uma sala de aula de uma escola precária na periferia de El Alto, é finalizada a alfabetização de um grupo de senhoras indígenas, conhecidas como cholas. Elas mesmas prepararam e levaram a comida. Estão felizes. Agradecem, a todo momento, aos responsáveis pelo curso. Querem seguir estudando.

Villa San Antonio, periferia de La Paz, noite de segunda-feira

Sob os olhares e o incentivo da professora, uma indígena típica da Bolívia, vestindo uma grande saia, um chale e um gorro azul, escreve na lousa. Tem por volta de 60 anos. Com dificuldade, ela olha no caderno, e as letras vão saindo, pouco a pouco. “F”, “E”, “L”, assim sucessivamente, até aparecer o nome “Felipa”, em extenso e em fôrma.
O resto da classe, formada quase totalmente por senhoras indígenas, observa, ao mesmo tempo em que faz exercícios no caderno. Trabalharam o dia inteiro, mas não demonstram cansaço. Mostram sim seu esforço em aprender. Conversam, brincam.
A escola fica na Villa San Antonio, no alto do morro. Muito alto. De lá, pode-se ver quase toda La Paz iluminada. Muitas das alunas certamente levaram uma hora e meia, duas horas, para vir dos bairros centrais, onde trabalham, e chegar a tempo para a aula. Mas parecem não se incomodar.

Escritório da seção departamental do Plano Nacional de Alfabetização, no bairro de Sopocachi, La Paz, uma quinta-feira à tarde

Nirvana Callejas tem 19 anos. É surda e fala com alguma dificuldade. Mas nada disso impediu que ela ensinasse a 13 surdos-mudos a lerem e escreverem. “Antes eles só usavam sinais. Ensinei a ler os lábios, a escrever orações ordenadas e completas. Por exemplo, ‘mamãe é boa’. Eles escreviam somente ‘mamãe boa’. Então, tem que ensinar a ordenar, a pôr verbo. Há palavras que eles não conhecem, tem que explicar”, conta, sem esconder o orgulho.

Bolívia, coração da América do Sul, início de 2006

Em 1º de março de 2006, é dado o pontapé inicial de um ambicioso projeto do governo do presidente Evo Morales. Tornar seu país o terceiro da América Latina a erradicar o analfabetismo, depois de Cuba, em 1961, e Venezuela, em 2005.
Para tal, decide contar com a ajuda justamente de cubanos e venezuelanos. Da nação governada por Hugo Chávez, viriam assessores. Da ilha, além destes, chegaria o método áudio-visual de alfabetização Yo, Sí Puedo (ver nesta página) – “eu posso, sim”, em espanhol.

Dois anos depois, os resultados são animadores. Até fevereiro deste ano, 472.418 pessoas haviam aprendido a ler e a escrever, número equivalente a 57,38% da meta total. Levando-se em conta os 149.711 alunos que estavam em aula no mesmo mês, o avanço chega a 75,57%. No dia 13 de março, Oruro foi declarado como o primeiro departamento livre do analfabetismo. O objetivo é que em outubro o país inteiro possa ser considerado sem iletrados.
“Antes estávamos muito atrasados, não entendíamos nada. Agora estamos captando as coisas. Quero ler livros, jornais, tudo, tudo, tudo”, diz Martin Mamani, de Huanco Pallallani. Nesta pequena comunidade rural, cerca de 600 pessoas aprenderam a ler e a escrever. Em Aucapata, município que a engloba, foram 1500 no total.
No dia 16 de março, com a presença de autoridades indígenas da região, se içou uma grande bandeira branca dizendo “Aucapata, livre de analfabetismo”. Foi a 128ª cidade do país, de 327, a alcançar o feito.

“Mais feliz”

Liriana Mendoza Choque, de 30 anos, é aluna do programa de alfabetização em Villa San Antonio, em La Paz. Sabia ler e escrever bem mal, pois não completou os estudos por falta de dinheiro. Tinha dificuldade, por exemplo, para preencher os formulários de matrícula dos três filhos que têm idade para ir à escola.
“Fui este ano, me deram três formulários, tinha que preenchê-lo, e te falo que só errei em uma folha. Preenchi os três com facilidade. Conforme eu ia lendo, ia preenchendo, e me sentindo mais feliz. Você se sente melhor quando já pode”, conta. Liriana, que usará o que aprendeu também para estudar a Bíblia, diz que, ao contrário do que fizeram seus pais, vai manter sempre seus filhos estudando. “Vou apoiá-los até o final”.
Já Ubaldina Flores Condori, uma das responsáveis pelo apthapi de El Alto, quer continuar aprendendo. Fazer o programa de pós-alfabetização e, inclusive, computação. “Tudo isso podemos aprender. Querer é poder. Quando não sabemos, aqueles mais capacitados nos humilham”, diz a senhora de 57 anos.

Emancipação

A professora de Liriana, Mery Chuquinia Carrasco, que atua como facilitadora do método Yo, Sí Puedo, explica que a alfabetização contribui para a emancipação feminina. “Quando uma mulher sabe ler e escrever, ela não vai se deixar enganar. Quando não sabem ler ou escrever, lhes podem dizer tantas coisas, tantas mentiras, podem fazê-las assinar papéis falsos, simplesmente com impressão digital. Hoje a mulher tem que saber assinar, saber ler, compreender”.
Emancipação, perda da timidez e elevação da auto-estima foi o que conquistaram cerca de 30 surdos-mudos com a alfabetização, segundo Edith Aguilar, professora que adaptou o método Yo, Sí Puedo para o ensino de pessoas com essa deficiência. “Eles agora acreditam que podem fazer tudo que faz uma pessoa não surda. Acham que não têm mais limitações, porque desenvolveram outras potencialidades: a visão, o tato, a leitura labial etc”.

Vontade

De acordo com ela, o primeiro passo foi convencer os pais, normalmente céticos quanto a evoluções de seus filhos, jovens entre 17 e 25 anos. Depois, a próxima etapa foi fazer a adaptação do método. “Eu punha suas mãos no televisor, para sentirem a vibração, os sons, a pronúncia, o tempo. Trabalhamos com materiais extracurriculares, como pirulitos, para estimular os músculos da língua e da cara. Eles puseram muito de sua vontade”, lembra Edith.
Trabalhando por muitas horas semanais, o curso acabou em três meses. No entanto, duas de suas alunas, uma delas Nirvana Callejas, pediram que os equipamentos não fossem devolvidos. “Então, elas alfabetizaram seus amigos surdos”, conta Edith.

Um método revolucionário

de La Paz (Bolívia)

Criado pela Revolução Cubana, o método de alfabetização Yo, Sí Puedo é inovador pelo uso de equipamentos audiovisuais. Uma televisão, um vídeo cassete e 65 fitas são os instrumentos de ensino. O professor está na tela. Na sala de aula, é imprescindível a presença de um facilitador.
“Estamos certos de que esse é o método mais econômico. É flexível. O custo por alfabetizado é muito menor que em outros países. Em outros lugares, o mínimo é 55 dólares por aluno. Aqui, gastamos de 18 a 20 dólares”, explica Benito Ayma Rojas, diretor-geral do Programa Nacional de Alfabetização (PNA) da Bolívia.
Segundo ele, justamente por ser flexível, o método cubano foi “bolivianizado”. Um grupo de especialistas do país gravou as fitas, fazendo um ajuste à realidade nacional. “Agora, está representada uma mulher de pollera [saia típica das indígenas], um camponês”, conta Benito.

Alfabetização indígena

Outra importante adaptação foi a inclusão da alfabetização em aymara e quéchua, os dois idiomas originários mais falados no país. Para tal, professores das duas etnias gravaram as fitas do curso. Até fevereiro deste ano, 6.089 pessoas haviam sido alfabetizadas em aymara, e 8.937 em quéchua. De acordo com Benito, ainda existe o desejo de se incorporar o guarani.
Uma das grandes dificuldades do programa de alfabetização na Bolívia é chegar nas comunidades rurais mais distantes, principalmente as que não possuem energia elétrica, elemento essencial para o método áudio-visual. Para resolver esse problema, milhares de painéis solares foram e estão sendo instalados nos locais, com a colaboração de Cuba e Venezuela.
Em média, leva-se de três a quatro meses para se alfabetizar uma pessoa com o método Yo, Sí Puedo, enquanto outros demoram de seis meses a um ano. O diretor-geral do PNA conta que os facilitadores não são necessariamente educadores, mas devem ser capacitados para tal. “São professores rurais, urbanos, militares, normalistas, universitários, líderes camponeses, voluntários etc”.
Quem capacita os facilitadores são os assessores cubanos e venezuelanos no país, que também instruem os supervisores e organiza aspectos do programa. No total, estão na Bolívia 120 profissionais de Cuba e 18 da Venezuela.
Agora, diz Benito, o próximo passo é o programa de pós-alfabetização. “Uma equipe técnica já está trabalhando nisso. Professores especialistas em cada matéria vão gravar as fitas, e o curso vai durar de dois a três anos”. (IO)

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Não vale comparar

Ontem foi feriado aqui em La Paz. Comemoraram 199 anos do grito libertário que a cidade deu contra a colonização espanhola, em 16 de julho de 1809.

Me chamou muito a atenção o “civismo” dos paceños. As ruas enfeitadas com flâmulas e luzes da cor local (vinho e verde, como as de Portugal), carros e vans com bandeirinhas no teto ou na janela, prédios, públicos ou não, com bandeiras enormes. Tinha até pessoas levando bandeirinhas nas mãos.

Parecia o Brasil em época de Copa do Mundo. Mas aqui o fervor é por um acontecimento político-social de 200 anos atrás. Os sete de setembro no Brasil não chegam nem perto disso.

Mas isso tem razão de ser. Os países sul-americanos de língua espanhola passaram por verdadeiras guerras de independência. Conquistaram a liberdade (mesmo que só formal) com muito sangue. No Brasil, já sabemos como foi a palhaçada da “proclamação” às margens do Ipiranga.

Já me perguntaram umas cinco ou seis vezes quem era o libertador do Brasil. Duro responder “Dom Pedro I” para quem tem como herói máximo da libertação ninguém menos que Simón Bolívar. E que tem outros inúmeros heróis coadjuvantes.

Quase todas as vezes fico sem graça, dou aquela gaguejada... e dou uma explicada básica de como não houve guerra, de como foi tudo arranjado etc etc etc. Não raro, meu interlocutor deixa transparecer um ar de surpresa, mas ao mesmo tempo de superioridade.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Coca não é cocaína!

Brasil de Fato, edição 263 (de 13 a 19 de março de 2008)

O desrespeito a uma cultura milenar

Bolivianos rechaçam recomendação da ONU para que se proíba o hábito de se mascar coca e defendem qualidades da planta

Igor Ojeda
de La Paz (Bolívia)

Acullicu ou pijcheo. Duas palavras que a Comissão de Entorpecentes da Organização das Nações Unidas (ONU) definitivamente não conhece. Pelo menos não no seu sentido mais transcendente, cultural. Sagrado.
Ambas significam o ato de se mascar folha de coca. A primeira é em aymara, a segunda em quéchua, as duas principais línguas indígenas da Bolívia. Acullicar ou pijchar, no entanto, vão mais além que isso. São um costume de mais de três mil anos dos povos andinos, assim como também são milenares os usos da planta na região.
Nas reuniões de sindicatos ou movimentos, em encontros de amigos, em festas, no trabalho nas minas, em rituais religiosos, em tratamentos médicos. Em muitas ocasiões do cotidiano boliviano, a coca ou o ato de mastigá-la está presente como elemento central. Freqüentemente, a bochecha avultada de alguma pessoa acusa o acullicu ou o pijcheo que, além de tudo, estão associados a inúmeros benefícios medicinais e nutritivos.
Pois a ONU, através do informe de 2007 da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE), entidade colaboradora de sua Comissão de Entorpecente, “exorta os governos da Bolívia e do Peru a adorarem medidas, sem demora, com vistas a abolir os usos da folha de coca contrários à Convenção de 1961, incluída a prática de mascá-la”.

Sustento

A Convenção de 1961 inclui a planta andina em uma lista de entorpecentes proibidos internacionalmente. De acordo com o documento, a mastigação de coca, assim como o consumo de chás ou qualquer outro derivado, tem um impacto no aumento da dependência às drogas na Bolívia que, segundo a entidade, vem aumentando no país.
Desse modo, pede que, além da proibição ao consumo de coca, o governo adote programas educativos que previnam “a expansão dessa prática nos estudantes e jovens em geral, nos condutores de veículos de transporte público e outros grupos vulneráveis da população da Bolívia”.
“Esse informe produz um dano grande a nós que cultuamos a coca e acullicamos. Não é a coquita que mata, que envenena. Ao contrário, ela nos dá força para o trabalho. Não podem cortar o acullicu e a coca. Esse é nosso pão, o sustento de nossas famílias. Nós temos todo o direito de nos mantermos, de sobrevivermos. A ONU não pode nos destruir com suas leis que impõem que a coca e o acullicu devem morrer”, revolta-se Pastor Mamani, dirigente da Federação de Chulumani, organização de plantadores de coca da região de Yungas, ao norte de La Paz. “Em seu estado natural, ela não é droga. É uma folha sagrada, milenar”, completa.
Para a nutricionista Maria Eugenio Tenorio, a ONU considera a folha de coca ruim porque “lhe disseram isso há muitos anos”. Segundo ela, existem produtos realmente danosos que não são levados em conta, como o tabaco e o óleo reciclado. “Ninguém sabe, fora dos EUA, que, antes de entrarem nas partidas, os jogadores de futebol americano mascam tabaco. Agora, muito mais prejudicial que o próprio tabaco é o óleo reciclado, cuja permissão de utilização foi dada em 1996 pela Organização Mundial da Saúde. Sabemos que ele causa câncer ao fígado e ao pâncreas”.

“Aberração”

Na opinião da socióloga Silvia Rivera, o informe da ONU é uma agressão à soberania boliviana e à cultura indígena. Além disso, baseia-se em um estudo sem rigor científico e vai de encontro aos interesses da medicina ocidental.
De acordo com ela, em 1950, a entidade enviou à Bolívia uma comissão para investigar a folha de coca. “O documento que se originou daí era uma aberração, baseado em especulações, em provas fragmentárias. Só estiveram aqui 18 dias e entrevistaram donos de fazendas, capatazes de minas, engenheiros, médicos. Nunca chegaram diretamente ao consumidor. Quem dirigia essa comissão era o presidente da American Pharmaceutical Association”, conta.
Segundo a socióloga, nessa época havia uma medicina com uma visão progressista, que considerava superstições qualquer medicina indígena. Desse modo, tal estudo segue vigente e com base nele a coca foi incluída como substância ilegal na Convenção de 1961. Ela lembra, ainda, que uma cláusula desta convenção permitia a produção, a compra e venda e o transporte da folha de coca apenas para saborizante sem alcalóides. “E a patente mundial da coca como saborizante é da Coca-Cola. Ou seja, se protege os interesses dessa corporação”.

Interesses

No entanto, para Rivera, outros interesses também são atendidos, como os da indústria farmacêutica e da medicina ocidental. “O negócio é mais importante que a saúde. O objetivo não é curar, mas criar dependência. É o vício à droga tolerado. Nesse contexto, a coca é uma ameaça”.
Acompanhando a indignação da população em geral, o governo da Bolívia rechaçou a recomendação da ONU, chamando a Jife de “ignorante e anacrônica”. No dia 10, em Viena, na Áustria, uma delegação do país deixou claro seu protesto na abertura da reunião da Comissão de Entorpecentes do organismo.
Em seu discurso, o vice-chanceler boliviano, Hugo Fernández criticou a “desconsideração e falta de respeito” da Jife com relação a uma tradição de mais de três mil anos. Na ocasião, Fernández anunciou uma solicitação formal de retirada da folha de coca da lista de entorpecentes da ONU.

"Coca não é cocaína"

Pesquisadores relacionam as propriedades medicinais e nutritivas da "folha sagrada"

de La Paz (Bolívia)

O argumento de pesquisadores bolivianos e cidadãos comuns é contundente. Eles deixam claro que a cocaína é produzida através de um alcalóide da planta, e que, para isso, ele deve passar por um processo químico.
Mas, mais que tudo, defendem as diversas propriedades medicinais e nutritivas da “folha sagrada”. Segundo a nutricionista Maria Eugenio Tenorio, a planta andina atua nos sistemas respiratório, digestivo, circulatório e nervoso central. “É boa para dor de estômago, dor muscular. Eu, por exemplo, emagreci 14 quilos. Eliminei o problema grave de gota que tinha. Sinto-me muito bem, fisicamente e espiritualmente. Vejo a vida com outros olhos”, conta.
Ela explica também que a folha de coca contém uma grande quantidade de cálcio, maior, por exemplo, que a do leite. Tal nutriente ajuda a fortalecer os ossos e a combater a osteoporoses. “Por isso que os fósseis de nossos antepassados, quando desenterrados, possuem arcadas dentais completas”, exemplifica.

Benefícios

A folha de coca, de acordo com alguns estudos, elimina gorduras, o colesterol e os triglicérides, combate diarréias e hemorróidas, previne o câncer do cólon e do reto e é um bom suplemento para diabéticos, entre outros benefícios. A planta, além disso, aumenta o rendimento físico em trabalhos longos, pois faz baixar a produção de adrenalina e, conseqüentemente, o consumo de oxigênio. Daí o seu uso abundante nas minas.
Um estudo de 1973 realizado por investigadores da Universidade de Harvard, dos EUA, concluiu que a coca possui uma completa gama de vitaminas e minerais. Ela contém, por exemplo, três vezes mais fibra que os legumes, 14 vezes mais que as frutas e 15 vezes mais que os vegetais, além de uma grande quantidade de vitamina A.

Farinha

“Os lugares de grande altitude da Bolívia possuem comidas com poucas fibras, muitos carboidratos e bastante gordura. E a falta de fibra produz muitos problemas de estômago. Minha proposta é a industrialização da farinha de coca para adicionar à farinha de trigo ou qualquer outra”, explica Maria Eugenio.
É isso o que faz Silvia Quisbert, de uma padaria ecológica de La Paz. “Nós trabalhamos com a farinha de coca orgânica. Colocamos 90% de farinha de trigo, ou de milho, e 10% de farinha de coca”, explica. O resultado são as tortas, bolos, bolachas, empanadas e até chocolates que ela produz, todos com uma coloração verde.
Para a micro-empresária, a recomendação da ONU se deve à má informação por parte dos responsáveis pelo informe. “Nossa folha sagrada não surgiu esse ano. É nossa alimentação”. (IO)

Três milênios de tradição indígena

de La Paz (Bolívia)

O uso da folha de coca pelos povos indígenas dos Andes remonta a mais de três mil anos. A descoberta de estátuas representando humanos com uma protuberância em uma das bochechas demonstra que o hábito de se mascar coca é milenar.
De acordo com a socióloga Silvia Rivera, a coca, para os andinos, era um bem de grande valor, e que possuí-la era sinal de prestígio. Na época do Império Inca, havia, inclusive, plantações estatais. “Seu uso tinha a ver com as relações de poder”.
Já na era colonial, os espanhóis costumavam fornecer folha de coca para os índios que trabalhavam nas minas. “Os grandes produtores de coca eram espanhóis. A partir do século XVII, na região de Yungas [ao norte de La Paz], eles começaram a possuir grandes fazendas que utilizavam mão-de-obra escrava negra. Nesse período, há um aumento no consumo devido à intensificação do trabalho minerador. Havia uma enorme rede de comerciantes indígenas que vinculavam o produtor com o consumidor. Foi a primeira mercadoria indígena moderna”, conta.

Religião

A Bolívia é o terceiro maior produtor mundial de coca, depois da Colômbia e do Peru. O governo boliviano estima que, mensalmente, cerca de 1,1 mil toneladas de coca são consumidas no país. Silvia Rivera calcula que existam três milhões de acullicadores.
Além do uso medicinal e nutricional, a folha de coca está fortemente vinculada à religião andina, sendo parte central dos rituais. “A religião indígena está baseada no culto aos ancestrais, que estão encarnados em acidentes geográficos, como morros, rios, lagos. E em todas as cerimônias se utiliza a folha de coca”, explica.
Além disso, a planta possui uma significativa importância na socialização dos povos andinos. “Todo evento social começa sempre com a coca. Toda discussão em um sindicato, em uma organização indígena, todas a festividades, todos os conflitos etc”. (IO)

Tratamento anti-drogas com base na coca

Jorge Urtado, médico boliviano fundador do Museu da Coca de La Paz, contraria radicalmente a afirmação da ONU de que o acullicu leva ao vício em relação às drogas. Ele utiliza justamente a mastigação da folha de coca para recuperar dependentes de cocaína. De acordo com ele, antes de usar tal método, 25% dos viciados deixavam de consumir a droga. Com o acullicu, a proporção subiu para 50%. (IO)

sexta-feira, 4 de julho de 2008

O mundo dá voltas...


Colar de histórias

Por Eduardo Galeano*

Nossa região é o reino dos paradoxos.

Brasil, peguemos alguns casos:
Paradoxalmente, Aleijadinho, o homem mais feio do Brasil, criou as mais altas belezas da arte da época colonial;
paradoxalmente, Garrincha, arruinado desde a infância pela miséria e pela poliomielite, nascido para a infelicidade, foi o jogador que mais alegria deu em toda a história do futebol;
e, paradoxalmente, já completou cem anos de idade Oscar Niemeyer, que é o mais novo dos arquitetos e o mais jovem dos brasileiros.

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Peguemos o caso da Bolívia: em 1978, cinco mulheres enfrentaram uma ditadura militar.
Paradoxalmente, toda Bolívia riu delas quando iniciaram sua greve de fome.
Paradoxalmente, toda Bolívia terminou jejuando com elas, até que a ditadura caiu.

Eu conheci uma dessas cinco lutadoras. Domitila Barrios, no povoado mineiro de Llallagua. Em uma assembléia de operários das minas, todos homens, ela se levantou e fez todos se calarem.
- Quero lhes dizer isto - disse. Nosso inimigo principal não é o imperialismo, nem a burguesia, nem a burocracia. Nosso inimigo principal é o medo, e o levamos dentro de nós.

E anos depois reencontrei Domitila em Estocolmo. Expulsa da Bolívia, foi ao exílio, com seus sete filhos. Domitila estava muito agradecida pela solidariedade dos suecos, cuja liberdade admirava, mas eles lhe davam pena, tão solitários que estavam, bebendo sozinhos, comendo sozinhos, falando sozinhos. E lhes dava conselhos:
- Não sejam bobos – dizia a eles. Nós, lá na Bolívia, nos juntamos. Ainda que seja para lutar, nos unimos.

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E quanta razão tinha.
Porque eu digo: Existem os dentes, e não se juntam na boca? Existem os dedos, e não se juntam na mão?Juntamos: e não apenas para defender o preço de nossos produtos, mas também, e sobretudo, para defender o valor de nossos direitos. Estão juntos, embora de vez em quando simulem rixas e disputas, os poucos países ricos que exercem a arrogância sobre todos os demais. Sua riqueza come pobreza, e sua arrogância come medo. Há bem pouco tempo, peguemos este caso, a Europa aprovou a lei que converte os imigrantes em criminosos. Paradoxo dos paradoxos: a Europa, que durante séculos invadiu o mundo, fecha a porta nos narizes dos invadidos, quando retribuem a visita. E essa lei foi promulgada com uma assombrosa impunidade, que seria inexplicável se não estivéssemos acostumados a ser comidos e viver com medo.

Medo de viver, medo de dizer, medo de ser. Esta nossa região faz parte de uma América Latina organizada para o divórcio de suas partes, para o ódio mútuo e a mútua ignorância. Mas, somente estando juntos seremos capazes de descobrir o que podemos ser, contra uma tradição que nos adestrou para o medo e a resignação e a solidão e que cada dia nos ensina a não nos querermos, a cuspir no espelho, a copiar em lugar de criar.

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Ao longo de toda a primeira metade do século XIX, um venezuelano chamado Simon Rodríguez, andou pelos caminhos de nossa América, no lombo de mula, desafiando os novos donos do poder:

- Vocês – clamava don Simon – vocês que tanto imitam os europeus, por que não os imitam no mais importante, que é a originalidade?
Paradoxalmente, por ninguém era ouvido este homem que tanto merecia ser ouvido.
Paradoxalmente, o chamavam de louco,
porque tinha o bom senso de acreditar que devemos pensar com nossa própria cabeça,
porque tinha o bom senso de propor uma educação para todos e uma América de todos, e dizia que aquele que não sabe, qualquer um o engana e aquele que não tem, qualquer o compra.
Porque tinha o bom senso de duvidar da independência de nossos países recém-nascidos:
- Não somos donos de nós mesmos – dizia. Somos independentes, mas não somos livres.

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Quinze anos depois da morte do louco Rodríguez, o Paraguai foi exterminado. O único país hispano-americano verdadeiramente livre foi paradoxalmente assassinado em nome da liberdade. O Paraguai não estava preso na jaula da dívida externa, porque não devia um centavo a ninguém, e não praticava a mentirosa liberdade de comércio, que nos impunha e nos impõe uma economia de importação e uma cultura de impostação.
Paradoxalmente, após cinco anos de guerra feroz, entre tanta morte sobreviveu a origem.

Segundo a mais antiga de suas tradições, os paraguaios nasceram da língua que lhes deu nome, e entre as ruínas fumegantes sobreviveu essa língua sagrada, a língua primeira, a língua guarani. E em guarani ainda falam os paraguaios na hora da verdade, que é a hora do amor e do humor.
Em guarani, ñe’ significa palavra e também significa alma. Quem mente a palavra, trai a alma.
Se te dou minha palavra, me dói.

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Um século depois da guerra do Paraguai, um presidente do Chile deu sua palavra, e se deu.

Os aviões cuspiam bombas sobre o palácio do governo, também metralhado pelas tropas de terra. Ele havia dito:

- Eu, daqui, não saio vivo.

Na história latino-americana, é uma frase freqüente. Foi pronunciada por uns quantos presidentes que depois saíram vivos, para continuarem pronunciando-a. Mas, essa bala não mentiu. A bala de Salvador Allende não mentiu.

Paradoxalmente, uma das principais avenidas de Santiago do Chile se chama, ainda, Onze de Setembro. E não tem esse nome pelas vítimas das Torres Gêmeas de Nova York. Não. Leva esse nome em homenagem aos verdugos da democracia no Chile, com todo respeito por esse país que amo, me atrevo a perguntar, por puro senso comum: Não seria hora de mudar o nome? Não seria hora de chamá-la Avenida Salvador Allende, em homenagem à dignidade da democracia e à dignidade da palavra?

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E saltando a cordilheira, me pergunto: Por que será que Che Guevara, o argentino mais famoso de todos os tempos, o mais universal dos latino-americanos, tem o costume de continuar nascendo?

Paradoxalmente, quanto mais o manipulam, quanto mais o traem, mais nasce. Ele é o mais nascedor de todos.

E me pergunto: Não será porque ele dizia o que pensava, e fazia o que dizia? Não será que por isso continua sendo tão extraordinário, neste mundo onde as palavras e os fatos muito raramente se encontra, e quando se encontram não se saúdam, porque não se reconhecem?

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Os mapas da alma não têm fronteiras, e eu sou patriota de várias pátrias. Mas, quero culminar esta pequena viagem pelas terras da região evocando um homem nascido, como eu, aqui por perto.

Paradoxalmente, ele morreu há um século e meio, mas continua sendo meu compatriota mais perigoso. Tão perigoso é que a ditadura militar do Uruguai não pôde encontrar uma única frase sua que não fosse subversiva, e teve que decorar com datas e nomes de batalhas o mausoléu que ergueu para ofender sua memória.

A ele, que se negou a aceitar que nossa pátria grande se rompesse em pedaços;
a ele, que se negou a aceitar que a independência da América fosse uma emboscada contra seus filhos mais pobres,
a ele, que foi o verdadeiro primeiro cidadão ilustre da região, dedico esta distinção, que recebo em seu nome.
E termino com palavras que lhe escrevi há algum tempo:

1820, Paso del Boquerón. Sem voltar a cabeça, você afunda no exílio. O vejo, estou vendo-o: desliza do Paraná com agilidade de um lagarto e afasta flamejando seu poncho esfarrapado, ao trote do cavalo, e se perde na mata. Você nos diz adeus à sua terra. Ela não acreditava. Ou, talvez, você não sabe, ainda, que parte para sempre.

A paisagem fica cinza. Você vai, vencido, e sua terra fica sem alento.
Lhe devolverão a respiração os filhos que nascerem, os amantes que chegarem? Os que dessa terra brotam, os que nela entram, serão dignos de tristeza tão profunda?
Sua terra. Nossa terra do sul. Você lhe será muito necessário, don José cada vez que os ambiciosos se lastimarem e a humilharem, cada vez que os bobos a considerarem muda ou estéril, você fará falta. Porque você, don José Artigas, general dos simples, é a melhor palavra que ela pronunciou.

(IPS/Envolverde)

*Eduardo Galeano, escritor e jornalista uruguaio, autor de As veias abertas da América Latina, Memórias do fogo e Espelhos/Uma história quase universal.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Uma tarde no zoológico

Tenho algumas confissões a fazer.

A primeira é: eu gosto de zoológicos.
A segunda: minha namorada, a Tati, também.
A terceira: quando ela esteve aqui, há alguns dias, fomos, numa tarde de sábado, no zoológico de La Paz.

Bem, dito isso, resta falar que até que vale a pena, principalmente para os naturais de países não-andinos. Pois no zoológico paceño estão alguns animais com os quais não estamos acostumados, como o condor (só por esse já vale), o jucumari (o urso andino), a vizcacha (uma espécie de coelho com cauda de esquilo) e a raposa andina, além da lhama e de seus parentes, a alpaca e a vicuña, essas mais fáceis de avistar em qualquer viagem pelo altiplano.

Tudo isso, pagando mais ou menos 1 real de entrada.

O impressionante e imponente condor

O jucumari, o urso dos Andes