quarta-feira, 19 de março de 2008

A guerreira El Alto

É muito forte a mística que envolve El Alto, a cidade vizinha de La Paz. De imensa maioria aymara, o local está inevitavelmente associado a grandes e radicais lutas populares. Há duas semanas, fez 23 anos.

Devo ter passado ou ido a El Alto umas 20, 30 vezes. A pobreza impressiona, principalmente à medida que você vai se afastando para as zonas mais periféricas (embora toda a cidade pareça periferia; não existem bairros de classe média ou alta).

Mas, mesmo assim (melhor: por isso mesmo), a incrível força de luta de sua população é, certamente, sua característica que mais se destaca. A mais famosa dessas lutas foi a chamada Guerra do Gás, em 2003. Dezenas de pessoas morreram, o que mostra, além da brutalidade da repressão, que os manifestantes não estavam para brincadeira.

Tanto não estavam que foram vitoriosos. O presidente de então renunciou e, em 2006, foi decretada a chamada nacionalização dos hidrocarbonetos, embora muitos dizem que ela ainda não ocorreu na prática.

Abaixo, matéria que fiz por ocasião dos quatro anos da Guerra do Gás:

Brasil de Fato, edição 244 (de 1º a 7 de novembro de 2007)

Quatro anos depois da Guerra do Gás, a injustiça prevalece

Familiares de vítimas da repressão do governo contra mobilizações em massa no país em setembro e outubro de 2003 pedem a prisão dos responsáveis

Igor Ojeda
de El Alto e La Paz (Bolívia)

Dezenove de setembro de 2003 foi o dia em que a população de El Alto resolveu dar um basta. Acompanhando setores sociais, organizações indígenas e movimentos políticos de outras partes da Bolívia, o povo da cidade vizinha de La Paz decidiu, a partir dessa data, iniciar uma ampla paralisação.
O protesto nacional mobilizou, nesse dia, centenas de milhares de pessoas nas capitais, povoados e comunidades do país. Todos contra um projeto do governo do então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada de exportar gás natural para os EUA via um porto do Chile – responsável pelo fato da Bolívia não possuir saída para o mar.
A certa altura, a exigência dos manifestantes – que tinha, entre seus líderes, Evo Morales –, passou a ir além: em vez de exportado, o gás boliviano deveria ser industrializado no país e ser usado no desenvolvimento de seu povo.
Assim, as mobilizações invadiram outubro. Em El Alto, ganharam seu caráter mais radical. Bloqueios, paralisações, greves. Era a Guerra do Gás. Que o governo transformou em Outubro Negro. Pois a ordem era a de atirar contra a multidão. E a polícia e o exército a obedeceram.

Cansaço

Uma das incontáveis balas disparadas entrou pelas costas e saiu pelo abdômen de Constantino Quispe Mamani, de, então, 43 anos. Os ferimentos causados foram gravíssimos.
Seu irmão, Juan Patrício Quispe Mamani, lembra o porquê da sublevação de El Alto. A população da cidade estava cansada de viver sem água, luz, os serviços mais básicos. A entrega do gás foi o estopim.
“Por isso, aconteceram as paralisações. Não estávamos trabalhando, ficamos em casa vendo o que acontecia, saindo para falar com os vizinhos, dizendo que não podíamos permitir que o gás simplesmente se fosse, que deveríamos exigir que o governo retrocedesse em suas ações”.
Em 12 de outubro, alguns meios de comunicação noticiam que as casas da região estavam sendo destruídas pela população em fúria. Por volta das 11 da manhã, Constantino, preocupado com sua residência, sai da casa de seu irmão para verificar a veracidade das informações. Era mentira.

Massacre

“Por volta das 7 da noite, soubemos que meu irmão tinha sido ferido e que estava no hospital. Suponho que nesse lapso de tempo ele esteve com seus amigos em um bloqueio que faziam na ponte do Río Seco. E lá o atingiram”, conta Juan Patrício. No hospital, pôde ver que as feridas eram muito graves.
Constantino seria levado para o Hospital Geral de La Paz, pois precisava ser operado. Porém, com o hospital cheio e as ambulâncias escassas, teve que aguardar por três horas para ser removido. Em La Paz, faleceu depois de três dias.
Nenhum dia foi pior que o 12 de outubro de 2003. Data em que se “comemorava” os 511 anos do “descobrimento” da América por Cristóvão Colombo. Na El Alto militarizada, 26 pessoas foram assassinadas e mais de cem ficaram feridas.
“Meu irmão foi um dos primeiros que chegou ao hospital. Depois vieram dezenas de feridos, de mortos. Não cabiam todos, era um hospital pequeno, muitos feridos tiveram que ficar na parte de fora”, recorda Juan Patricio.
Outra das 26 vítimas fatais do massacre levado a cabo pelas forças de segurança do governo de Gonzalo Sánchez de Lozada em 12 de outubro foi Marcelino Carvajal Lucero, de 59 anos que, mesmo aposentado, continuava trabalhando como pedreiro.

Dezenas de mortos

“Meu marido não estava sequer na rua. Estava dentro de casa, no quarto, onde dormíamos. Foi lá que o mataram. A bala entrou pela janela”, lamenta, inconformada, Juana Valencia de Carvajal, de 58 anos. Com Marcelino, tinha seis filhos. Hoje, possui uma pequena loja, mas ressalta que a idade já está pesando. “O trabalho não é fácil pra nenhum de nós”.
Juana quer que Gonzalo Sánchez de Lozada e Carlos Sánchez Berzaín, então ministro da Defesa, foragidos em território estadunidense, voltem ao país, para “mostrar suas caras”.
“Se pudéssemos ir aos EUA, iríamos, pra saber que motivos eles tinham para tirar a vida de nossos esposos. Por que nós temos que sofrer? Viúvas, tendo que ser pais e mães para nossos filhos? Há várias crianças que nasceram logo depois e não conhecem o carinho de seus pais”, desabafa.
No dia 13 de outubro, Lozada, pressionado, decide suspender a exportação do gás. Mas já era tarde demais. Agora, a população boliviana queria sua renúncia. No total, de 19 de setembro a 17 de outubro, quando o presidente entregou o cargo e fugiu do país, mais de 60 pessoas morreram e mais de 400 ficaram feridas. Oficialmente. Para alguns, superou-se os 80 mortos. A imensa maioria, indígenas aymaras.

Filhos

“O pior é entender que o que o governo fez foi usar os filhos para matarem seus pais. Porque os que prestam serviço militar são nossos filhos, são nossos irmãos. Puseram-nos numa posição muito desumana. Por isso, não podemos permitir a impunidade, não podemos nos calar”, protesta Juan Patrício.
Hoje, ele é presidente da Associação de Familiares Caídos pela Defesa do Gás (Asofac-DG), entidade cujo único objetivo é, segundo afirma, buscar que se faça justiça. Justiça, no caso, significa botar na cadeia os responsáveis pelo massacre.
Desde então, a luta tem sido dura. Ninguém foi preso, nenhum julgamento foi iniciado. Para Juan Patrício, nada acontece porque os culpados são “respaldados pelo dinheiro, pela influência política, por altos funcionários que permitem a impunidade e a injustiça. Isso não deveria existir, mas existe, é evidente. Esses quatros anos nos dizem muito”.
A Asofac-DG conta, atualmente, com 64 membros. Parentes de vítimas fatais do Outubro Negro, além de quatro pessoas que tiveram que sofrer amputações em decorrência de ferimentos à bala.

Perna amputada

Uma delas é Dionísio Cáceres, de 30 anos. Segundo conta, ele não tinha nenhuma relação com o protesto que ocorria no momento em El Alto. “Estava do outro lado, indo pra minha casa, quando um tiro atingiu meu joelho”. No hospital, perdeu muito sangue e, até, a memória. Ficou internado por um mês e meio. Teve que amputar a perna, sobre o joelho esquerdo, porque o sangue já não circulava por ela.
Antes do incidente, era vendedor, e costumava ir a outras cidades, como La Paz e Santa Cruz de la Sierra. “Agora, não tenho capacidade de viajar, é muito difícil lidar com a prótese, ela me machuca muito”, lamenta Dionísio, que deseja ver os responsáveis na prisão. “Porque foi um massacre. Morreram crianças, idosos. Até agora não tivemos nenhuma resposta”.
Um outro tipo de resposta chegou, sim, dois anos e meio depois, em 1º de maio de 2006. O novo presidente boliviano, o aymara Evo Morales, decretou a nacionalização das reservas de gás da Bolívia. E os mais de 60 assassinados tornaram-se heróis.

Justiça começa a cercar ex-presidente

Corte Suprema de Justiça da Bolívia acusa formalmente a Sánchez de Lozada e mais 16 pessoas; nos EUA, familiares de vítimas apresentam demanda civil

de El Alto e La Paz (Bolívia)

No dia 17 de outubro, exatamente quatro anos após o fim da Guerra do Gás e a renúncia do então presidente boliviano, Gonzalo Sánchez de Lozada, e sua posterior fuga para os EUA, a Corte Suprema de Justiça da Bolívia abriu caminho para a reparação moral aos feridos e familiares de mortos pela repressão estatal.
Na ocasião, o Promotor-Geral da República, Mario Uribe, anunciou a formalização da acusação contra Lozada e mais 16 pessoas, entre ministros da época e oficiais das Forças Armadas. Eles são acusados pelos crimes de genocídio, homicídio, lesões graves e leves, delitos contra a liberdade de imprensa, invasão de domicílio, humilhação e torturas, entre outros.
A data do julgamento oral ainda não está marcada. Nele, cerca de 2.500 pessoas testemunharão, entre eles os atuais presidente e vice da Bolívia, Evo Morales e Álvaro García Linera.
“É uma demanda iniciada há muitos anos. Na verdade, a primeira denúncia foi apresentada em 22 de outubro de 2003, poucos dias depois da fuga de Gonzalo Sánchez de Lozada”, explica Rogelio Mayta, advogado das vítimas do Outubro Negro.

Extradição

Segundo ele, desde então, foi posto em marcha um longo processo investigativo, que só não culminou numa sentença ainda pelo fato dos acusados “continuarem a ter muito poder, mesmo fora do governo”.
Mesmo assim, aconteceram algumas vitórias, como a autorização do julgamento de Lozada pelo Congresso nacional, em outubro de 2004. Pelas leis bolivianas, um ex-mandatário de Estado não poderia ser levado aos tribunais sem o consentimento do legislativo.
No entanto, se no momento do julgamento oral o ex-presidente não estiver no país, o processo em relação a ele fica suspenso. “A Corte boliviana definiu que se tramite a extradição, para poder julgá-lo, mas essa solicitação é de prognóstico incerto. Não sabemos se efetivamente será extraditado”, lamenta Mayta.
De acordo com ele, ao se fazer uma avaliação estritamente jurídica, tal procedimento deveria ser levado adiante em alguns meses, pela gravidade dos fatos, pelas provas existentes, e pelo tratado de extradição existente entre os dois países.
Porém, lembra o advogado dos parentes das vítimas, “há mais de dois anos que o Estado boliviano solicitou ao governo dos EUA não que o extraditasse, mas que cumprisse com uma atuação inicial que seria a notificação. O Departamento de Estado dos EUA não deu curso a essa solicitação”.
Para ele, há uma explicação simples: Lozada, durante seus dois mandatos como presidente (1993-1997 e 2002-2003), foi ferrenho defensor das diretrizes políticas e econômicas definidas pelo governo estadunidense, sem maiores questionamentos.
“Além disso”, lembra Mayta, “Lozada foi sócio de negócios do neto do Rockefeller [John Davison, milionário estadunidense do começo do século XX], que por sua vez foi importante contribuinte para a campanha de George W. Bush”.

Demanda civil

Por tais razões, e pelo fato dos EUA não reconhecerem nenhuma corte internacional de direitos humanos, os parentes das vítimas e os feridos começaram a procurar opções para se fazer justiça, caso a extradição não saia.
Uma delas foi concretizada em 19 de setembro deste ano, quando um grupo de dez parentes apresentou duas demandas civis em tribunais dos EUA. Uma contra Lozada, outra contra seu ex-ministro da Defesa, Carlos Sánchez Berzaín. Entre os demandantes, estão Juan Patricio Quispe Mamani e Juana Valencia de Carvajal.
“Os processos podem levar pelo menos 18 meses e provavelmente mais antes que o caso seja apresentado para um júri decidir. Durante esse período, um juiz pode decidir que não temos evidências suficientes para levar o caso ao tribunal, mas estamos bastante confiantes de que as demandas serão levadas ao tribunal”, explica ao Brasil de Fato David Rudovsky, um dos muitos advogados que representam os demandantes nos EUA. (IO)

Nenhum comentário: