sexta-feira, 21 de março de 2008

Os falsos heróis

De vez em quando não tenho nada a dizer. Aí, o remédio é ir publicando as matérias que fiz por aqui. A que vem abaixo é sobre um momento chave da história recente da Bolívia. A reivindicação da capitalidade pra Sucre, cidade onde estava instalada a Assembléia Constituinte – por causa dessa demanda, ela ficou travada por meses.

Pessoalmente, acho que a questão da capitalidade foi a melhor e mais eficiente cartada da direita boliviana nos últimos anos (possivelmente, a mais eficiente no mundo todo). Foi assim: Em agosto de 2006, a Constituinte foi instalada. A oposição tentou travá-la como pôde. Até que lançam essa de devolver os poderes Executivo e Legislativo para Sucre. Na mosca.

Quando os governistas decidiram excluir esse tema dos debates, em agosto do ano passado, começou a revolta na cidade, puxada por estudantes universitários de “esquerda”. O tema uniu, de uma forma impressionante, a cidade (inclusive as classes populares) contra o MAS, o Evo, La Paz e os indígenas. O regionalismo e o racismo chegaram ao extremo.

Quando o MAS resolve reinstalar a Assembléia de qualquer jeito, estoura uma rebelião em Sucre. Eu estava lá. Parecia guerra. Barricadas, pneus queimados, fumaça negra cobrindo quase todo o centro. Os manifestantes achavam realmente estar fazendo uma revolução. Não percebiam que estavam servindo como fantoches à oligarquia que sempre mandou no país.

Três pessoas morreram. Até hoje não se sabe direito quem os matou. A perícia deu que as balas não vieram de armas usadas pela polícia. Mas isso não importava. Na hora, para a imprensa e autoridades locais, o governo boliviano virou a pior das ditaduras, e os falecidos, mártires da democracia. Nojento.

Resultado. Tal conflito ainda incide decisivamente no impasse atual. A Constituição foi aprovada, mas é considerada ilegal pela oposição, por causa dos enfrentamentos em Sucre. Isso está servindo de excelente pretexto para a direita não aceitar as mudanças e pôr em dúvida o caráter democrático do governo Evo. Ao mesmo tempo, o regionalismo e o racismo acentuado inviabilizam a unidade do país.

É exatamente o que eles querem. Separar a Bolívia em duas. Do lado deles, a Bolívia rica em gás e latifúndio. Do outro lado... bem, que se fodam do outro lado.

Brasil de Fato, edição 247 (de 22 a 28 de novembro de 2007)

Uma cidade que quer o retorno do protagonismo

Há meses, não há sessão na Assembléia Constituinte devido aos protestos de Sucre pela capitalidade; para setores da esquerda, tema é jogada da direita

Igor Ojeda
de Sucre (Bolívia)

“Nenhum passo atrás!” grita a população de Sucre. E, de fato, nada indica que irão retroceder. O que exigem não é pouco: que a Cidade Branca, como é conhecida, pela cor de suas construções históricas, volte a ser a capital da Bolívia, condição que lhe escapou em uma guerra civil ocorrida há mais de cem anos.
No centro da cidade, para todos os lados para o qual se olha, percebe-se a reivindicação pelo retorno dos poderes Executivo e Legislativo. Pichações, adesivos nos carros, cartazes na janelas de farmácias, cafés, restaurantes, cabeleireiros, faixas em prédios de órgãos públicos, escolas, sindicatos... As mensagens, quase todas acompanhadas pela bandeira de Sucre, uma cruz vermelha sobre fundo branco, demonstram a firmeza de posição.
“Sucre resiste! Nenhum passo atrás”. “A sede, sim, se move!”. “Capitalidade plena para Sucre!”, Bolívia, sim, quer a capitalidade para Sucre”. Toda a cidade parece estar unida em torno de uma mesma luta.
Luta que é liderada, desde o início, por uma entidade criada especialmente para tal: o Comitê Interinstitucional de Chuquisaca, encabeçado pela prefeita de Sucre, Aydeé Nava, pelo presidente do Comitê Cívico de Chuquisaca, Jhon Cava e, sobretudo, por Jaime Barrón, seu presidente.

Desenvolvimento

Barrón, segundo o qual o Comitê Interinstitucional é composto pelas “65 instituições mais representativas” do departamento, é reitor da principal universidade local, a San Francisco Xavier, e grande líder da demanda sucrense pela capitalidade – as reuniões do Comitê, inclusive, ocorrem nas dependências da Universidade.
“É uma reivindicação para Sucre, que tem caráter nacional e não só regional, ao representar, a partir de sua aplicação, uma opção de desenvolvimento, superando assim a marginalização que esta cidade sofre por causa dos governos de turno”, diz. A favor de sua imagem frente aos habitantes de Chuquisaca, conta o fato de não ser político e não pertencer a nenhum partido.
Dessa forma, nega qualquer vinculação da demanda pelo retorno de Sucre à condição de capital boliviana com uma jogada da direita, principalmente da chamada media luna (meia lua, alusão ao formato geográfico conformado pelos departamentos oposicionistas de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija), para travar a Assembléia Contituinte – há mais de três meses, quando o tema foi excluído dos debates, o foro não sessiona, devido aos protestos na cidade.

Oposição

“Chuquisaca tem uma postura inteiramente regional e cívica. Nao se deve confundir o apoio da meia luna à democracia e à legalidade com um discurso interessado do governo. O presidente do Comitê é apolítico”. Da mesma maneira, nega relações diretas com o Comitê Cívico de Santa Cruz, hoje uma das principais forças da oposição.
No entanto, seu posicionamento em relação ao governo do MAS e de Evo Morales é clara. Diz que o Comitê é contra diversas medidas tomadas pelo atual presidente, e cita como exemplo uma das mais recentes: o corte dos recursos petrolíferos destinados aos departamentos para a ampliação do valor e da abrangência de uma bolsa concedida aos idosos do país. Hoje, o tema é uma das principais bandeiras da oposição boliviana, especialmente da media luna e dos departamentos de Cochabamba e Chuquisaca, exatamente os mesmos que defendem a capitalidade para Sucre.
Barrón está certo de que “todos os habitantes da cidade e do departamento” apóiam a demanda. A vigília realizada nos dias 13 e 14 em torno do Teatro Gran Mariscal é uma pequena amostra disso. Embora a grande maioria dos participantes fosse claramente de estudantes, podia-se ver de tudo. Crianças, idosos, brancos, indígenas, diferentes classes sociais.

Massacre

No dia seguinte, durante o auge da manifestação, cerca de 2 mil pessoas chegaram a se concentrar no local, inclusive participantes de marchas de trabalhadores do Mercado Central e de comerciantes, que também protestavam contra a alta do preço da cesta básica.
Seus argumentos centrais são dois. O primeiro diz que Sucre é a capital histórica da Bolívia, condição que lhe foi roubada por La Paz após a chamada Guerra Federal ocorrida no fim do século XIX. Conflito em que, frisam constantemente, os pacenhos massacraram os chuquisaquenhos.
O segundo é o da legalidade. “[A presidente da Constituinte], Silvia Lazarte, junto com La Paz, anulou este tema da Assembléia com a resolução de 15 de agosto. Isso é ilegal, e por isso estamos aqui, queremos legalidade. Queremos que respeitem o regulamento que aprovamos em sete meses, e esse regulamento diz que não se pode apagar nenhum tema sem debater”, protesta Sabina Cuellar Leaños, constituinte de Chuquisaca e que participava da vigília.
Detalhe: ela pertence ao Movimiento Al Socialismo (MAS), partido de Lazarte e do presidente Evo Morales, e já foi dirigente camponesa. Pela capitalidade, chegou a ficar oito dias em greve de fome. “A capital da República boliviana nasceu aqui em Chuquisaca. Os pacenhos levaram-na à força, matando os chuquisaquenhos. Estamos reclamando nossos direitos, não estamos pedindo esmola”, justifica. Intencionalmente ou não, o tema definitivamente exacerbou a rivalidade regional entre sucrenses e La Paz.

Palavras de ordem

A noite do dia 13 avança, e os manifestantes nao dão sinais de que pretendem ir embora. Os estudantes, o grosso da vigília, batucam, cantam, soltam rojões. Nas paredes do teatro, diversas faixas penduradas, principalmente das muitas faculdades da Universidad San Francisco Xavier. Quase todos os carros que passam buzinam em apoio.
As palavras de ordem são duras: “Isso é Sucre, porra! E Sucre se respeita, porra!”. Ou então: “Evo, Evo, cabrón. Você é um filho da puta, da puta mãe que te pariu!”. Ou ainda: “Vamos ver, vamos ver, quem leva a batuta. O povo unido? Ou o governo filho da puta?”.
Em nome desses estudantes, quem lidera a luta pela capitalidade e participa ativamente das reuniões do Comitê Interinstitucional é a Federação Universitária Local (FUL), principal entidade estudantil da universidade e, conseqüentemente, de Sucre e de Chuquisaca.
Seu executivo, Álvaro Ríos, também justifica a exigência da volta da condição de capital à cidade com o fato de La Paz ter massacrado os sucrenses na Guerra Federal do fim do século XIX. “Historicamente, legitimamente, a sede dos poderes tem que voltar novamente à sua cidade, que sempre foi Sucre”, diz.

“MAS reformista”

Segundo ele, a quase totalidade dos universitários apóia a demanda. Em relação à FUL, afirma que antes de tudo é uma organização progressista, formada por estudantes de diversas tendências de esquerda e vinculados à luta popular.
“Historicamente, a universidade pública na Bolívia, e a Universidad San Francisco Xavier sempre tem estado ligado aos setores populares. Há um pacto histórico com os camponeses e com a classe operária que se fez há muito tempo”, explica.
Mais: diz que os universitários consideram o MAS um movimento reformista. “É administrador da pobreza, continuador das políticas neoliberais, porque na realidade não solucionou o problema da pobreza, o de terras para os camponeses. Existem muitos problemas de fundo que ainda não foram resolvidos”.
Sobre a acusação de setores estudantis que apóiam a Constituinte de que a FUL é assessorada por jovens de Santa Cruz e paga para defender a capitalidade, Ríos é enfático: “Isso é totalmente falso”. E contra-ataca: “Existem alguns dirigentes de tendências trotskistas que estão contra tudo isso. Sempre foram caracterizados por serem muitos sectários, muito dogmáticos”, critica.

Para a esquerda, capitalidade é jogada da direita

de Sucre (Bolívia)

Ainda que a primeira impressão é de uma cidade totalmente unida em torno do tema da capitalidade, Sucre está longe da unanimidade. Muitas forças de esquerda e movimentos sociais locais ligados ao MAS, apesar de defenderem o retorno dos poderes Executivo e Legislativo, são veementes em priorizar o sucesso da Assembléia Constituinte.
Em menor número, é verdade, nota-se pela cidade pichações principalmente contra a Federação Universitária Local (FUL), principal movimento estudantil de Sucre e de Chuquisaca, que mergulhou de cabeça na briga pela capitalidade.
“FUL oportunista”. “FUL + Media Luna = Ditadura”, “FUL vendida!”, “Querem legalidade os que sempre agiram na ilegalidade”, lê-se nos muros da sede da entidade e seu entorno.
“Alguns grupos minoritários estão querendo manipular a população. Geram-se correntes de idéias, de pensamentos, para que toda a população siga nessa mesma linha”, alerta Ruben Darío Egüez Gonzalez, da juventude do MAS de Chuquisaca e do Coletivo Che Guevara, uma das 16 entidades de jovens que assinam um manifesto contra o Comitê Interinstitucional e a favor da Constituinte, divulgado no dia 12.

Divisão

Segundo ele, os interesses dos que encabeçam a luta pela capitalidade são políticos. “Pretendem ser prefeitos, governadores, deputados, senadores... Este é o afã deles. Buscar uma imagem política. Mas não estão vendo o interesse coletivo”, critica.
Nicolás Limón, segundo vice-presidente da direção departamental do MAS de Chuquisaca, denuncia que a reivindicação de que Sucre volte a ser capital da Bolívia está sendo usada pela direita. “Os grupos de poder, como a mal chamada media luna, têm utilizado o tema para fazer com que pacenhos e chuquisaquenhos, quéchuas e aymaras, os pobres, no fim das contas, se enfrentem”, lamenta.
“É uma jogada, porque as profundas mudanças que nosso governo está fazendo na Bolívia está fazendo doer até os ossos desses oligarcas que até agora tiveram o poder político, econômico, social. E as mudanças que se está fazendo, necessária e obrigatoriamente têm que se legalizar, que se legitimizar, com a Constituinte”, opina Damián Condori, dirigente da Federação Única de Trabalhadores de Povos Originários de Chuquisaca (FUTPOCH), que recentemente rompeu com o Comitê Interinstitucional: “Fizeram queda-de-braço com a gente estrategicamente para nos demobilizar”.

Chantagens

Em relação à Universidad San Francisco Xavier, que lidera as manifestações, Condori diz que seu reitor, Jaime Barrón, também presidente do Comitê, pertence à mesma oligarquia que não quer transformações para o país. Além disso, segundo ele, são comandados por Santa Cruz.
“A FUL é paga pelo Comitê Cívico de Santa Cruz, tem interesses políticos”, concorda Gonzalez, do Coletivo Che Guevara, que denuncia que há jovens infiltrados da União Juvenil Crucenista, também de Santa Cruz, de tendência fascista.
Além disso, revela que professores estão chantageando os estudantes com as notas. Nicolás Limón, do MAS, relata: “Há amigos, moradores da minha comunidade que estão na universidade que denunciam que se os alunos não vão às marchas, suas notas são abaixadas”.
Chatangem que também é feita, segundo Limón, contra os setores populares de Sucre. “Há companheiros que estão denunciando que existem ameaças por parte da prefeita nos bairros mais marginais. Se não apóiam a capitalidade, não vão fazer projetos, obras no local”, afirma.
Para o dirigente do MAS, mais além dos interesses regionais, deve estar a nova Constituição. Por isso, explica que as bases dos movimentos sociais estão dizendo que, se possível, a irão defender com sangue: “Porque, para nós, a Assembléia Constituinte é de vida ou morte”. (IO)

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ps: Hoje parto para uma semana de Buenos Aires com a Tati. Então, provavelmente (só provavelmente), fico uma semana sem postar.

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