terça-feira, 29 de abril de 2008

Ditaduras bolivianas


Devagar e quase nunca, vou postando as matérias mais interessantes que fiz por aqui. Abaixo, uma de dezembro, quando se anunciou que o governo iria abrir os arquivos das ditaduras bolivianas.

Mas, pelo jeito, até agora nada...

Brasil de Fato, edição 249 (de 6 a 12 de dezembro de 2007)

Bolívia decide abrir caixa-preta
de um passado sangrento do país

Governo de Evo Morales decretará abertura dos arquivos dos regimes militares que causaram mortes e desaparecimentos entre 1964 e 1982

Igor Ojeda
de La Paz (Bolívia)

Cristina Moreira Ramírez era ainda muito pequena quando seu pai, Roberto Moreira, sofreu as mais diversas torturas físicas e psicológicas durante a ditadura de Hugo Bánzer, um dos vários regimes militares pela qual passou a Bolívia entre 1964 e 1982.
Ela não lembra de nada, mas conta, com detalhes, o que aconteceu. “Em 1972, meu pai foi preso e sofreu os mais terríveis mal-tratos que um homem pode sofrer”. Cristina relata que, muito torturado, Roberto, militante do Exército de Libertação Nacional, resistiu por muito tempo, “mas chegou um momento que não pôde mais e perdeu a razão”.
A partir de então, o pai de Cristina começou a ser levado a todas as prisões e campos de concentração, para que os demais presos políticos vissem o que os esperava se não cooperassem com o regime e não delatassem seus companheiros.
“Meu pai, em muitas ocasiões, tentou tirar sua própria vida”, conta Cristina. Roberto chegou a ser internado num manicômio em Sucre, no centro-sul da Bolívia. Recuperado, foi exilado no México. No entanto, os distúrbios psicológicos voltaram e ele foi levado a um hospital psiquiátrico.
“O diagnóstico foi um quadro de lesões mentais incuráveis que impressionou os médicos conhecedores de sua tragédia, que era um testemunho patético da selvageria que os militares bolivianos praticavam, degradados à condição de torturadores a soldo do imperialismo”, relata Cristina. Depois de muitas recaídas, cada vez mais graves, Roberto morre em 31 de dezembro de 1973.

Esclarecimento e justiça

Mais de 30 anos depois, Cristina trabalha cotidianamente para pedir justiça e esclarecimento sobre os crimes cometidos contra seu pai. Tal busca pode ser finalmente recompensada a partir do dia 10, dia internacional dos direitos humanos, quando o governo boliviano deverá emitir um decreto supremo através do qual serão abertos os arquivos das ditaduras militares que deixaram centenas de mortos e desaparecidos desde 1964.
“Mais que tudo, os que os familiares de vítimas querem é que se aplique todo o rigor da lei aos que participaram desses atos impunes, e que isso seja um ressarcimento moral”, explica Cristina. Até hoje, poucos responsáveis pelos crimes cometidos durantes os regimes militares foram julgados ou processados. As exceções são o ex-ditador Luis García Meza (1980-1981) e seu ex-ministro do Interior, Luis Arce Gómez.
Ambos foram julgados pela Corte Suprema boliviana e sentenciados a 30 anos de prisão, sem direito a indulto, em abril de 1993.
Meza foi capturado em 1994, no Brasil, e cumpre sua pena. Já Gómez acabou de cumprir uma sentença nos EUA por narcotráfico e espera-se que seja extraditado para a Bolívia.
Loyola Guzmán, ativista da Associação de Familiares de Detidos, Desaparecidos e Mártires Pela Liberação Nacional (ASOFAMD) e hoje deputada constituinte pelo Movimiento Al Socialismo (MAS), diz que já está comprovado que as Forças Armadas da Bolívia, sobretudo o exército, concentrou documentação sobre a repressão.
“Porque eles foram os que, apoiados por, ou apoiando os civis, comandaram as ditaduras. Então, eles têm informação sobre todos os casos. E deveriam pôr-los à disposição para esclarecê-los”, explica a ativista, segundo a qual até hoje só foi possível averiguar o paradeiro de 14 militantes desaparecidos da ditadura de Hugo Bánzer (1971-1978) e um da ditadura de Luis García Meza.

Inimigo interno

De acordo com Loyola, como na Bolívia não existe nenhuma legislação que diga que certos documentos que atentem contra a integridade territorial ou a soberania do país devem ser abertos depois de um determinado número de anos, os militares utilizam esse argumento para censurar as informações.
Loyola Guzmán espera, com a abertura dos arquivos, obter esclarecimentos sobre o desaparecimento de seu companheiro, Félix Melgar Antelo, também do Exército de Libertação Nacional e detido em abril de 1972. “Disseram que o levaram ferido, mas nunca nos entregaram seus restos”, conta a ativista, ela própria prisioneira do regime de Hugo Bánzer, entre 1972 e 1974, e depois em 1975.
Tanto a ditadura que causou o desaparecimento de seu companheiro, como as demais, obedeceram, de acordo com Loyola, à aplicação da Doutrina da Segurança Nacional, “pela qual se considerava que o comunismo já não era o inimigo externo representado pela Europa Oriental, e sim o inimigo interno de cada país. Havia que liquidá-lo, evitar que houvesse novas revoluções cubanas”.
Tal necessidade significou a eliminação física de centenas de militantes de esquerda, a destruição de partidos, sindicatos e organizações populares. Tudo com o “apoio de civis, das forças que têm poder econômico e não queriam perdê-lo”, lembra a ativista da ASOFAMD.

Plano Condor

Mas a chamada Doutrina de Segurança Nacional não foi exclusividade da Bolívia. Quase todas as ditaduras dos países vizinhos na mesma época a tiveram como base.
E, justamente por compartilharem da mesma ideologia, os regimes militares de Brasil, Paraguai, Argentina, Uruguai, Chile e Bolívia elaboraram um sistema conjunto de troca de presos políticos e de informações sobre “subversivos”. Era o chamado Plano Condor.
“Está comprovado que o golpe de Bánzer teve apoio da ditadura brasileira, firmou pactos com a paraguaia etc. Há quase 40 bolivianos desaparecidos na Argentina, uns seis no Chile”, exemplifica Loyola. Segundo ela, na Argentina, a situação de nenhum desaparecido foi esclarecida até agora.

Oposição convoca Forças Armadas a agir contra Evo

Para analistas, respaldo da base militar a Evo e novo cenário internacional reduzem a possibilidade de triunfo de um golpe

de La Paz (Bolívia)

No dia 28 de novembro, Leopoldo Fernández, governador do departamento de Pando, um dos seis que fazem oposição ao governo de Evo Morales, deu um alerta: “Este povo não vai tolerar que as Forças Armadas (...) se prestem ao servilismo de acatar ordens de gente irresponsável na condução deste país”.
Em seguida, fez um chamado para que “os comandantes das forças baseadas em Pando possam dar um exemplo a esse alto mando militar, conformado por uns covardes traidores dessa pátria, e digam a eles qual é o papel que devem jogar as Forças Armadas”.
Poucos dias depois, foi a vez de outro governador opositor, o do departamento de Cochabamba, Manfred Reyes Villa. “As Forças Armadas, que sempre foram as guardiãs da democracia, têm que seguir sendo as guardiãs da soberania de nosso país e evitar a submissão do alto mando”, convocou.

Novo golpe?

Tais declarações comprovaram que os fantasmas das diversas ditaduras protagonizadas pelos militares entre 1964 e1982 estão muito longe de desaparecer. Num contexto de polarização acentuada que hoje vive a Bolívia, um novo golpe, embora ainda considerada improvável, não é descartada pela esquerda do país.
“Existem fissuras dentro das Forças Armadas. Há, pelo menos, diferenças de critério. É uma situação delicada, principalmente porque os setores da direita têm conexões com elas”, preocupa-se o sociólogo Eduardo Paz Rada.
Ele explica que durante décadas, a influência da embaixada dos EUA nesse setor é muito grande. No período, ajudou com armas e dinheiro, controlou as forças anti-drogas e criou seu aparato de inteligência.
Ainda de acordo com Rada, o governo de Evo Morales tem tentado reverter tal lógica e criar uma inteligência mais autônoma. “Mas isso ainda não foi desmontado totalmente. Ainda existe uma parte que sofre muito fortemente uma influência estadunidense, e, por outro lado, uma parte nacionalista que apóia o Evo”, analisa.

Respaldo a Evo

Loyola Guzmán, ativista da Associação de Familiares de Detidos, Desaparecidos e Mártires Pela Liberação Nacional (ASOFAMD), lembra que há um esforço hoje de vincular as Forças Armadas com a questão dos direitos humanos, mas pondera que “ainda é pouco tempo para dizer que são Forças Armadas a serviço do povo. Eu, pessoalmente, não confiaria muito nisso”.
No entanto, ela se mostra incrédula em relação à possibilidade real de um novo golpe depois de 25 anos de governos civis e eleitos. Na opinião da ativista, as condições internacionais, no século XXI, são outras. “Aparentemente, descartou-se as ditaduras como uma forma de impor políticas econômicas e sociais desfavoráveis à maioria”, analisa Loyola, que cita também o ambiente favorável de governos progressistas nos países vizinhos como um freio a qualquer intento golpista.
Já Eduardo Paz Rada, embora não descarte uma tentativa de golpe fomentada pelo oriente boliviano, bastião da oposição, acredita que no momento não há condições para que se obtenha sucesso nesse sentido.
Segundo ele, a cúpula das Forças Armadas, formada por representantes dos setores médios e acomodados, não pode atuar numa linha anti-governo, pois não obterá resposta da base. “A sub-oficialidade e os soldados rasos são de origem popular. E essa base é totalmente de respaldo a Evo”, afirma. (IO)

Os 18 anos de terror

1964: em novembro, René Barrientos e Alfredo Ovando Candía assumem como co-presidentes após um golpe de Estado.

1966: em eleições contestadas, René Barrientos é eleito presidente. Promulga uma nova Constituição, vigente até hoje.

1967: exército boliviano aniquila, com o apoio da CIA, a guerrilla de Che Guevara. Em 8 de outubro, revolucionário argentino é executado.

1969: em 27 de abril, Barrientos morre em um acidente de helicóptero. Seu vice, Luis Adolfo Siles, assume, mas é derrubado cinco meses depois em um golpe conduzido por Alfredo Ovando Candía.

1969-1970: Candía adota medidas como a abolição da lei de Segurança de Estado, a autorização para a reorganização sindical etc. Guerrilha guevarista de Teoponte é aniquilada pelo exército.

1970: em outubro, novo golpe militar derruba Candía. Poucos dias depois, um contragolpe militar de tendência esquerdista é levado a cabo, levando ao poder Juan José Torres.

1970-1971: o novo presidente, apoiado por organizações sociais, passa a adotar medidas populares, como nacionalização de empresas, reposição salarial aos mineiros, aumento do orçamento das universidades etc.

1971: em agosto, um golpe de Estado leva Hugo Bánzer ao poder. Juan José Torres seria assassinado em 1976, na Argentina, no marco do Plano Condor.

1971-1978: o governo de Bánzer torna ilegais os partidos políticos, suspende os direitos civis e envia tropas aos centros mineiros. Recebe apoio direto do Chile de Augusto Pinochet e dos EUA.

1978: Bánzer é derrotado por uma junta militar liderada por Juan Pereda Asbún. Em novembro, David Padilla, do setor nacionalista-popular do exército, derrota Asbún e no ano seguinte convoca eleições.

1979: o socialista Hernán Siles Suazo é eleito presidente. No entanto, como não obteve 50% dos votos, o Congresso, como previa a Constituição, designou de forma temporária Walter Guevara Arce para a presidência, até as eleições do ano seguinte. Em novembro, Alberto Natusch Busch assume o poder em outro golpe de Estado. A reação de organizações populares foi seguida de uma violenta repressão. Duas semanas depois, Busch devolve o poder ao Congresso, que elege interinamente Lídia Gueiler como presidente.

1980: em junho, Hernán Siles Suazo é eleito presidente mais uma vez. No mês seguinte, um novo golpe, liderado por Luis García Meza e com o apoio da ditadura argentina e da CIA, derruba Lídia Gueiler e impede a posse de Suazo.

1980-1981: o governo de Meza, ligado ao marcotráfico, resulta em centenas de mortos e desaparecidos. A exportação de cocaína dispara. Em agosto, Meza renuncia, dando lugar a Celso Torrelio Villa.

1982: em julho, um novo golpe leva Guido Vildoso Calderón à presidência, com a intenção de promover a transição à democracia. Uma greve de operários faz com que a ditadura devolva o poder ao Congresso, que decide validar as eleições de 1980, designando Hernán Siles Suazo como presidente.

Números das ditaduras na Bolívia*

René Barrientos (1964-1969):

5 desaparecidos

Alfredo Ovando Candía (1969-1970):

60 desaparecidos (todos da guerrilha guevarista de Teoponte (1970)

Hugo Bánzer (1971-1978):

85 mortos

77 desaparecidos

6 mortos e 35 desaparecidos na Argentina (Plano Condor)

8 mortos e desaparecidos no Chile (Plano Condor)

Alberto Natusch Busch (1979):

77 mortos

Luis García Meza (1980-1981):

94 mortos

26 desaparecidos

Total: 239 mortos e 168 desaparecidos

*Fonte: Associação de Familiares de Detidos, Desaparecidos e Mártires Pela Liberação Nacional (ASOFAMD)

2 comentários:

Anônimo disse...

Realmente gostaria de saber quanto é que você ganha para fazer propaganda do Evo.Interesante perceber como vc acha "genuinas"as manifestações de alegria do povo colla e não as do povo camba.

Igor Ojeda disse...

Se vc lesse o jornal para qual escrevo, saberia que nao faço propaganda do Evo, longe disso.

E se vc quisesse se inteirar minimamente sobre o assunto, saberia que não existe um povo camba.

E se um dia quiser sair do escudo "anônimo", me escreva (igor.ojeda@gmail.com) e poderemos conversar sobre isso.

Abraço,

Igor