domingo, 1 de junho de 2008

Evo, dois anos

Continuando a postagem de algumas matérias que fiz para a versão impressa do Brasil de Fato, abaixo, uma sobre os dois anos do governo do Evo:

Brasil de Fato, edição 253 (de 3 a 9 de janeiro de 2008)

Governo Evo Morales, reforma ou transformação da Bolívia?

Ao completar dois anos na presidência, gestão do ex-líder cocaleiro é posto em xeque por setores da esquerda

Igor Ojeda
de La Paz (Bolivia)

Era quase uma da tarde do dia 1º de maio de 2006 quando o presidente da Bolívia, Evo Morales, pôs em marcha sua medida de governo que mais repercutiu internacionalmente. O decreto supremo número 28701 determinou que as empresas petroleiras operando no país eram obrigadas a entregar à YPFB (a estatal boliviana) toda a produção. Estabeleceu, além disso, que 82% da renda obtida com os recursos iriam para o Estado, enquanto as transnacionais ficariam com 18%. Antes, ocorria o inverso.
A arrecadação, como era de se esperar, aumentou consideravelmente. Segundo dados do Ministério de Hidrocarbonetos e Energia, em 2005, o Estado recebeu 608 milhões de dólares. Em 2007, até o mês de março, o valor chegava a 1,57 bilhão de dólares. Atualmente, já se estima em mais de dois bilhões de dólares.
“O que o presidente fez até agora nenhum outro fez”, comemora Isaac Ávalos, secretário executivo da Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), referindo-se à nacionalização dos hidrocarbonetos, entre outros pontos que destaca nestes dois anos de governo.

Descontentamento

A recuperação dos recursos naturais era uma das principais promessas de Evo na campanha presidencial. O fato de ter anunciado o decreto 28701 apenas três meses depois de tomar posse animou os movimentos sociais do país, que passaram a vislumbrar anos de transformações sociais.
No entanto, pouco mais de 20 meses depois, nem todos que levaram Morales à presidência estão contentes com seu desempenho.
A questão dos hidrocarbonetos, por exemplo, é um dos temas polêmicos. “Em termos gerais, não houve nacionalização, pois as transnacionais continuam operando. A única coisa que se fez foi tirar delas umas notas a mais. No processo produtivo, não se tirou todas as atribuições e benefícios. Elas continuam tendo grandes dividendos”, explica o jornalista Julio Mamani, ligado à Central Operária Regional de El Alto (COR- El Alto).
El Alto, cidade muito pobre vizinha à La Paz, foi a protagonista da chamada Guerra do Gás, quando seus habitantes se levantaram contra um projeto do então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada de exportar gás natural para os EUA via um porto do Chile, país que “roubou” a saída para o mar da Bolívia.

Agenda de Outubro

Dos protestos, e dos mais de 60 mortos pela repressão do Estado, saiu a Agenda de Outubro. Segundo Mamani, em relação aos hidrocarbonetos, três pontos eram exigidos: nacionalização, recuperação e industrialização. Para ele, nenhum se cumpriu no governo Evo. “A nacionalização passava pela desarticulação completa das transnacionais. Na verdade, pela expulsão delas”. A volta dos investimentos da Petrobras é um dos fatores que mostram que isso não aconteceu.
Além disso, alguns setores da esquerda reclamam que os recursos adicionais arrecadados com os recursos estejam sendo usados em programas assistencialistas, e não na diversificação do aparato produtivo do país. Para piorar, não há gás para o mercado interno, e a Bolívia precisa, por exemplo, importar diesel.
Para Isaac Ávalos, da CSUTCB, isso ocorre porque o governo central fica com uma parte mínima do dinheiro dos hidrocarbonetos. Boa porcentagem vai para bolsas aos idosos e crianças, enquanto outro montante tem como destino os governos departamentais, as prefeituras e as universidades. Segundo Ávalos, nem os prefeitos, nem os governadores estão aplicando esse dinheiro no setor produtivo. “A única forma de ter mais recursos para o governo é modificando a lei do hidrocarboneto. Há a estimativa de se fazer isso no futuro”, diz.

Reformas

Para Gualberto Choque, ex-dirigente camponês e ligado ao Movimiento Al Socialismo (partido do presidente), a maneira como o governo vem lidando tanto com a questão dos hidrocarburos quanto as de outras áreas explica-se por seu próprio caráter: reformista. “Não há transformação, não há mudança”, lamenta.
Segundo ele, as principais medidas governamentais estão amparadas em políticas assistencialistas, “convertendo a sociedade boliviana em simples perseguidora de um resíduo que se chama esmola”.
Julio Mamani concorda: “Em termos gerais, é um governo burguês de poncho, não está atacando a estrutura”. Tanto para ele quanto para Choque, o grande erro de Evo Morales é fortalecer os movimentos indígenas, em vez de dar um conteúdo de classe às suas ações. “Ele anda divorciado das organizações sindicais, da Central Operária Boliviana (COB), do movimento minerador etc”, explica Mamani.
Segundo Gualberto Choque, isso ocorre porque “a burguesia burocrática se apoderou do governo Molares, e este está levando adiante o programa daquela”.

O Estado tenta retomar o controle da economia

Governo Evo vem tomando medidas contra a lógica econômica neoliberal vigente

de La Paz (Bolívia)

Assim como toda a América Latina, a Bolívia teve o sistema neoliberal como modelo econômico desde os meados da década de 1980. Nos seus dois anos de gestão, o governo do presidente Evo Morales tomou algumas medidas que confrontam os mandamentos do Consenso de Washington.
Em 1º de maio de 2006, eliminou a livre-contratação e decretou a chamada nacionalização dos hidrocarbonetos. Em fevereiro de 2007, nacionalizou a Empresa Metalúrgica Vinto, de propriedade da transnacional suíça Glencore.
Em agosto, o governo criou a Empresa de Apoio à Produção de Alimentos (Emapa) que, com um capital inicial de 24 milhões de dólares, nasceu com o objetivo de garantir a segurança e soberania alimentar. Em novembro, a nova estatal comprou carne do departamento de Beni e abasteceu os mercados de La Paz para abaixar os preços do produto.
Logo depois, o governo emitiu um decreto elevando as tarifas de importação de alguns alimentos e obrigando os exportadores a registrarem a venda de produtos básicos, como carne, arroz, milho e farinha.

Estrutura permanece

No entanto, para o jornalista Julio Mamani, apesar destas medidas, a estrutura econômica boliviana segue neoliberal. “Ainda que se defenda na nova Constituição o direito ao trabalho e a estabilidade laboral, isso não quer dizer que há uma ruptura definitiva”, diz, citando o exemplo da não-regulação dos preços (“coluna vertebral do sistema neoliberal”) pelo Estado.
Para o ex-dirigente camponês Gualberto Choque, a prova de que a economia segue a mesma é a vigência do decreto 21060, de 1985, que estabelece a livre importação e abre a economia ao capital privado internacional. “Ou seja, neoliberalismo puro”.
No entanto, o governo anunciou que, nos primeiros meses de 2008, apresentará uma série de leis e decretos para acabar com o tal norma. (IO)

Constituinte ressuscitou os partidos políticos tradicionais

Para analistas, processo da Assembléia fortaleceu "politiqueiros" e alijou protagonistas da Guerra do Gás

de La Paz (Bolívia)

Um dos principais pontos da chamada Agenda de Outubro, derivada da Guerra do Gás, em 2003, foi a realização de uma Assembléia Constituinte. O foro que refundaria o país também foi uma das maiores promessas de campanha de Evo Morales.
Em março de 2006, o Congresso aprovou a Lei de Convocatória e, em agosto, após eleições de seus membros, a Constituinte foi instalada. De acordo com o jornalista Julio Mamani, ligado à Central Operária Regional de El Alto (COR-El Alto), os protagonistas de outubro de 2003 entendiam que a assembléia deveria ser originária. “O que se falou é que esses setores tivessem representação para que fossem porta-vozes das mudanças que se queria gerar através da chamada Guerra do Gás. Mas, lamentavelmente, constituintes legítimos, representativos da cidade de El Alto não puderam chegar”, conta. Segundo ele, o MAS (partido de Evo), por decisão de sua cúpula levou militantes que “não tinham transcendência nem uma tradição de debate e perspectiva”.

Partidos fortalecidos

Outra crítica que alguns analistas fazem é que a Assembléia Constituinte ressuscitou os partidos políticos tradicionais, que estavam amplamente desgastados depois de 2003. “Os povos indígenas queriam a Constituinte para refundar o país, mas a partir de seus filhos, não de representantes politiqueiros”, lamenta o ex-líder camponês Gualberto Choque.
O resultado, para ele, não é positivo. A nova Constituição, aprovada no dia 9 de dezembro, em meio a muita turbulência com a direita, e celebrada pelos movimentos sociais, “não ataca os interesses dos latifundiários, dos burgueses burocratas. Só muda algumas coisinhas”, diz. Tanto Mamani quanto Choque chamam a atenção para o fato da Carta Magna aprovada não tocar na propriedade privada e respeitar as transnacionais.
O texto constitucional, que ainda irá a referendo, estabelece, entre outras coisas, a Bolívia como um Estado Plurinacional, cujo modelo econômico é conformado pelas economias estatal, comunitária e privada. Determina também que os recursos naturais são de “propriedade e domínio social, direto, indivisível e imprescritível do povo boliviano, sendo o Estado o proprietário de toda a produção e o único facultado para sua comercialização”. Já a extensão máxima de terras que uma pessoa pode possuir, cinco mil ou dez mil hectares, irá a referendo dirimidor. (IO)

A Reforma agrária ainda é lenta

Além do pouco apoio à produção camponesa, estrutura latifundiária ainda continua intocada

Na Bolívia, dados do Ministério de Desenvolvimento Rural, Agropecuário e Meio Ambiente mostram que as pequenas propriedades (de 0 a 50 hectares, 52,7% do total dos imóveis) ocupam apenas 0,46% das terras do país. Já as grandes propriedades, que possuem acima de dois mil hectares (representando 13,9% do total), ocupam 80% das terras.
Por esta razão, uma das principais promessas do presidente Evo Morales é a chamada “Revolução Agrária”: acabar com o latifúndio e desenvolver a produção no campo.
De acordo com o governo, foram recuperadas, até junho de 2007, cinco milhões de hectares de terras obtidas de maneira ilegal. A expectativa é que se chegue, até o final da gestão, a oito milhões de hectares. Até agosto deste ano, 5,5 milhões de hectares de terra foram titulados, e 500 mil foram distribuídos.
A Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB) estima que cerca de 70 milhões de hectares estão nas mãos de latifundiários e que existem no país mais ou menos um milhão de sem-terra.

Ritmo lento

Por isso, para alguns setores, a Reforma Agrária caminha num ritmo lento. No entanto, para Isaac Ávalos, secretário-executivo da CSUTCB, a lei 3545, que entrará em vigor no ano que vem, recuperará mais de 15 milhões de hectares. “Toda latifúndio que não cumpre a função social irá para o Estado. Iremos recuperar muita terra e distribuí-la aos companheiros que não têm”, afirma.
Ele reconhece que até agora, se fez muito pouco em relação à distribuição de terras, crédito, apoio técnico e sementes. “Há um apoio grande com maquinaria, com dois ou três tratores por município. É paliativo, não é solução. Mas, temos pendente com o presidente uma reunião grande a nível nacional de todas as organizações”, explica.
O jornalista Julio Mamani é pessimista: “A Revolução Agrária não se trata apenas de entregar tratores, e sim de fazer um planejamento, do que produzir, qual o mercado etc. Não há um plano de grande envergadura nesse sentido”. (IO)

Alguns avanços do governo Evo, segundo seus apoiadores

Alfabetização: no dia 17, a ministra de Educação e Culturas, Magdalena Cajías, anunciou que, em 21 meses de campanha – inspirada no método cubano “Yo, sí puedo” –, 55% da população iletrada da Bolívia foi alfabetizada, enquanto 18% estão em aulas.

Saúde: de acordo com o Ministério de Saúde e Esportes, 1742 profissionais cubanos da saúde estão no país. Até 18 de dezembro de 2006, foram atendidos 2.785.999 pacientes, 52.838 pessoas haviam sido operadas da vista e 3.541 vidas haviam sido salvas.

Renda Dignidade: a partir de janeiro de 2008, os idosos acima de 60 anos que não têm direito à aposentadoria receberão cerca de 310 dólares por ano, enquanto os aposentados ganharão aproximadamente 235 dólares. Antes, somente os aposentados acima de 65 anos tinham direito a 235 dólares.

Bônus Juancito Pinto: pelo segundo ano consecutivo, entregou cerca de 26 dólares às crianças do primário.

Combate à corrupção: Em 2005, a Bolívia era o 117º país mais corrupto do mundo, segundo a organização Transparência Internacional. Em 2007, ocupa o 105º. O governo espera a aprovação no Congresso de uma lei anticorrupção que prevê mais fiscalização e penas.

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