domingo, 15 de junho de 2008

Aos trancos e barrancos

Abaixo, mais uma avaliação sobre os dois anos do governo Evo. Dessa vez, uma entrevista com o sociólogo que me hospedou em sua casa nas minhas primeiras duas semanas em La Paz:

Brasil de Fato, edição 254 (de 10 a 16 de janeiro de 2008)

Processo revolucionário em xeque

Para sociólogo, Evo Morales e o MAS pecam por não possuírem um projeto político-econômico para o país

Igor Ojeda
de La Paz (Bolívia)

Após um começo animador, o governo de Evo Morales, eleito em dezembro de 2005, estancou. Em alguns pontos, até retrocedeu. A avaliação é do sociólogo boliviano Eduardo Paz Rada, que atribui tal situação à falta de um projeto político-econômico de transformações do país por parte do MAS e do presidente. Segundo ele, os impulsos iniciais, como a nacionalização dos hidrocarbonetos e o pontapé na reforma agrária, foram seguidos por constantes erros estratégicos – como o não fortalecimento da capacidade produtiva boliviana – e concessões às oligarquias.

QUEM É

Docente da Universidad Mayor de San Andres (UMSA), de La Paz, o sociólogo Eduardo Paz Rada foi deputado federal, entre 1997 e 2002, pelo partido Conciencia de Patria (Condepa). Escreve para as revistas América XXI (Argentina-Venezuela) e Patria Grande (Bolívia).

Brasil de Fato – Dois anos de Evo Morales. Quais foram seus principais acertos e erros?

Eduardo Paz Rada – No processo anterior a 2005, e no momento que Evo Morales ganhou as eleições com 54%, vivia-se no país uma efervescência popular, praticamente um estado de revolução muito profundo. Isso se refletiu na primeira parte do primeiro ano do governo dele. Mas, paulatinamente, foi-se observando que, em termos de respaldo social, de 2005 a 2007, há uma queda, que pode ser resultado de um desgaste normal do poder. Mas acredito que não seja apenas isso. Tem a ver também com as limitações para se implementar um projeto completo e integral de mudanças. A falta desse projeto tem feito com que muitos setores percam confiança e deixem de apoiar a Evo Morales. O que não quer dizer que os setores sociais mais fortes não sigam apoiando-o. Mas, sua gestão começa a gerar muitas dúvidas porque, embora nos campos social, político e cultural se tenha dado grandes passos, hoje eles estão estancados. No campo econômico, houve um grande impulso nos primeiros meses, mas os marcos neoliberais seguem vigentes. Isso é o preocupante.

Você disse que o modelo neoliberal segue vigente. Por que não foram feitas mudanças mais profundas nesse sentido?

O primeiro impulso foi muito bom, porque a idéia central era que a economia nacional passasse a ser controlada pelo Estado boliviano. Daí que a nacionalização dos hidrocarbonetos foi uma decisão histórica, fundamental, e que implicou em reações muito poderosas das transnacionais e dos governos que as apóiam, como Espanha, Estados Unidos, França e Brasil. Mas, paulatinamente, esse processo foi se debilitando. Novos contratos com as mesmas transnacionais foram assinados, claro que em melhores condições para a Bolívia, mas que ainda são muito vantajosas para as empresas. Antes da nacionalização, a distribuição da renda petroleira era de 18% para o Estado boliviano, e 82% para as transnacionais. Com a nacionalização de maio de 2006, isso se inverteu: 18% para as petroleiras, como pagamento a seus serviços, e 82% ao Estado. Com os contratos de outubro de 2006, essa relação mudou. Cerca de 50% vai para as petroleiras, e 50% para o Estado boliviano. Geralmente, menos para o Estado e mais para as petroleiras, porque elas têm uma série de vantagens para evitar o pagamento de impostos. E agora, o que se está observando claramente é que a Petrobras vai começar a ter novamente o controle fundamental do negócio petroleiro na Bolívia. Vai receber novos contratos, novos campos. E a PDVSA [estatal venezuelana de petróleo], que havia a possibilidade de se aliar com a estatal boliviana, praticamente está perdendo terreno. Além disso, confiava-se que, com a nacionalização, a YPFB [estatal boliviana] passasse a ter uma grande força. Mas isso não aconteceu e ela continua tão fraca como antes.
Além disso, as empresas que haviam sido, entre aspas, capitalizadas, continuam igual. As maiorias das ações não foram recuperadas pelo Estado boliviano. Todo o sistema de gasodutos segue nas mãos de uma empresa holandesa-estadunidense.
No campo bancário, as grandes corporações seguem com as mesmas condições, tendo os mesmos negócios de sempre, e grandes vantagens. Então, esse primeiro impulso foi freado, inclusive retrocedeu nesse momento.

Mas, o que falta para que se dê um outro impulso nesse sentido?

A falta de um projeto político-econômico do governo. Um exemplo. Os excedentes que estão entrando com os maiores ingressos por causa do gás estão se convertendo em bônus de beneficência. Para as crianças que estudam, para os aposentados. E é muito dinheiro. Pelo menos grande parte desse recurso deveria ser utilizada em projetos produtivos, em potencializar a YPFB, as empresas públicas, em financiamentos para empresas agrícolas, para cooperativas, em uma série de campos que permitissem o desenvolvimento nacional. Isso não foi e não está sendo feito. Outro exemplo. Quem faz empréstimos para se construir rodovias, ou para projetos do Estado? A Corporação Andina de Fomento (CAF). Empresta com juros de 7%. E o Banco Central faz empréstimos a empresas estrangeiras a 3%. Então, é uma loucura. Quando esse dinheiro deveria ser investido aqui. A explicação é que a equipe econômica que rodeia Evo é, em termos de concepção, formada pelos mesmos que estiveram nos 15 anos anteriores.

Como você avalia, nesses dois anos, a relação de Evo Morales com a oligarquia?

Tem sido uma relação muito conflituosa, de crise permanente. Era o que deveria ocorrer, devido à pressão social e ao ponto de vista de Evo e do MAS de ir adiante com a reforma agrária. Pelo menos 50% das terras produtivas (100 milhões de hectares) estão nas mãos de não mais que 500 famílias. E, com outras medidas, iria provocar a reação de outros setores oligárquicos, como as petroleiras, os bancos etc.
Mas, nessa disputa, quem foi ganhando terreno foi a oligarquia e seus interesses, em retrocesso do projeto de Evo Morales. E por que isso ocorreu? Desde o começo, nos primeiros seis meses de gestão, Evo fez muitas concessões aos governadores departamentais. Porque nenhuma lei respalda a autonomia dos governadores. A lei na Bolívia diz que eles são nomeados pelo presidente e dependem do ministro da Presidência. Mas, como foram eleitos por voto direto, avalizados por Evo Morales, pouco a pouco eles foram alçando seus próprios vôos. E Evo não os freou de cara. Deu muito poderes a eles. Converteu-os em interlocutores quando deveriam ser subalternos do governo central. Além disso, eles têm o apoio da embaixada dos EUA, da embaixada do Brasil, dos senadores, que são em sua maioria da oligarquia, das petroleiras e dos latifundiários. O governo ainda tem força, mas já não a que tinha há um ano e meio.

Uma das grandes promessas do Evo foi a chamada revolução agrária. Como está esse aspecto, já que também é um instrumento para debilitar a força dessas oligarquias?

Provavelmente, esse tem sido, em termos da correlação de forças políticas internas, o tema chave. Porque, as petroleiras, as mineradoras, os bancos, estão mais ligados ao exterior. O que não quer dizer que os latifundiários não estejam ligados a capitais brasileiros, paraguaios, estadunidenses. Mas a propriedade das terras está, majoritariamente, em mãos nacionais. E o projeto de Evo Morales era fazer uma nova reforma agrária. E começou a levá-lo adiante com muita força, enfrentando aos proprietários de terra. No entanto, o ministro de Desenvolvimento Rural, Hugo Salvatierra, entrou em um problema de ter feito tráfico de alguns tratores e foi substituído. O vice-ministro de terras, Alejandro Almaraz, que estava levando adiante esse processo, entrou em um choque muito duro com os latifundiários. Começaram a atacá-lo com muita força. E, num momento, recebeu muito apoio do governo. Mas, pouco a pouco, ele mesmo passou a sentir cada vez menos apoio do entorno do governo, e a situação está quase paralisada. A idéia era, primeiro, fazer um inventário das terras estatais e começar a distribuí-las. Isso está bastante atrasado. O segundo passo era recuperar as terras improdutivas e redistribuí-las. Aqui foi a luta mais forte. E hoje está numa situação de quase estancamento. Porque os setores latifundiários estão armados, têm pequenos exércitos, que amedrontam aos camponeses que estavam ocupando terras. E o governo, que estava tentando avançar nesse aspecto, o faz com muita lentidão. O projeto segue, está presente. Mas está muito ligado ao contexto. Os temas da Constituinte, de Sucre, da autonomia, estão sendo argumentos para evitar que o poder dos latifundiários seja afetado.

Um dos instrumentos mais fortes das oligarquias são os meios de comunicação. O que o governo de Evo tem feito para enfrentar esse poder?

Grandes passos foram dados. Em nenhum momento, Evo Morales tem conciliado com esses setores proprietários que foram e continuam sendo seus inimigos. Ele começou a implementar as rádios comunitárias, com um importante apoio econômico e técnico da Venezuela. Sem dúvida, aqui há um avanço, mas não o suficiente, sobretudo nas cidades, para se contrapor ao peso dos meios privados. Nesse momento, apesar dessa disputa, os meios privados estão muito fortes. Porque se fortalecem através do apoio dos setores econômicos. E, se assistimos os canais de televisão, vemos que todos têm publicidade estatal. E com isso vivem. Então, há essa grande contradição. O governo dá dinheiro para que os ataquem.

Como é a relação entre Evo e o MAS no governo? Até que ponto o Evo toma decisões mais autônomas, ou o MAS tem um papel mais forte?

O MAS nunca foi uma organização política no sentido clássico. Não tem estrutura partidária. É mais uma espécie de federação de movimentos sociais muito heterogêneos. E entre seus dirigentes, alguns tem cargos como parlamentares, constituintes, ministros, mas não obedecem a uma estrutura, e sim a formas sindicais. Como existe uma organização muito fraca, o papel de Evo Morales é sempre muito poderoso. Eu poderia dizer que o Evo Morales concentra o MAS e o governo. O que, sim, existe institucionalmente, é o fato de que muitos dos integrantes da sua equipe de governo, do meu ponto de vista, estejam comprometidos com o projeto neoliberal e muitos tenham feito do governo simplesmente um espaço de administração de poder e não uma instância para transformar o país.

Quais são os desafios de Evo para o próximo ano?

Ele tem que ir por dois caminhos. O primeiro, político, está relacionado com o referendo revocatório. Mas a aposta nele não tem que ser somente “que o Evo se vá”, mas também quais projetos há por trás de uns e outros, quais bandeiras, qual país querem construir. E não cometer os erros desses dois anos. Ou seja, que as pessoas participem, que votem com a convicção de que é para mudar profundamente, como era em 2005.
Por outro lado, não esperar o referendo revocatório para deixar de fazer política e de governar. O governo teria que impulsionar novamente o projeto original da nacionalização dos hidrocarbonetos, de fortalecimento da capacidade produtiva do país.

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