quinta-feira, 8 de maio de 2008

O jornalismo escroto, a luta de classes e o racismo

Impagável era ver a cara dos jornalistas de TV bolivianos quando, depois de perguntado o que eu tinha achado do referendo de Santa Cruz, eu respondia questionando o processo.

O sorriso virava carranca, surpresa. Insistiam perguntando se a vitória do “sim” não teria sido contundente e, diante da negativa, terminavam a entrevista, agradecendo com um sorriso forçado. Aconteceu umas três ou quatro vezes.

Não que eu seja um pop star do jornalismo. É que, não sei por que cargas d’água, os repórteres locais adoravam entrevistar os jornalistas estrangeiros que estavam na sala de imprensa do referendo. Todos os dias.

Centenas de jornalistas apareceram para cobrir a consulta. Mas, mesmo assim, com honrosas exceções, faltou jornalismo. Para ser justo, não acompanhei a cobertura internacional, apenas a boliviana e a brasileira. Mas sei de um argentino que a Sue, amiga brasileira, escutou comentar para um meio local. Ele dizia que o objetivo dos que propunham o referendo era o de desburocratizar o Estado. Ai, ai, ai, fala sério.

No caso da imprensa boliviana, deu vergonha de meus colegas. Os canais de TV todos saudavam, seja nos telejornais regulares, seja nos programas especiais, a “festa democrática” e o “momento histórico” (no bom sentido) em Santa Cruz. Quase todos os repórteres e âncoras tinham orgasmos múltiplos ao noticiarem algum aspecto do referendo.

Como sempre, desconsideravam que o governo boliviano, os movimentos sociais, a OEA, a União Européia, os países vizinhos etc não reconheciam a legitimidade da consulta. Ignoravam também as muitas críticas sobre o estatuto autonômico, que foi redigido por um grupinho da elite cruceña e contém pontos claramente racistas e separatistas.

Faltou jornalismo também, e muito, ao se comemorar efusivamente os resultados parciais da apuração. “O ‘sim’ ganhou com 85%!”, gritavam, a la Galvão Bueno. “Vitória arrasadora da autonomia!”. A informação era a de que praticamente todos da região aprovavam o estatuto.

Os “analistas” chamados para comentar os resultados babavam de alegria: “Agora seria interessante ver o que vai dizer o governo, diante de sua derrota retumbante”, disse um deles.

Mas, de acordo com os próprios dados oficiais, a abstenção tinha sido de 35%, o “não” tinha levado 15% dos votos, enquanto os votos brancos e nulos somavam algo em torno de 3%. Ou seja, mais da metade dos eleitores cruceños não tinha votado pelo “sim”.

Alguma análise sobre o que isso significa? Não, claro que não.

Quanto aos meios brasileiros, as matérias que vi foram algo um tanto burocráticas. Mas o que eu notei é que alguns repórteres (que estavam em Santa Cruz) relatavam que os enfrentamentos que aconteceram no dia da votação eram entre “autonomistas” e “simpatizantes de Evo Morales”.

Esse tipo de afirmação é uma redução muito grande da complexidade da questão. Em primeiro lugar, ao colocarem um dos lados como “autonomistas”, automaticamente transformam o outro em anti-autonomista. Mas os que tentavam impedir o referendo também eram autonomistas. O que se questionava era o conteúdo do estatuto e a forma como ele foi feito.

Em segundo lugar, nem todos são simpatizantes do Evo. Muitos estão descontentes com o governo. Ou seja, falar que são apoiadores do Evo é dizer que estavam tentando impedir o referendo apenas por solidariedade a ele. É reduzir a questão a uma briga político-eleitoral.

Mas, mais do que tudo, é negar a luta de classes. Não me venha dizer que isso já não existe mais, que é anacrônico, que é discurso dos esquerdistas dinossauros. Enquanto houver no mundo a exploração do homem pelo homem, a luta de classes seguirá existindo.

Negá-la é corroborar a tese do fim da história, é determinar o triunfo do capitalismo sobre qualquer outro modelo de sociedade alternativo, é defender a resignação dos explorados com sua condição.

Quem esteve em Santa Cruz nos últimos dias viu que a luta de classes estava muito latente. No ato de encerramento da campanha pelo “sim”, havia de tudo, é verdade, inclusive indígenas pobres. Mas se via muitas pessoas de classe média e alta, dondocas com o cabelo pintado de loiro, usando roupas caras. No centro da cidade, diversos carrões circulavam com a bandeira pró-autonomia.

Agora, no Plan 3000, a história era completamente diferente. É um dos bairros mais pobres de Santa Cruz. Lixo no chão, ruas de terra, casas e praças deterioradas. E isso a apenas 15 minutos da praça principal de Santa Cruz. Quase 100% de seus moradores são indígenas, migrantes ou filhos de migrantes do ocidente. São os chamados collas.

Ao chegarmos lá no dia da votação, deu para notar na hora o clima pesado. Eles estavam concentrados numa praça, queimando urnas e cédulas que pegavam nos colégios. Tinham montado uma caixa de som com um microfone, usados para os discursos de qualquer um que se habilitasse.

Foi descermos do táxi para sentirmos quase todos os olhos em cima de nós. Paus nas mãos, e olhares desconfiados em direção aos brancos relativamente bem vestidos. A raiva nos olhos e nos discursos era algo impressionante. Tinham um inimigo muito bem definido: a oligarquia de Santa Cruz.

Mas a imprensa era respeitada. Queriam mostrar a verdade deles para o mundo. Por algumas vezes, ficamos no meio do fogo cruzado de paus e pedras, mas o grupo que avançava passava reto por nós, seja o dos pró-referendo, seja o dos seus opositores.

De volta a La Paz, infelizmente lembro de Santa Cruz como uma cidade racista. Certamente não deve ser todo mundo. De repente nem é a maior parte. Mas ver as pichações nos muros choca. Era “collas filhos da puta”, “morram collas” ou “depois do 4 de maio, os collas vão embora”.

Nas mobilizações pró-estatuto, vira e mexe tocava uma música alegre que começava com um “Camba, que viva o camba!”. Pois é disso que os cruceños estão se chamando agora. Inventaram esse termo, o camba. Não existe. Não é uma etnia, não é um povo... Na verdade, era como, antigamente, os indígenas eram chamados pejorativamente na região.

De uns tempos pra cá, as elites se apropriaram do termo, como contraposição aos collas. E, certamente, começaram a usá-lo para unir toda uma população em torno de uma identidade comum. Criaram a “Nação Camba”, uma espécie de novo país que excluiria a Bolívia andina. Vi muita gente com uma camiseta que tinha o mapa da nova nação desenhado.

Por isso que o clima pró-estatuto em Santa Cruz parecia o do Brasil em Copa do Mundo, quando todos se deixam levar pelo ufanismo (lembrava o clima pró-capitalidade em Sucre). O discurso da elite cruceña faz muitos acreditarem que a pobreza é culpa do centralismo, que todos os problemas são culpa dos collas. Daí se explica a “cooptação” da classe baixa.

Pois é, o discurso... muitas vezes se dá pouca importância pra ele, mas a retórica é fundamental. No caso de Santa Cruz, além do apelo ao regionalismo e ao racismo, as autoridades lançam mão de um termo muito caro a nós latino-americanos, que temos na memória recente ditaduras sanguinárias: a democracia.

Mas qual democracia? Claro, aquela que garante a liberdade dos grandes grupos econômicos e oferece ao resto a “grande possibilidade” de votar a cada quatro anos. A mesma evocada pela mídia para condenar Cuba, Venezuela e... agora, a Bolívia.

ps: Aqui, parte da matéria que fiz pra versão impressa do Brasil de Fato.

Um comentário:

Anônimo disse...

Igor

Relato emocionante e emocionado de sua visão dos acontecimentos, continue a nos trazer suas impressões, é o único modo de sabermos as reais intenções dos "democratas" bolivianos. Aqui também o PFL se chama agora DEM, seria cômico se não fosse trágico.