segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O jornalismo... cadê?

Se houve algo que fiz questão de fazer durante os últimos acontecimentos por aqui, foi acompanhar a cobertura da grande imprensa. Não preciso dizer que não me surpreendi.

A mídia, seja boliviana, seja brasileira, continua fazendo seu papel sujo. Sei que não tem jeito, que eles não vão mudar. Afinal, defendem seus interesses. Tudo bem, mas não podemos deixar barato.

(Só para esclarecer: não tenho nada contra o fato dos meios defenderem seus interesses ou os de determinados setores da sociedade. Agora, mentir, manipular e distorcer para atingir tal objetivo é que não dá para aceitar)

Pois bem. Hoje, 22 de setembro, dez dias depois do já comprovado massacre de camponeses em Pando, algumas matérias ainda falam em “confronto entre opositores e apoiadores de Evo”.

O boliviano La Razón, do grupo El País, da Espanha, chegou a falar, no dia 19, que havia 15 mortos, "de ambos os lados". Tecnicamente, não está errado, já que tem um morto da oposição. Mas é absurda e evidente a manipulação e a má-fé.

Dando uma olhada nas matérias do Jornal Nacional no site da Globo, a mesma coisa. A impressão é que o governo Evo está implantando uma ditadura, principalmente depois da declaração de estado de sítio em Pando. Não falam, no entanto, que a medida parou com o massacre de camponeses.

Numa matéria do dia 11, o repórter global, que estava em Santa Cruz, chega a ter a cara de pau de falar que a Bolívia estava “dividida”. Claro, só se esqueceu de dizer que a “divisão” é de dois terços para um lado, um terço para o outro.

Em outra matéria, o repórter diz que a oposição “ocupou” as instituições públicas. Já entendi: o MST invade, a oligarquia ocupa.

E, para dar um ar de legitimidade aos protestos violentos da oposição, o Jornal Nacional, assim como os outros grandes meios, chamam os manifestantes de “autonomistas”. Para explicar o que está acontecendo para seus telespectadores (segundo o William Bonner, meros Homer Simpsons), os repórteres da Globo dizem que os oposicionistas só “querem mais autonomia”. Como se tudo que eles desejassem, coitados, fosse apenas um pouco mais de liberdade para administrar suas próprias regiões.

Uma matéria de um veículo de comunicação minimamente sério contextualizaria a realidade boliviana e as demandas “autonomistas”. Falaria que, na meia-lua (Santa Cruz, Beni, Tarija e Pando), a concentração de terras é pornográfica (tudo bem, vai, não precisa usar exatamente esse termo).

Diria que existem centenas de milhares de camponeses pobres e/ou sem terra. Contaria que nas fazendas da região, o trabalho escravo de indígenas é assombrosamente comum. Explicaria, finalmente, que um dos principais pontos – senão o principal – das reivindicações dos “autonomistas” é, vejam que curioso, o controle sobre a distribuição de terras.

Além disso, chamar um lado de “autonomista” automaticamente qualifica o outro lado como “não-autonomista”. E isso não é verdade. A autonomia é uma bandeira histórica da esquerda e dos movimentos sociais do país, pois o Estado boliviano é, de fato, exageradamente centralista.

Mas quem mantinha essa realidade era justamente a oligarquia que estava no poder. Depois que o Evo ganhou as eleições, a direita se reposicionou nas regiões e roubou a bandeira autonômica, mas de uma forma totalmente deturpada. E é contra essa deturpação que os movimentos pró-Evo lutam.

Mas, continuando a listagem das manipulações/deturpações/equívocos da imprensa, uma curiosidade um tanto, digamos, patética. Vejam abaixo os primeiros seis parágrafos de duas matérias do dia 19. A primeira do IG, a segunda da Folha Online:

Morales pede que Brasil expulse bolivianos envolvidos em confrontos

19/09 - 15:28 - Redação com agências internacionais

LA PAZ - O governo da Bolívia, liderado pelo presidente Evo Morales, pediu nesta sexta-feira ao Brasil que expulse os cidadãos bolivianos envolvidos nos confrontos ocorridos em Pando e que se refugiaram nas cidades fronteiriças do Acre.

Depois dos violentos distúrbios que, segundo dados oficiais, deixaram pelo menos 17 mortos e mais de 100 desaparecidos, dezenas de pessoas se refugiaram nos municípios de Brasiléia e Epitaciolândia, no Acre.

O ministro de Governo boliviano, Alfredo Rada, disse à rádio "Red Erbol" que entrou em contato com as autoridades brasileiras para pedir a expulsão "de gente considerada criminosa e que participou de forma direta no massacre em 11 de setembro".

"Entramos em contato com autoridades brasileiras para indicar que (os bolivianos em questão) são delinqüentes sobre os quais há acusações muito graves e, portanto, não corresponderia dar-lhes asilo. Em todo caso, uma vez identificados, é preciso proceder a expulsão do Brasil à Bolívia", disse o ministro.

Rada informou que o governo está trabalhando para conseguir a expulsão dos refugiados, e disse ter informação de que a presidente do Comitê Cívico de Pando, Ana Melena de Suzuki, está refugiada no Brasil, apesar de não estar confirmado que tenha pedido asilo político.

Segundo a "Red Erbol", que cita organizações sociais de Pando, o governo brasileiro negou nos últimos dias um pedido de asilo político do governador de Pando, Leopoldo Fernández.

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19/09/2008 - 16h30

Bolívia pede que Brasil expulse bolivianos envolvidos em confrontos

da Folha Online

O governo da Bolívia pediu hoje ao Brasil que expulse os cidadãos bolivianos envolvidos nos confrontos ocorridos no departamento (Estado) de Pando e que se refugiaram nas cidades fronteiriças do Acre.

Depois dos violentos distúrbios que, segundo dados oficiais, deixaram pelo menos 17 mortos e mais de cem desaparecidos, centenas de bolivianos se refugiaram nos municípios de Brasiléia e Epitaciolândia, no Acre.

O ministro de Governo (Interior) boliviano, Alfredo Rada, disse à rádio Red Erbol que entrou em contato com as autoridades brasileiras para pedir a expulsão "de gente considerada criminosa e que participou de forma direta no massacre em 11 de setembro".

"Entramos em contato com autoridades brasileiras para indicar que (os bolivianos em questão) são delinqüentes sobre os quais há acusações muito graves e, portanto, não corresponderia dar-lhes asilo. Em todo caso, uma vez identificados, é preciso proceder a expulsão do Brasil à Bolívia", disse o ministro.

Rada afirmou que o governo está trabalhando para conseguir a expulsão dos refugiados, e disse ter informação de que a presidente do Comitê Cívico de Pando, Ana Melena de Suzuki, está refugiada no Brasil, apesar de não estar confirmado que tenha pedido asilo político.

Segundo a Red Erbol, que cita organizações sociais de Pando, o governo brasileiro negou nos últimos dias um pedido de asilo político do governador de Pando, Leopoldo Fernández.

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Incrível, não? Os dois textos são 99% idênticos. Isso se explica pela realidade atual do jornalismo não só brasileiro, mas mundial. Quase todas as informações do mundo todo são apuradas por meia dúzia de agências internacionais, e o restante dos meios as reproduzem indiscriminadamente, o que faz com que palavras como “confrontos” e “distúrbios” para descrever o massacre de camponeses em Pando sejam copiadas pela Folha Online e o IG, sem nenhuma contestação.

Hoje, não sobra espaço para a diversidade de pontos de vista que existe no planeta, a não ser pelos blogs e sites de imprensa alternativa que, espero, continuem a crescer.

Mas o caso em questão chega a ser pior. Se observarmos bem os textos, fica difícil de acreditar que os dois meios, separadamente, traduziram a mesma matéria de alguma agência. Pois as palavras são exatamente iguais, assim como a estrutura das frases. Quando duas pessoas traduzem o mesmo texto, sempre existirão algumas diferenças nos resultados finais.

Ou seja, ou IG e Folha Online pegaram a matéria de outro meio brasileiro que tinha traduzido de agência internacional, ou (parece piada) um deles copiou do outro. Seja qual for o caso, o jornalismo sai perdendo.

Na matéria do IG, além disso, havia um “erro” primário. Era um mapa da Bolívia em duas cores. Uma delas mostrava as regiões em que os apoiadores de Evo eram maioria, enquanto a outra indicava onde a oposição era maioria.

Segundo o IG, quatro departamentos eram pró-Evo, e cinco contra. Uma grande mentira. De acordo com o referendo revogatório, de 10 de agosto, o presidente boliviano ganhou em seis regiões, duas das quais governadas pela oposição. Perdeu apenas em três, sendo que em uma delas, por muito pouco.

E então, o que aconteceu com o mapa do IG? Seus editores o “chuparam”, de novo, de alguma agência internacional, que veiculava uma informação completamente equivocada? Interpretaram, erroneamente, o fato de a oposição governar em cinco departamentos como um rechaço ao Evo entre a população destas regiões? Ou fizeram essa confusão propositadamente?

De novo, aqui, seja qual for o caso, o jornalismo sai perdendo.

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