Abaixo, a segunda parte da matéria sobre a nacionalização do gás. Daqui a pouco, volto para contar minha visita à Potosí.
Brasil de Fato, edição 281 (de 17 a 23 de julho de 2008)
Processo é marcado por contradições
Conciliando a administração estatal com grandes grupos econômicos, nacionalização não atinge estruturas
de La Paz (Bolívia)
Apesar das recentes medidas tomadas pelo governo boliviano no sentido de avançar na nacionalização dos hidrocarbonetos, existem ainda inúmeras críticas ao processo liderado pelo presidente Evo Morales.
“O erro do governo residiu em executar o decreto de maio de 2006 a conta-gotas, em vez de aproveitar o fervor e a mobilização popular que resultou na medida. Por exemplo, a YPFB devia ter tomado o controle da produção de petróleo em poucas semanas, o que obrigaria a Petrobras a vender suas refinarias imediatamente, em lugar de esperar um ano”, analisa Andrés Soliz Rada, ex-ministro dos Hidrocarbonetos da atual gestão.
Para ele, a recuperação das empresas Transredes, Chaco e Andina (ver matéria) também deveria ter sido executada na ocasião. “E o pagamento das indenizações deveria estar condicionado aos resultados das auditorias previstas pelo decreto, assim como às sentenças judiciais por golpe, evasão de impostos e contrabando, cometidos pelas petroleiras, incluindo a Petrobras”.
Segundo Rada, outro problema derivado da nacionalização é o mau uso dos seus recursos financeiros. Ele critica a destinação do dinheiro a bolsas sociais e a empréstimos a transnacionais e bancos estrangeiros.
Mau negócio
“A Bolívia empresta ao Banco Santander Hispano, por exemplo, a 3% de juros anuais, com o argumento de que ter o dinheiro dentro do país gera inflação. E toma emprestado da Corporação Andina de Fomento (CAF) a 8% anuais. Por que não usar isso numa planta separadora de líquidos, numa refinaria grande para não ter que subvencionar o gás que importamos?”, questiona.
Carlos Arze Vargas, diretor do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Laboral e Agrário (CEDLA), vai mais longe nas restrições ao processo. Para ele, não houve uma verdadeira nacionalização em 1º de maio. “Foi uma reforma basicamente no aspecto tributário do setor. Essa é a principal mudança, ainda que existam outras secundárias, por exemplo, uma maior participação em algumas fases da atividade hidrocarburífera, mas a medida mesmo não consistiu em uma expropriação de ativos nem de direitos”, opina.
De acordo com Vargas, houve uma “negociação de concessões”: as empresas deveriam cumprir a lei, e o Executivo garantir a segurança jurídica, além de acelerar a exportação. “O governo submeteu as empresas à lei, mas com base em contratos renegociados que não significa substancialmente mudanças rumo a um maior controle do excedente”.
Como agravante, os novos contratos, ao começaram do zero, eliminaram as práticas ilegais das petroleiras, e, além disso, não lhes exigem um cronograma de investimentos na produção.
“Capitalismo social”
Na opinião de Vargas, tais contradições encontram explicação na própria ideologia do Movimiento Al Socialismo (MAS, partido do governo), que aspiraria converter pequenos proprietários e a classe média em atores importantes na economia do país, mas sem excluir os grandes grupos, inclusive os monopólios. “É a famosa frase de Evo, de que queremos sócios, não patrões. Ou seja, pode-se conviver com as grandes empresas num novo tipo de capitalismo social. É o capitalismo andino-amazônico de do vice-presidente Álvaro García Linera”.
Daí, viria a proximidade da política de hidrocarbonetos da Bolívia com petroleiras como a Petrobras e a francesa Total. Para Andrés Soliz Rada, a empresa brasileira já recuperou todas as posições que se haviam enfraquecido com a nacionalização. “Se Evo tem terríveis problemas com a meia lua [a oposição regional ao governo], e pede ajuda para o Lula, o que o Lula pode pedir que o Evo possa negar? ‘Eu falo que a meia lua é ilegal, mas o contrato tem que dizer isso, isso e isso.’”, exemplifica.
Em relação aos franceses, Rada conta um episódio descrito em um livro do ex-presidente Carlos Mesa (2003-2005). “Ele diz que se reuniu, numa ocasião, com integrantes do MAS para discutir a lei de hidrocarbonetos. E que, junto com a delegação, estava um homem chamado Gastón Mujía. Ele é o representante da Total na Bolívia!”.
O resultado, segundo Rada, é que, nos dias 27 e 28 de outubro de 2006, data da assinatura dos novos contratos com a petroleira, quem assina primeiro é a Total, enquanto as demais o fazem no dia seguinte. “Acredito que tal relação tenha nascido em viagens prévias de Evo como candidato à presidência”, diz.
Crise energética
A falta de mão dura no trato com as transnacionais e a conseqüente falta de obrigatoriedade de investimentos seriam as causas principais, na opinião de Carlos Arze Vargas, do CEDLA, da crise energética pela qual passa e passará o país (60% da eletricidade vem do gás), além da incapacidade de abastecer suficientemente a Argentina de gás natural.
Atualmente, a Bolívia produz 42 milhões de metros cúbicos ao dia. Cerca de 7 milhões de m³ são destinados ao mercado interno, 31 milhões de m³ ao Brasil, e o restante à Argentina, que recebe menos de 30% do que o previsto. “A crise já se apresentou. A escassez de diesel e de GLP está se tornando crônica. O governo só apela para soluções conjunturais, sem atacar os problemas de fundo, como a construção do Gasoduto Boliviano do Ocidente”, lamenta Rada. (IO)
Estado não arrecada 82% da produção de gás
Desconhecimento do resultado de auditorias nas petroleiras reduz a tributação para pouco mais de 50%
de La Paz (Bolívia)
A idéia que se tem sobre a nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia, decretada pelo presidente Evo Morales, é que, desde então, as transnacionais passaram a receber, de retorno, apenas 18% do valor da produção de gás, e não mais 50%.
No entanto, atualmente, as porcentagens se aproximam mais do segundo que do primeiro caso. Isso porque, em primeiro lugar, o decreto de 1º de maio de 2006 estabeleceu os 32% adicionais de imposto – destinados à YPFB – apenas às operações nos mega-campos de San Alberto e San Antonio, operados pela Petrobras.
Em relação aos restantes, a tributação foi mantida nos mesmos patamares até a entrada em vigência dos novos contratos, em maio de 2007, já que estes tiveram que passar pela aprovação do Congresso Nacional.
Além disso, a cobrança adicional dos 32% aos mega-campos de gás foi estabelecida de forma provisória, também até maio de 2007. A partir de então, a porcentagem cobrada de todas as empresas seria definida através da realização de auditorias nas petroleiras, que analisaria variáveis como investimentos, custos etc.
Tributação menor
Porém, como na ocasião da assinatura dos contratos, em outubro de 2006, as investigações ainda estavam em curso, a YPFB aceitou, temporalmente e de “boa fé”, os dados proporcionados pelas próprias transnacionais.
Entretanto, até o momento, os resultados das auditorias ainda não são conhecidos oficialmente. Enquanto isso, a participação de 32% devido à YPFB se reduziu a uma média de 4%, fazendo com que o Estado arrecade pouco mais de 50%, e não 82%.
“Como as auditorias não foram levadas em conta, voltou a tributação 50-50, estabelecida na Lei de Hidrocarbonetos 3058 [de 2005]. Sustento que esse 50-50 diminuiu um pouco em prejuízo do Estado, já que a YPFB deve subvencionar com 10 milhões de dólares as companhias que trabalham em campos marginais”, lamenta Andrés Soliz Rada, ex-ministro dos Hidrocarbonetos do governo Evo. (IO)
O golpe da Enron na Bolívia
Transnacional estadunidense embolsou 130 milhões de dólares sem gastar um centavo
de La Paz (Bolívia)
O decreto presidencial de 2 de junho deste ano, que estabeleceu o controle do Estado, por meio da compra de ações, de 97% da transnacional Transredes, ganha importância se for levado em conta um fato em especial: a associação desta com a empresa Enron, envolvida no maior escândalo financeiro da história dos EUA.
Em julho de 1994, no contexto de um memorando de entendimento entre Brasil e Bolívia para a construção do gasoduto entre os dois países, ficou acordado que a Enron deveria conseguir financiamento para as obras.
No entanto, o investimento não vem e a Petrobras decide bancar o empreendimento, recebendo da Bolívia, como pagamento, gás natural. No momento da assinatura do contrato, a Enron aparece no lugar da YPFB, a estatal boliviana de hidrocarbonetos, tornando-se proprietária do gasoduto.
Conspiração
Em seguida, a empresa estadunidense, juntamente com a Shell, forma a Transredes, empresa de transporte de gás desmembrada da YPFB no processo de privatização. De acordo com o governo boliviano, a Enron embolsou 130 milhões de dólares sem investir um centavo.
Além disso, segundo Andrés Soliz Rada, ex-ministro dos Hidrocarbonetos, a Transredes “é uma das empresas que mais trabalharam com as correntes separatistas no oriente do país. Isso está demonstrado quando a empresa entregou o gasoduto de Villamontes a Tarija ao governador de Santa Cruz, ignorando o governo”.
Rada conta que quando era ministro, a transnacional apresentava gastos mal explicados, que coincidiam com as datas das mobilizações pró-autonomia em Santa Cruz de La Sierra. (IO)
domingo, 28 de setembro de 2008
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