segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Agora vai?

Abaixo, uma entrevista feita logo depois do referendo sobre o estatuto autonômico de Santa Cruz e a convocação, por parte do Senado, do referendo revogatório realizado agora há pouco.

É interessante ver como o entrevistado achava que o referendo não mudaria nada, ou muito pouco. Aliás, a maioria dos analistas (e eu concordava com eles) pensava assim. Mas o fato é que Evo saiu bastante legitimado, com dois terços de apoio, e se mostrou forte também nas regiões onde se esperava seu fracasso.

(Aliás, a consulta demonstrou que a chamada meia-lua como tal, ou seja, como um espaço geográfico formado por quatro departamentos coesos que se opunham ao governo, não existe, já que Evo praticamente só perdeu nas capitais destes departamentos, ganhando com folga no campo)

Em suma, a vitória de Evo pode não ter sido tão retumbante como pinta seus apoiadores, já que alguns governadores também se fortaleceram regionalmente. Mas o fato de ter conseguido dois terços de apoio serviu de legitimização para a convocação do referendo sobre a nova Constituição, que provavelmente sairá vitoriosa.

Ou seja, depois do referendo revogatório, a situação política mudou sim. E acredito que consideravelmente em favor do governo.

Brasil de Fato, edição 273 (de 22 a 28 de maio)

“A direita aposta no desgaste de Evo”

Para constituinte do MAS, partido de Evo Morales, a oposição aprovou o referendo revogatório no Senado porque não sabia o que fazer depois da consulta sobre o estatuto autonômico de Santa Cruz

Igor Ojeda
Correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia)

Passado o referendo sobre o estatuto autonômico do departamento de Santa Cruz, realizado em 4 de maio, a oposição boliviana lançou mão de mais uma cartada. Outra consulta: a revogatória de mandato dos cargos do presidente, vice-presidente, e dos governadores, aprovada pelo Senado (de maioria oposicionista) no dia 8 e promulgada por Evo Morales no dia 12.
“A direita precisava ter uma agenda para depois de 4 de maio. Não sabia o que fazer. De maneira imediata, não poderia implantar as autonomias, pois não tem o controle do Estado, do Tesouro Geral da Nação. (...) Estão apostando numa perspectiva de desgaste do governo, de ganhar o referendo revogatório”, opina o deputado constituinte Raúl Prada, do Movimiento al Socialismo (MAS, partido no governo), em entrevista ao Brasil de Fato.
No entanto, a nova jogada provocou fissuras entre os opositores do presidente Evo Morales. A iniciativa foi duramente criticada pelos cívicos e governadores opositores, que qualificaram a aprovação como um “grave erro” e uma “estupidez política”. O temor é o de que Evo Morales permaneça no cargo e que alguns dos governadores caiam. No dia 15, foi a vez do governador de Santa Cruz, Rubén Costas, fazer sua jogada, ao promulgar uma lei que pôs em vigência o estatuto autonômico do departamento. A norma havia sido aprovada pela Assembléia Legislativa Departamental, designada por Costas, em dezembro, para redigir o estatuto.
De acordo com a lei, entre outras coisas, o departamento de Santa Cruz se chamará agora Departamento Autônomo de Santa Cruz. No dia anterior, o assessor crucenho de hidrocarbonetos e mineração, Juan Padilla, já havia afirmado que o governo departamental reterá os royalties pagos pelas empresas exploradoras de petróleo e gás da região.
No entanto, de acordo com o Executivo boliviano, Santa Cruz não pode fazer isso, já que os royalties e toda a administração econômica do país estão centralizados no governo nacional.
Por essa razão, para Raúl Prada, os referendos sobre os estatutos autonômicos serão usados como carta de negociação, uma vez que não são aplicáveis. Para ele, os governadores só aceitarão negociar após a realização de todas as consultas (em Beni e Pando, no dia 1º de junho, e em Tarija, em 22 de junho).
O constituinte do MAS vê três cenários futuros para a Bolívia: o início de enfrentamentos entre as duas forças, um diálogo infrutífero e infinito e um acordo entre o governo e os setores produtivos da direita.

QUEM É

O sociólogo Raúl Prada é deputado constituinte pelo Movimiento Al Socialismo (MAS, partido no governo) e integrante do Comuna, grupo de intelectuais organizado pelo vice-presidente do país, Álvaro García Linera.

Brasil de Fato – A oposição disse que o referendo sobre o estatuto autonômico foi uma vitória retumbante. O governo disse que foi um grande fracasso das autoridades cruceñas. Qual a sua opinião?

Raúl Prada – Eles estão usando o referendo para a negociação, porque os estatutos autonômicos não os servem, uma vez que não possuem caráter juridicamente vinculante. Para viabilizarem as autonomias, necessitam do novo texto constitucional, justamente o texto que rechaçam, não aceitam. A nova Constituição tem a atribuição de aceitar as autonomias, com suas competências definidas. Então, esse é um referendo cheio de contradições. Houve uma notória abstenção, de quase 40%, enquanto 15% votaram pelo “não”. Isso mostra que é um referendo sem a legitimidade correspondente. Mas o fato de que o levaram a cabo, e de que tenham tido a aprovação de 85% dos que votaram, lhes dá a possibilidade de uma carta de negociação. Depois do referendo, o governo chamou ao diálogo, mas os governadores só querem conversar depois da realização de todas as consultas sobre os estatutos autonômicos dos departamentos. O governo ofereceu inclusive discutir o texto constitucional para se chegar a um consenso sobre o tema das competências. Mas não é só isso está em questão. O problema mais importante não são as autonomias, e sim as terras. Estamos falando de uma situação em que 9% controlam mais ou menos 70% das terras cultiváveis do país. A lei de terras atual determina que se pode redistribuí-las, e transferir ao Estado as terras em excesso. A nova Constituição leva em suas entranhas a reforma agrária, de uma maneira muito mais clara. Acredito que, enquanto não se resolva o problema da terra, nada se resolva. Primeiro, deve-se resolver esta questão, e depois as autonomias. Veremos se é possível um acordo com os empresários. O governo está disposto a aceitar a extensão produtiva da terra. Mas não a improdutiva.

Mas qual a possibilidade de se chegar a um acordo nesse tema? Parece muito difícil...

É muito difícil. Há três cenários possíveis para o futuro. Um é o do conflito, das medidas de força. E o enfrentamento pode vir por decisão do governo, se declarar um estado de sítio departamental, ou dos movimentos sociais, caso resolvam mobilizar-se a Santa Cruz. O segundo cenário é o do diálogo de nunca acabar, de desgaste mútuo. E o terceiro é uma pequena possibilidade de se chegar a um acordo, se as forças da direita se dividirem, ou seja, se um acordo for feito com alguns setores produtivos, e não com os improdutivos. Nesse caso, os latifúndios improdutivos vão ter que ser afetados.

Quais são as origens da atual crise política? Como as coisas chegaram a esse ponto?

Não podemos esquecer da história recente dos movimentos sociais, de 2000 a 2005. Eles transformaram o cenário político de tal maneira que nos levaram a duas palavras de ordem importantes: a nacionalização dos hidrocarbonetos e a convocatória da Assembléia Constituinte. Colocaram em pauta, de maneira aberta, a luta de classes e a luta de nações. Ou seja, as nacionalidades indígenas originárias e camponesas em contraposição a uma elite crioula [filhos de espanhóis nascidos na América] que estava administrando o país. A situação se consolida com a chegada de Evo Morales ao governo e o cumprimento da nacionalização dos hidrocarbonetos e da convocatória da Assembléia Constituinte. Ou seja, se inicia um processo de transformações estruturais que está afetando definitivamente esse setor oligárquico, proprietário de terras, regionalizado. A situação de conflito se traslada ao cenário de governo, e dá lugar a resistências das oligarquias regionalizadas. É um franco processo de motim por parte da direita, que definiu um programa de desgaste político do governo boliviano.

Dentro de um dos cenários futuros propostos anteriormente, o do enfrentamento, o senhor acredita que pode resultar numa guerra civil? Existe esse risco?

Existe um risco. Se o Exército se divide, pode ocorrer uma guerra civil. Mas isso está difícil. No momento, o Exército está bastante fiel e vinculado ao governo. Fez críticas aos estatutos autonômicos, dizendo que eles põem em risco a unidade territorial do país. Por isso, o mais provável é que se chegue a um enfrentamento, mas não a uma guerra civil. O governo está apostando no cenário do diálogo. Mas não é a mesma aposta dos movimentos sociais. Estes querem mobilizar-se, tomar Santa Cruz. No entanto, o governo tem muita ascendência sobre as organizações e pode controlar sua capacidade de mobilização.

Mas se pode chegar a um ponto em que o governo não consiga mais controlar os movimentos?

Sim, pode chegar a essa situação. Mas, se prestamos atenção no que está acontecendo hoje... os movimentos sociais decidiram ir a Santa Cruz em 4 de maio para frearem o referendo. O governo lhes pediu que não fossem. Então os movimentos optaram por se mobilizar em El Alto, La Paz e Cochabamba, com grandes concentrações. Isso mostra que as organizações ouvem o governo. Mas podemos chegar à situação de extrapolação. Por exemplo, quando o Congresso definiu que os referendos constitucionais iam acontecer em 4 de maio, houve um cerco ao Congresso por parte dos movimentos. Nesse caso, foi iniciativa deles próprios. E quem retrocedeu nisso foi o próprio governo, através da Corte Nacional Eleitoral, que se declarou incompetente para organizar todos os referendos juntos e declarou ilegais os referendos sobre os estatutos autonômicos. E trasladou a responsabilidade da nova convocatória dos referendos ao Congresso. Então, estamos definindo outras coisas antes do referendo constitucional. Por que isso? Acho que o governo está fazendo um cálculo. É provável que ganhemos o referendo, que a nova Constituição seja aprovada. Mas, pode-se ganhar por maioria absoluta: 50% mais um. 49% pode não votar ou votar contra. O governo não quer ganhar nessas condições. Quer chegar a 70%, 80%. Para isso, precisa de um pacto político. Então, o governo está apostando por isso.

Por que a oposição aprovou o referendo revogatório de mandato?

A direita está jogando para desgastar o processo. Ela precisava ter uma agenda para depois de 4 de maio. Não sabia o que fazer depois. De maneira imediata, não poderia implantar as autonomias, pois não tem o controle do Estado, do Tesouro Geral da Nação. Não tem controle administrativo. Teria que esperar o novo texto constitucional. A direita precisou apostar numa carta complicada para eles, porque é provável que alguns governadores saiam. È improvável que o Evo saia. No entanto, estão apostando nisso, numa perspectiva de desgaste do governo, de ganhar o referendo revogatório. Jogaram a sorte. Porque esgotou sua agenda política. O que acontece é que a consulta, possivelmente, não mudará as coisas. O Evo fica, alguns governadores ficam, outros saem. Então, vai ficar num status quo. Mas vai servir para reforçar o Evo e também outros governadores.

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