Brasil de Fato, edição 275 (de 5 a 11 de junho de 2008)
No mesmo período do referendo sobre o estatuto autonômico do departamento boliviano do Beni – convocado em fevereiro e realizado em 1º de junho –, comunidades indígenas locais lançam filme de ficção sobre atuação dos grupos econômicos locais
Igor Ojeda
Correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia)
No meio da selva, um fio grosso de sangue escorre por uma árvore. Embaixo, as gotas vermelhas tingem as folhas que forram o solo. A câmera se aproxima, e já se pode ver uma enorme “ferida” aberta no tronco da planta.
Na sua casa de parede de barro e teto de palha, uma senhora indígena, de uns 60 anos, acorda. Conta o sonho ao marido. Explica que viu uma árvore sangrando e proclama: “Algo vai acontecer na comunidade”. É 1996. O povoado chama-se Nueva Esperanza, localizado no departamento de Beni, na Amazônia boliviana.
Algumas horas mais tarde, a visão começa a se confirmar. Dois moradores, que haviam saído para caçar, voltam contando que viram uma empresa madeireira se instalando numa área não longe dali.
A partir daí, aparecem, pouco a pouco, os problemas. As grandes promessas da empresa aos indígenas, como a construção de estradas e repartição dos lucros, não são cumpridas. Dirigentes comunitários são subornados. Os habitantes da comunidade indígena são impedidos de circular livremente por certas áreas. O lixo e os peixes mortos se acumulam na margem do lago local. As árvores vão sendo uma a uma derrubadas.
Realidade
O filme “El Grito de la Selva” estreou em março, mas vem sendo pensado há muito mais tempo. No entanto, difícil é não fazer a vinculação com o referendo sobre o estatuto autonômico do Beni realizado no dia 1º de junho.
“[O filme mostra] uma realidade que tem a ver com o controle de poder, dos recursos naturais da região. Mostra como se mantém os latifúndios, e a concentração de poder nas mãos de poucas famílias, que controlam o governo departamental e as prefeituras”, explica o cineasta Iván Sanjinés, diretor do Centro de Formação e Realização Cinematográfica (Cefrec) e membro da equipe de realização da película.
A madeireira, que atua como se fosse dona das terras indígenas, destrói o meio-ambiente e usa o poder econômico para corromper líderes comunitários e para ter políticos poderosos e a polícia ao seu lado, seria a representação dos redatores do estatuto autonômico. Não só do Beni, como também de Santa Cruz, Pando e Tarija. “É uma história que faz referência ao passado, mas a situação hoje continua a mesma”, lamenta o cineasta.
E, para contar essa realidade, ninguém melhor que os que mais sofrem com ela. O argumento, o roteiro e a direção de “El Grito de la Selva” são de autoria dos próprios indígenas, e trabalhados de forma coletiva – com o apoio da equipe do Cefrec.
Desconhecimento
“Foi um processo muito participativo, feito com muito ânimo, e, sobretudo, com o compromisso de fazer conhecer sua realidade”, diz Iván. “A possibilidade de afirmar sua história é muito importante para eles, do que é um povoado indígena, de como isso pode projetar-se para fora, porque é uma situação desconhecida”.
Tudo começou há cerca de dez anos, quando teve início, através do Cefrec, um trabalho de capacitação de comunicadores oriundos (e eleitos para tal) de comunidades da Amazônia boliviana. Registros da comunidade, das organizações, em vídeo e rádio, eram produzidos.
Até que Silvia González, uma das participantes, trouxe a idéia, baseada em fatos reais, para um filme. “A história de uma líder de sua região que enfrentou as empresas madeireiras, e que recuperava e difundia o conhecimento tradicional indígena”, conta Iván.
A partir daí, outras idéias vindas de outras regiões foram sendo incorporadas e decidiu-se que o filme seria uma ficção. Uma oficina de roteiro foi realizada, e a idéia inicial começou a ganhar forma em cenas. “Logo, a película começou a ficar mais longa. Tinha muitas histórias, tocava-se em muitos assuntos”. O curta virou longa-metragem.
Machismo
O elenco, em sua maior parte, é formado também pelos indígenas, sobretudo de duas comunidades: uma de guarayos, outra de mojeños. “Havia pessoas que não tinham atuado nunca. Então foi feito um treinamento. Uns têm maior capacidade dramática, e outros fazem o melhor que podem, mas todos estavam com vontade de pôr seu maior esforço, porque era a primeira vez que se fazia um filme na Amazônia boliviana com atores indígenas”, esclarece Iván.
Mas não são apenas os problemas das comunidades indígenas do Beni com os grupos econômicos da região que são retratados no filme. Em meio aos confrontos com a empresa madeireira, percebe-se o machismo fortemente presente na comunidade, retratado através da violência doméstica e na pouca força que a voz das mulheres tem nas assembléias locais.
“Não é um tema simples. Porque, quando se fala dos indígenas, se pensa que todos são bons, protegem a natureza etc. Mas, na verdade, dentro dessas comunidades, também existem situações que permeiam a sociedade em geral. O machismo, a corrupção de dirigentes. Nem tudo é de uma cor ou de outra. É interessante como uma comunidade pode ter a capacidade de refletir isso e dizer: ‘bem, isso não é só para mostrar, mas também para analisar’. A preocupação de mostrar para poder refletir e fazer algo a respeito”, analisa Iván.
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
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