Já que as coisas por aqui se acalmaram um pouco (até segunda ordem), volto a publicar as matérias que fiz para a versão impressa do Brasil de Fato. Desta vez, sobre a nacionalização do gás.
Como está bastante longa, publicarei em duas partes. A primeira, com os pontos positivos, a segunda, com os negativos:
Brasil de Fato, edição 281 (de 17 a 23 de julho de 2008)
Um novo fôlego na nacionalização do gás
O governo de Evo Morales, que vem sendo criticado por alguns setores da esquerda boliviana por não consolidar o processo iniciado em maio de 2006, acelera as medidas rumo ao controle de toda a cadeia da produção de hidrocarbonetos
Igor Ojeda
correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia)
Evo Morales prometeu: o gás, além de nacionalizado, seria industrializado. Pois, passados dois anos do decreto de 1º de maio de 2006, quando se estabeleceu que os recursos hidrocarboríferos (petróleo e gás) seriam de propriedade do Estado boliviano, sobravam críticas ao presidente indígena.
Alguns analistas da esquerda diziam que a nacionalização não estava consolidada, pois o gás ainda não era processado industrialmente e as transnacionais ainda comandavam a cadeia de produção de hidrocarbonetos.
Além disso, as empresas estrangeiras continuavam a operar nos poços. O que havia acontecido teria sido tão somente um pequeno aumento de impostos a elas (ver matéria), se comparados com os determinados pela Lei 3058, de 2005, formulada no governo de Carlos Mesa (2003-2005).
Pois, em 2008, o governo, como que concordando com os críticos, decidiu acelerar as ações de consolidação da nacionalização. O último capítulo foi executado no dia 14, quando Evo Morales inaugurou, no departamento de Santa Cruz, a construção de uma planta separadora de líquidos do gás natural, que terá a capacidade de produzir, diariamente, 260 toneladas de Gás Liquefeito de Petróleo (GLP, ou gás de cozinha) e 450 barris de gasolina.
Perda econômica
Tal processo industrial é essencial para a economia do país. Na exportação de gás natural ao Brasil e à Argentina, estes recebem, juntamente com o produto bruto, componentes que possuem preços elevados no mercado, como o GLP, a gasolina e outros energéticos. E não pagavam por isso – recentemente, o Brasil iniciou uma pequena compensação financeira. Com a separação, a Bolívia poderá, além de abastecer o mercado interno com tais produtos, exportar com base no valor de mercado.
Mas o novo fôlego dado pelo governo boliviano à nacionalização dos hidrocarbonetos teve início em 1º de maio deste ano. Através de decretos supremos, o Estado passou a controlar, através da compra de ações, 50% mais um das transnacionais Andina e Chaco, além de 100% da Companhia Logística de Hidrocarbonetos Boliviana (CLHB).
A primeira tinha 50% de participação nos dois maiores campos de gás do país, San Alberto e San Antonio (em ambos, a Petrobras participa em 35%). A segunda explorava poços de petróleo cru condensado e gás natural. Já a última, de capitais alemães e peruanos, era responsável pelo armazenamento e transporte de líquidos (diesel, querosene etc).
Em 2 de junho, o governo boliviano emitiu outro decreto, estabelecendo o controle, através da compra, de 97% da Transredes, holding de transporte formada pelas empresas Shell e Ashmore e que contava com a participação da Enron (veja matéria).
Refundação
Além dessas medidas, o Executivo preparou a “refundação” da estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), através da sua recomposição como uma empresa corporativa, ou seja, com subsidiárias em todos os setores da cadeia de produção de hidrocarbonetos (veja matéria). A retomada do controle sobre as empresas Andina, Chaco, Transredes e CLHB insere-se nesse contexto.
Para o ex-ministro dos Hidrocarbonetos do governo Evo, Andrés Soliz Rada, o setor conciliador dentro do Executivo que impedia medidas mais radicais retrocedeu, uma vez que os “avanços de 2008 são muito importantes”. “Os decretos de 1º de maio deste ano são positivos, já que é preferível que se façam as coisas tarde do que nunca”, diz, lembrando, no entanto, que já houve tentativas frustradas de se reorganizar a YPFB.
Segundo o vice-ministro boliviano de Desenvolvimento Energético (órgão subordinado ao Ministério dos Hidrocarbonetos), Jorge Ortiz, o processo de nacionalização dos hidrocarbonetos se sustenta em quatro pilares: a propriedade estatal dos recursos, o controle e direção da cadeia a cargo do Estado, a recuperação das empresas privatizadas e a industrialização do gás.
Propriedade estatal
De acordo com ele, o primeiro passou foi dado em 1º de maio de 2006, com o decreto de nacionalização, e em outubro do mesmo ano, com a assinatura dos novos contratos. “Assinamos 44 contratos com 16 empresas, para investigação e exploração de mais de 60 campos de hidrocarbonetos, que hoje produzem mais de 40 mil barris de petróleo e mais de 40 milhões de metros cúbicos de gás natural por dia. São contratos de serviços, onde as empresas assumem os riscos, e o Estado devolve o investimento e um lucro. Aqui, a propriedade dos recursos é do Estado, através da YPFB, a única que pode comercializar no mercado interno e externo”, explica.
Além disso, segundo Ortiz, o governo estabeleceu 33 áreas de investigação e exploração reservadas à estatal. Ou seja, somente esta pode operar os campos, sozinha ou em sociedade. “Esperamos conseguir os primeiros resultados este ano com o início de perfuração no sul e no norte do país com a YPFB Petro Andina SA Mista, nova empresa onde a YPFB tem 60% e a PDVSA (estatal venezuelana), 40%”, diz.
No segundo pilar, Ortiz destaca o conceito da YPFB corporativa. Agora, a matriz conta com seis subsidiárias, cinco delas recuperadas do processo de privatização (o terceiro pilar). Além das quatro empresas retomadas entre maio e junho deste ano (nas áreas de exploração, transporte e logística), há as duas refinarias compradas da Petrobras em julho de 2007, que formaram a YPFB Refinação. A sexta subsidiária é a YPFB Petro Andina SA Mista.
Atrasado
Já o quarto pilar, a industrialização dos recursos, é considerado o menos avançado pelo vice-ministro de Desenvolvimento Energético, “porque tivemos que começar do zero”. No entanto, ele destaca algumas ações, como a criação da Empresa Boliviana de Industrialização de Hidrocarbonetos – hoje ainda parte da YPFB, mas que no futuro será independente –, a construção da planta de separação de gás em Santa Cruz, a previsão de instalação da “maior planta de separação da América do Sul” no departamento de Tarija e de uma fábrica de plásticos em parceria com a brasileira Braskem.
Mesmo avaliando como bastante positivo o processo de nacionalização iniciado em 2006, Ortiz acredita que ainda falta muita coisa, como o estabelecimento de mecanismos mais efetivos de fiscalização dos contratos com as transnacionais; a exigência de mais investimentos destas; a implementação mais rápida da estratégia das 33 áreas reservadas à YPFB, para que mais campos sejam descobertos; a consolidação da YPFB corporativa com pessoal especializado e com visão política; a melhora da eficiência das empresas recuperadas; e a aceleração da execução de projetos mais específicos, como a instalação de gás domiciliar em todos os lares bolivianos.
“Essas tarefas pendentes fazem parte de uma estratégia nacional proposta pelo Ministério dos Hidrocarbonetos e que será o ponto de referência para se levar adiante as atividades em toda a cadeia de produção”, conclui Ortiz.
O controle estatal sobre a cadeia de produção
de La Paz (Bolívia)
Por meio da YPFB, país pretende dobrar a produção de gás e petróleo até 2013
O governo boliviano promete consolidar, até o fim de 2008, a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) em sua composição corporativa. Ou seja, a atuação em todos os setores da cadeia de hidrocarbonetos, através da matriz e suas subsidiárias.
“Até a nacionalização, a YPFB era uma empresa residual. Não havia possibilidade de empreender por conta própria, só estava em algumas tarefas da comercialização. Depois, em maio de 2008, possibilitou-se a participação em toda a cadeia. Isso vai reposicionar totalmente os termos da produção e os de geração de recursos”, prevê Misael Gemio, gerente de planejamento da estatal.
Para ele, o que resta à empresa é aprofundar tal controle da cadeia de hidrocarbonetos. Para atingir esse objetivo, a YPFB está elaborando um plano estratégico de ação até 2015, que visa mais que duplicar a capacidade de produção.
Ou seja, a Bolívia saltaria de 42 milhões de metros cúbicos de gás natural e 47 mil barris de petróleo produzido diariamente em 2007 para 100 milhões de m³ e 100 mil barris já em 2013. Para tal, estão previstos investimentos de 13,4 bilhões de dólares entre 2008 e 2015, o quádruplo do investido no período 2000-2007 (3,4 bilhões). Só na industrialização dos recursos, serão desembolsados 4 bilhões de dólares.
Dinheiro em caixa
E, devido aos efeitos da nacionalização de maio de 2006, a YPFB poderá aportar algo desse total de investimentos. Sem recursos após o processo de privatizações, a estatal contaria, hoje, com entre 400 e 500 milhões de dólares, segundo seu gerente de planejamento.
Isso porque, com o decreto de dois anos atrás, os dois maiores campos de gás passaram a destinar 32% da produção à empresa. Além disso, o Brasil pagou 100 milhões de dólares em 2007 e pagará outros 100 milhões em 2008 de compensação pelos componentes enviados juntos com o gás natural (ver matéria)
A intenção, segundo Gemio, é resolver imediatamente o problema de abastecimento dos mercados interno e externo, mas também projetar a questão da energia até 2020. “Concebemos a YPFB como um dos atores mais importante da América Latina em termos de energia. Com todas essas medidas, ela está adquirindo valor e também tem a possibilidade de gerar valor”, explica.
Gemio cita como essencial dentro dessa estratégia a recuperação de empresas privatizadas (veja matéria). Segundo ele, estas irão representar, nos próximos cinco anos mais da metade do valor total dos investimentos no setor. A meta é fazer da YPFB, em 2015, a maior empresa do Cone Sul no segmento de gás.
Modelo Petrobras
No entanto, para Carlos Arze Vargas, diretor do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Laboral e Agrário (CEDLA), a estatal boliviana não renascerá totalmente, nos moldes anteriores às privatizações. Para ele, a empresa ainda não possui capacidade técnica nem recursos humanos adequados, sendo, basicamente, um “escritório de administração”.
Segundo Vargas, sua reorganização acentuará o formato híbrido da YPFB, especialmente com a criação de empresas mistas. “A idéia é refundá-la sob o modelo Petrobras. Estatal, mas com lógicas capitalistas e transnacionais”, analisa.
Na opinião dele, no caso das recuperações das transnacionais Andina e Chaco, por exemplo, a YPFB provavelmente aparecerá como controladora acionária, mas a empresa estrangeira continuará na direção. “Porque, mesmo no governo, está muito incrustada a idéia de que o estatal não é suficiente”.
O Estado estaria utilizando a propriedade legal dos recursos para negociar os novos projetos em melhores condições. “Não muda radicalmente a orientação, e sim se adéqua ao que se tem”, critica. (IO)
quinta-feira, 25 de setembro de 2008
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