No feriado, um passeio pela cidade (porque ninguém é de ferro)
6 de agosto eles comemoram a fundação da Bolívia, em 1825. Como já disse num post anterior, o espírito “cívico” dos bolivianos é bem mais forte que o do brasileiro, mesmo porque aqui houve verdadeiras guerras de independência, com muita luta e sangue. Já no Brasil...
Por toda a cidade, tinha casas com a bandeira da Bolívia. E rolava, pelas ruas, desfiles de escolas, polícia, e forças armadas. O duro foi ver uma das “alas” do exército com um estandarte escrito “Beneméritos de Ñancahuazu”. Uma referência à guerra contra a guerrilha do Che, quando ele foi preso e executado, em 67.
Como era feriado, não queria incomodar as fontes com pedidos de entrevistas. Resolvi, então, também tirar uma folga e conhecer a cidade. Fiz um percurso turístico a pé durante quase o dia todo (a vantagem é que a cidade é plana, diferentemente de La Paz).
Vi casas e igrejas coloniais, outras nem tanto, fui no lago local, em uma colina e no Cristo de la Concordia, de onde se tinha uma bela vista de toda a cidade. Ali dá pra perceber bem como, apesar de plana, Cochabamba é toda cercada por altas montanhas.
Rumo ao Chapare
Igual a El Alto, uma grande mística envolve o Chapare. Também conhecida como Trópico de Cochabamba, é uma região a umas 3 horas de Cochabamba. A mística se deve a sua história de resistência.
Desde os anos 80, os plantadores de coca (cocaleros) vêm lutando contra a criminalização da coca, promovida pelos governos bolivianos e seus “assessores”, os estadunidenses. (Até hoje há postos de “checagem” do exército na estradas)
Até o começo do governo Evo, um dos cocaleros que resistiam, várias pessoas foram mortas e presas. Sem falar das mulheres estupradas.
Certamente por isso mesmo, foi lá que o MAS, o partido do Evo, surgiu, em articulação com movimentos sociais de outras partes do país.
No dia 7, quinta-feira, peguei uma van (daquelas que começam a viagem só depois que lotam) pra lá. Depois de um tempo, começa uma paisagem bem familiar pros brasileiros. Uma mata linda, bem densa, parecida com a Mata Atlântica, e rios que cruzam a estrada a toda hora. Quando mais a estrada vai descendo, mais o calor e a umidade vão aumentando.
E o apoio ao MAS e ao Evo também. É algo que eu nunca vi antes. Na beira da estrada, começam a aparecer, penduradas em bambus, que por sua vez estão pendurados nas árvores, bandeiras da Bolívia, a whipala (a bandeira sagrada dos povos indígenas dos Andes) e a do MAS, azul, preta e branca. Algumas vezes estão juntas, outras separadas. Mas estão lá a cada poucos metros.
Claro que provavelmente estavam lá por causa do referendo. Não deve ser algo do ano inteiro, mas mesmo assim impressiona.
Cheguei no fim da tarde, em Villa Tunari, uma das cidades do Chapare (as bandeiras e as cores do MAS seguem nas árvores, nos postes, nas casas, nos comércios e até nas pontes etc).
É engraçado como até a gastronomia muda consideravelmente em relação a La Paz. A começar pelas variedades de peixes, como o pacu e o surubí. Muita mandioca (aqui é mais batata) e carnes “exóticas”, como a de veado.
Sexta e sábado, fiz entrevistas com dirigentes cocaleros e com o diretor da Radio Soberanía, que na época da dura repressão serviu como instrumento pra contar a versão “real” dos fatos pra população da região e até pra outros lugares da Bolívia. A missão era apagar o estigma de que os que resistiam eram narcotraficantes.
Deu pra sentir de perto a força dos cocaleros, sua consciência política, sua disposição para a luta, e a lembrança da violência estatal não como algo traumático, mas principalmente como estímulo para seguir lutando.
Onde o presidente vota
No sábado, em Chipiriri, uma comunidade bem pequena a uns 10 minutos de Villa Tunari, falei com María Eugenia, uma dirigente de 30 anos, que viveu a guerra contra o Estado na adolescência. Quando cheguei, não consegui ligar pra ela (tínhamos nos falado na sexta).
Alguém falou onde era sua casa e fui. Incrível. Era um pequeno barraco de madeira, com tudo meio improvisado, e com a “sala/cozinha” sem porta. Contrariando totalmente a idéia que eu tenho da maioria dos dirigentes de sindicatos. Não que eu imagine que sejam ricos, mas deve dar pra se contar nos dedos os que vivem numa casa tão humilde quanto a dela.
No fim das contas, María Eugenia estava no seu “chaco”, a terrinha onde planta coca e outros produtos. Mas nos falamos mais tarde.
Quando terminou nossa conversa, chegou, de carro, um dos principais dirigentes da região. Me prometeu uma entrevista, mas em Villa Tunari, porque ele estava com pressa. A vantagem é que ganhei uma carona.
No caminho, passamos em uma comunidade chamada Villa 14 de Septiembre.
- É aqui que o presidente vem votar amanhã.
- É mesmo? Que horas, mais ou menos?
- Umas 7 e meia.
Já pensei: “legal, vou vir acompanhar”. Sinceramente, jornalisticamente, era meio irrelevante pra um meio como o Brasil de Fato. Mas já que eu estava lá, valia pela curiosidade e para, quem sabe, tirar uma foto pra ilustrar minha matéria pro jornal.
Pois, no domingo, simplesmente não tinha como eu chegar lá. É que, nas eleições bolivianas, uns dois dias antes, é decretado um tal de “auto de bom governo” (parece até termo zapatista, mas é da Bolívia mesmo). Sem bebida, campanha eleitoral e... transporte!!! Pra impedir que se levem as pessoas pra votar em troca exatamente do voto.
Enfim, tinha visto isso na TV, mas sinceramente não achei que seria cumprido à risca. Mas foi. Resolvi ir a pé, pois achava que era perto. Só que minha impressão da proximidade estava baseada quando fiz o percurso entre Villa 14 de Septiembre e Villa Tunari de carro. Caminhando eram outros quinhentos. Depois de perguntar duas vezes se estava muito longe, e ao receber resposta afirmativa, desisti. Afinal, ia perder o Evo votando e não teria como voltar.
E, por não ter como voltar, fiquei “preso” em Villa Tunari no domingo. Minha idéia era ir pra Cochabamba de tarde, mas não tinha como. Paciência.
O chá de cadeira e o conflito com os professores
No dia 13, quarta-feira, depois de fazer uma entrevista sobre o referendo, outra sobre os cocaleros e escrever a matéria pro Brasil de Fato em Cochabamba, decidi voltar ao Chapare, pra falar com alguma família que cultivasse folha de coca (não havia dado tempo na primeira vez).
Antes de ir, liguei pra María Eugenia pra pedir que ela me levasse. Achei melhor não ir sozinho, já que algumas pessoas da região são, com toda razão, desconfiadas com estrangeiros e/ou jornalistas.
Chegando a Chipiriri, não consegui falar com María Eugenia. Caía na caixa postal direto. Fui na casa dela, e nada. Me informaram que ela estava no “chaco” dela, a mais ou menos uma hora de distância, e que lá o sinal do celular era ruim.
Resultado: esperei umas 4 horas, e nada. Escureceu, voltei a Villa Tunari (já que em Chipiriri não havia onde dormir) e fiquei num albergue por lá.
No dia seguinte, cedo, liguei e consegui falar com ela. Marcamos pra dali a pouco. Fiquei feliz, pensei que poderia voltar cedo pra Cochabamba e chegar já no fim da noite em La Paz (pra enfim descansar e a tempo de ver as Olimpíadas, algo que ainda não tinha existido pra mim).
Chegando no local combinado, havia um grupo de pessoas conversando, meio informalmente, como se esperassem algo. María Eugenia chega e diz que vai ter uma reunião do sindicato, e que ela teria que participar.
Resultado: mais 3 horas esperando, um livro quase concluído e um grande pacote de bolacha – comprado na vendinha de uma chola – pela metade (eu estava sem café da manhã).
Os cocaleros estavam, digamos assim, emputados com os professores rurais, que tinham aderido à greve contra o governo (por causa de uma lei de pensões) dias antes do referendo.
“Eles têm o direito de se manifestarem, mas não logo antes do referendo. Serviram como instrumentos da direita”, reclamou María Eugenia, ao me contar sobre a reunião que acabara de terminar.
Como ela mesmo disse, depois de tanta luta, tanto sofrimento, tantas mortes, os cocaleros não estão dispostos a “pôr a perder o proceso de cambio”.
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