sexta-feira, 22 de agosto de 2008

As vozes dissonantes de Santa Cruz

Brasil de Fato, edição 271 (de 8 a 14 de maio de 2008)

Embora passe a imagem de apoio unânime ao estatuto, departamento opositor é palco de resistência à oligarquia local

Igor Ojeda
Enviado especial a Santa Cruz de la Sierra (Bolívia)

Sob um Cristo Redentor que leva seus braços para o alto, Rubén Costas, o governador de Santa Cruz, discursa. “No dia 4 de maio, diremos um ´sim` à democracia, à liberdade, a nossa forma de ser. A autonomia tem razão histórica e é direito fundamental de sermos donos de nosso destino. É parte essencial de nossa liberdade”.
É dia 30 de abril, data do encerramento oficial da campanha em favor do referendo sobre o estatuto autonômico do departamento. A cada frase de Costas, uma multidão espalhada por uma longa avenida aplaude e grita em apoio. Estão quase todos vestidos de verde e branco, as cores da região.
Um turista que tenha estado na cidade no dia 4 e nos dias que antecederam a consulta crucenha deve ter imaginado que toda uma população estava irmanada na mesma luta autonômica.
Carros com adesivos, bandeiras nas casas, pessoas com camisetas com alusões à autonomia estavam por todos os lados. Caso o mesmo viajante tenha visto, por curiosidade, os resultados de boca-de-urna, que projetaram a aprovação do estatuto por 85% dos votos, provavelmente pensou que sua impressão era correta.

Repúdio

No entanto, certamente ele não viu o que aconteceu no dia 2, numa zona mais deteriorada da cidade. E é possível que não tenha ficado sabendo dos eventos do dia 4 no Plan 3000, um dos bairros mais pobres de Santa Cruz.
Nos dois casos, as cores predominantes não era o verde e o branco: a grande maioria das pessoas empunhava a “tricolor”, como é chamada a bandeira boliviana, verde, amarela e vermelha. Outros carregavam a whipala, bandeira que leva as cores do arco-íris e que é sagrada para os indígenas da região andina.
Na concentração do dia 2, que reuniu cerca de duas mil pessoas contrárias à consulta, diversos líderes de movimentos sociais locais e nacionais revezavam-se ao microfone discursando contra “o referendo ilegal impulsionado por uma minoria oligárquica racista do departamento que quer manter o poder sobre as terras e a exploração do trabalhador nos latifúndios”.
Já no Plan 3000, no dia da votação, os moradores mostraram seu repúdio ao estatuto queimando urnas e cédulas na La Rotonda, uma espécie de centro do bairro. Durante todo o dia, ocorreram duros enfrentamentos contra apoiadores do referendo, liderados pela Unión Juvenil Cruceñista, que tentavam garantir a consulta. Pedras e pedaços de pau voaram, de um lado ao outro, por várias horas, assim como bombas de gás lacrimogêneo da Polícia Nacional, que tentava acalmar a situação.
Grandes mobilizações como essa aconteceram também no interior do departamento (veja matéria nesta página), dando mostras de que a unanimidade em favor do estatuto autonômico é questionável.

Abstenções

A “vitória retumbante” do “sim” também ficou abalada – embora as autoridades crucenhas não reconheçam – com a divulgação da primeira parcial da apuração, no dia 5. Com um terço dos votos contados, o índice de abstenção estava em 35,82%. Os que haviam votado pelo “não” somavam 15,73%, enquanto os nulos e brancos chegavam a 3,81%.
De acordo com o Movimiento Al Socialismo (MAS, partido do governo), o fato de 55,36% dos eleitores de Santa Cruz não terem votado pelo “sim” evidencia que a maioria dos crucenhos não apóia o estatuto, significando, assim, o fracasso do referendo autonômico.
No entanto, tanto o MAS quanto organizações sociais do departamento fazem questão de frisarem que eles não lutam contra a autonomia, e sim contra o texto autonômico, considerado por eles anti-democrático e de viés separatista.
“Os setores sociais não estão tão informados sobre o estatuto. Porque o povo foi marginalizado desse processo. Não tivemos representantes do povo, diretamente eleitos por nós, para que o escrevessem”, protesta Mario Barón, presidente da Associação Copacabana, organização de comerciantes do Mercado Central do Plan 3000. “Estamos contra porque foi feito por cima de nós”, completa.

Disputa de poder

Para Jerjes Justiniano, do Partido Socialista boliviano, a consulta levada a cabo no dia 4 não diz respeito à autonomia, e sim a uma disputa pelo poder político e econômico. “Não votamos pela autonomia. Já a aprovamos em junho de 2006. Votamos a aprovação ou não de um estatuto autonômico, que é mais centralista que o federalismo do Brasil”, diz.
Em 2006, em um referendo nacional, o “não” à autonomia ganhou nacionalmente, enquanto o “sim” triunfou nos departamentos de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando, chamados de meia-lua. Na época, o governo central fez campanha pelo “não”, o que fez, na opinião de Justiniano, que a oligarquia do oriente se apropriasse da bandeira autonômica.
Ainda de acordo com ele, que se diz “um autonomista desde os 19 anos”, o referendo é o resultado de um processo histórico acentuado a partir da revolução boliviana de 1952. Enquanto no ocidente do país foi realizada uma reforma agrária, o mesmo não ocorreu no oriente, por existir, na época, muita terra e pouca gente.
Em 1971, com o início da ditadura de Hugo Bánzer, a burguesia de La Paz, surgida em 1952, se vincularia com os setores produtivos de Santa Cruz, desenvolvendo uma agroindústria exploradora e uma classe social emergente na região. “Esta classe é a que está disputando o poder nesse momento”, diz.

Terra

Poder que pode ser resumido, para ele, na tentativa de manutenção da estrutura fundiária do departamento. “Foi feita uma lei de reforma agrária por Evo Morales que afeta a oligarquia de Santa Cruz”, esclarece. Segundo o estatuto autonômico, a faculdade de titulação das terras é do governador, assim como muitas outras competências, como a definição da política de hidrocarbonetos.
“O estatuto é a tentativa de voltar 180 anos, antes da República. Querem um governador com todos os poderes. Poder de nomear o presidente da Corte Eleitoral, o presidente da Corte Suprema de Justiça no departamento, os juízes...”, alerta Saturnino Pinto, presidente do Comitê Cívico Popular de Santa Cruz, entidade criada em 2006 em contraposição ao Comitê Cívico “oficial”.
Para Pedro Nuni, vice-presidente da Confederação dos Povos Indígenas do Oriente Boliviano (Cidob), os impulsores do referendo autonômico nunca levantaram a bandeira pela autonomia. Para ele, essa é uma estratégia para se contraporem à arremetida que o governo e as organizações sociais haviam realizado com a Assembléia Constituinte. “Eles não se sentem garantidos, incluídos no novo texto constitucional”, afirma.
Já de acordo com Edgar Rivero, presidente da direção Departamental do MAS em Santa Cruz, os dirigentes dos partidos tradicionais que perderam as eleições de 2006 se reagruparam em comitês cívicos e governos departamentais e desde então passaram a desenvolver uma conspiração para desestabilizar o governo Evo.

O racismo como arma

de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia)

Com o microfone na mão, a repórter do canal de TV boliviano PAT pergunta às pessoas em frente a um colégio, segurando pedaços de pau, o que estão fazendo ali. Uma delas, um homem branco de cerca de 40 anos, responde: “Estamos protegendo o local para que ninguém venha roubar as urnas”.
Questionado o que aconteceria se alguém viesse, o homem não hesita: “Ah, aí, coitados dos collas”. A escola está localizada no Plan 3000, um dos bairros mais pobres de Santa Cruz de la Sierra, cujos moradores são indígenas provenientes do ocidente do país, conhecidos justamente pela denominação colla.
Na disputa entre oriente e o ocidente do país, o racismo se exacerba. Algumas pichações em Santa Cruz de la Sierra garantem que “depois de 4 de maio, os collas vão ter que ir embora”.

“Nação Camba”

A discriminação é reforçada pela idéia, difundida nos últimos anos, da chamada Nação Camba, que dividiria a Bolívia em duas partes. “Não existe uma cultura camba. O termo era usado pejorativamente pela oligarquia, para chamar um indígena ou um camponês. Era como dizer que eram lixo. Agora eles reivindicam o termo. Pegaram-no para capitalizar frente às massas”, explica Pedro Nuni, vice-presidente da Confederação dos Povos Indígenas do Oriente Boliviano (Cidob).
“Conheço muito camba. Vivemos em paz, compartilhamos. Agora, nos fazem brigar, nos fazem inimigos”, lamenta Mario Barón, presidente da Associação Copacabana, organização de comerciantes do Mercado Central do Plan 3000, na periferia de Santa Cruz de la Sierra. Da etnia quéchua, o dirigente nasceu em Potosí, nos Andes, mas vive há mais de 40 anos na cidade.

Estatuto racista

Segundo Nuni, os migrantes e filhos de migrantes collas (formados por quéchuas e aymaras) representam hoje mais da metade da população da capital do departamento, onde servem como mão-de-obra barata.
Mesmo assim, o estatuto autonômico crucenho não os reconhece, garantindo direitos apenas aos povos indígenas “oriundos” da região: Chiquitano, Ayoreode, Yuracare-Mojeño, Gwarayo y Guaraní. “O Estatuto é racista”, garante Nuni, que lembra ainda que das mais de 20 nações do departamento, apenas essas cinco serão representadas no Conselho Departamental, que funcionará como o órgão legislativo. (IO)

Resultado deve ser usado como trunfo em negociações

de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia)

A partir da aprovação do estatuto autonômico de Santa Cruz no referendo do dia 4, a disputa política na Bolívia tende a se acirrar ainda mais. O cruceño Jerjes Justiniano, do Partido Socialista boliviano, acredita que o país pode tomar dois caminhos.
No primeiro deles, as autoridades do departamento desconheceriam a institucionalidade do governo central e aplicariam o estatuto, tomando as empresas do Estado. Com o Executivo intervindo para impedir, um ciclo de violência poderia ser gerado. “Isso é o que busca o império, para causar um debilitamento do país e a queda de Evo, por gravidade. Assim, nunca mais um índio voltará à presidência, em nenhum país do continente”.

Negociação

A outra possibilidade é que Santa Cruz sente para negociar com o presidente Evo Morales, com o resultado nas mãos como trunfo para obter maiores concessões na nova Constituição. “Vai ser um processo longo e tenso. Essa negociação pode ser uma arma poderosa que também debilite o governo”, preocupa-se Jerjes.
Pedro Nuni, vice-presidente da Confederação dos Povos Indígenas do Oriente Boliviano (Cidob), concorda. “O que os governadores querem é dizer: ´olha, Evo, aqui temos a votação do referendo, agora me dê o que me corresponde`. Só que presidente vai falar para eles se apegarem à nova Constituição”.
Um dia depois do referendo, o governadores de Beni e Tarija, departamentos que têm consultas autonômicas marcadas, respectivamente, para os dias 1º e 22 de junho, condicionaram a abertura do diálogo ao reconhecimento, por parte do governo, dos resultados em Santa Cruz. (IO)

Na cidade bastião de Evo, ninguém votou

Sue Iamamoto
de San Julián (Bolívia)

Em San Julián, no interior do departamento de Santa Cruz, não houve referendo autonômico. Considerado o bastião crucenho do Movimiento Al Socialismo (MAS), partido do governo, o município é formado principalmente por comunidades de colonos – camponeses migrantes de outras regiões que tiveram pequenas propriedades dotadas pelo Estado.
A mobilização começou no dia 3 pela tarde, com uma concentração de alguns milhares de pessoas em frente ao mercado da cidade. Elas determinaram, em assembléia, o bloqueio da estrada que liga a região à cidade de Santa Cruz de la Sierra e o confisco de qualquer urna encontrada nas comunidades.

Bloqueio

Às 22hs (23hs de Brasília) do mesmo dia, seis pontos de bloqueio foram estabelecidos e mantidos por quase vinte horas, através do cumprimento de turnos por parte da população local. Na manhã do dia 4, data da consulta, algumas urnas foram encontradas sob o cuidado de notários e, na maior parte dos casos, foram entregues aos colonos sem maiores conflitos. Contudo, na comunidade de Los Angeles, os fiscais do referendo resistiram ao confisco, gerando um enfrentamento que deixou um jovem ferido.
“Ganha o estatuto e os collas vão embora”, assim ameaçavam os que cuidavam das urnas, fazendo referáência ao nome que se dá aos indígenas da região ocidental do país. Depois de alguns minutos, as urnas foram abandonadas e rapidamente queimadas pelo colonos em um protesto. Com a calma restabelecida, um dos participantes do confronto desabafou: "eles dizem que a gente é de fora, mas eles são estrangeiros, croatas, filhos de espanhóis. Em contrapartida, nós estamos nestas terras há mais de quinhentos anos”.

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