De volta, depois de uma breve viagem e da desativação temporária (!!!) da minha conta no google (o blogspot é do google, aliás, o que não é?), posto abaixo uma entrevista sobre a nova Constituição boliviana, que espera ser aprovada em referendo que ainda não foi marcado.
Uma novidade boa (pelo menos pra mim) é que, finalmente, com muito atraso, comprei uma boa máquina fotográfica, com a qual espero registrar (e compartilhar) meus últimos dois meses neste país encantador.
Brasil de Fato, edição 265 (de 27 de março a 2 de abril de 2008)
Uma Carta Magna de transição
Para especialista boliviana, a nova Constituição do país ainda é liberal, mas garante a inclusão dos povos antes marginalizados
Igor Ojeda
de La Paz (Bolívia)
“Esse novo texto constitucional não é totalmente revolucionário”. A avaliação é de Lucila Choque, investigadora da Universidade Pública de El Alto e da Representação Presidencial para a Assembléia Constituinte (Repac). Para ela, a nova Constituição, aprovada em dezembro, é de transição: ainda é liberal, já que “estamos aceitando ser governados por leis, e as leis foram criadas precisamente pelo Estado como instrumento de uma classe dominante”.
Mesmo assim, ela destaca inúmeros avanços que a Carta Magna pode trazer ao país se for aprovada em referendo – cuja realização permanece indefinida, devido à disputa entre governo e oposição –, principalmente na questão dos direitos dos povos indígenas. Ainda segundo Choque, em entrevista ao Brasil de Fato, o novo texto prevê as autonomias departamentais (principal reivindicação da oposição), mas com uma diferença fundamental em relação às demandas regionais: “o único soberano, que tem direito sobre os recursos naturais, é o Estado”.
Brasil de Fato – Raúl Prada, constituinte do Movimiento Al Socialismo (MAS) e ligado ao vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, disse uma vez que a nova Constituição ainda é liberal; é uma Constituição de “transição”, que consolida o caminho para transformações mais profundas no futuro. A senhora concorda com essa afirmação?
Lucila Choque – Sim. Esse novo texto constitucional não é totalmente revolucionário. É liberal porque ainda estamos aceitando ser governados por leis, e as leis foram criadas precisamente pelo Estado como instrumento de uma classe dominante. Quando Raúl Prada diz “liberal”, refere-se a 1825, quando o país foi fundado, como uma república. Os latino-americanos estavam copiando as fundações na Europa dos Estados-Nações, cujas bases eram hegemonistas, ou seja, uma só língua, um só território, uma uniformidade. Adotamos a democracia, mas uma democracia liberal, representativa. Agora, a brecha se abriu. Se a Carta Magna de 1826 foi realizada por uma elite, a casta crioula, agora, essas revoltas que aconteceram nos últimos anos – posso dizer nos últimos 500 anos – permitiram que esses povos que não gozavam de seus direitos agora participem. Então, não é só liberal. É também comunitária. No novo texto constitucional, já não é dito que a Bolívia é uma república. E sim, que é um Estado. O que se entende por Estado? É o povo. Ou seja, é a maioria marginalizada, oprimida, que está participando. Os outros já estavam. Agora se soma. No entanto, nossos povos, em seu imaginário, não pretendem fundar um socialismo ou comunismo, porque essas são propostas modernistas, e as de nossos povos são anti-modernistas. A correlação de forças atual não permite uma mudança de sistema, e sim o que se está tentando fazer, que os direitos dos povos indígenas se incluam na nova Constituição. Nela, por exemplo, há os direitos fundamentais e há os direitos fundamentalíssimos. Quais são? O direito à vida, à cidadania desde o nascimento, não apenas na hora do voto, o direito à educação, à saúde, à moradia digna e, principalmente, à alimentação. Ou seja, o Estado deve ter uma política alimentar. Essas coisas não existem na Constituição liberal vigente.
Mas, não é uma Constituição indigenista, como diz equivocadamente a direita. É liberal. Porque, no primeiro artigo, diz que a Bolívia é um Estado Social de Direito. Ou seja, está aceitando leis, e leis com direitos. Os que estavam propostos como direitos humanos desde a Europa, e não como nossas necessidades. Na visão anti-modernista de sociedade de nossos povos, não existe o conceito de direito, e sim de dever. Essa visão anti-modernista não tem nada a ver com aversão à tecnologia. E sim que a natureza não é vista como matéria-prima, mas como uma mãe. Deve ser cuidada, e não utilizada como mercadoria para benefício de poucos.
Quais são os principais avanços na nova Constituição?
Em primeiro lugar, o tipo de Estado que se quer adotar. Na Constituição vigente, herdamos um Estado colonial, que buscava a fundamentação da ideologia modernista, que destrói a natureza, e por meio disso, os povos. O maior aporte dessa nova Constituição é no tema de direitos. Está se constitucionalizando, por exemplo, os direitos das crianças e dos adolescentes. Dos idosos. Direito ao trabalho e ao emprego. Quase toda a população está presente com seus direitos. No entanto, porque falamos que ainda é um texto de transição? Porque não está exatamente como os povos queriam. Porque houve uma disputa no cenário da Assembléia Constituinte. Então, os governistas cederam em algumas coisas para garantirem tais direitos. O tema da educação também vai mudar. Pretende-se que o Estado garanta que uma criança, ao nascer, chegue, gratuitamente, pelo menos ao bacharelado.
Quais os foram os retrocessos principais, em relação à proposta popular, no contexto dessa disputa que aconteceu na Assembléia Constituinte?
O novo texto Constitucional é um produto tanto da direita quanto dos povos que estavam participando. A direita trabalhou para que a Constituição vigente, criada por seus pais ou avôs, não se diluísse. Por isso, houve essa disputa. Não aceitam que aqui haja os direitos desses povos, e sim que se mantenha o Estado anterior. Na Constituição vigente, é dito que a Bolívia é um país multiétnico. Os povos eram vistos como etnias, ou seja, como tribos, em estado de desaparecimento. Agora, são considerados nação. Isso eles não querem.
De que maneira as reivindicações da maioria indígenas são atendidas? Quais artigos garantem a inclusão dessa maioria?
Desde o artigo 1, que diz que a Bolívia é um Estado Plurinacional Comunitário. O artigo 5 diz que o idioma oficial não é somente o castelhano, e sim também os idiomas das nações e povos indígenas originários. Além disso, são todos citados no texto. Não se diz simplesmente “as etnias” [A Bolívia possui 36 nações originárias]. No capítulo de direitos, por exemplo, nos civis e políticos, o artigo 21 diz que os bolivianos e as bolivianas têm direito à auto-identificação cultural. No capítulo 4, sobre os direitos das nações e povos indígenas originários e camponeses, há muitos artigos que foram tirados da Declaração de Direitos dos Povos Indígenas da ONU [lançada em setembro de 2007].
Sob quais preceitos a autonomia indígena está colocada?
O único proprietário dos recursos naturais é o Estado. Com a autonomia, os povos serão consultados sobre a gestão desses recursos e, além disso, serão beneficiados de uma maneira mais direta, não mais com esse rodeio burocrático, em que o Estado outorga primeiro para os governos departamentais, depois para os municípios e, se sobrar algo, para os povos. O povoado onde se encontre petróleo ou gás, por exemplo, vai ser consultado se vende ou não, senão, ele vai ser prejudicado. Se o Estado decide, junto com eles, vender, produzir, exportar ou industrializar, essa sociedade vai se beneficiar primeiro.
A autonomia contempla também a maneira de autogovernar-se, as formas como se elege. A sociedade boliviana não é homogênea. Em alguns lugares, os representantes são eleitos por meio de assembléias, e não pelo voto. Em outros, há uma rotação de pessoas. Isso tudo existe, mas não está formalizado na Constituição vigente.
Quais são as diferenças entre a autonomia departamental proposta na Constituição e aquela dos estatutos autonômicos da oposição?
Está bem claro que os estatutos autonômicos querem dividir a Bolívia em duas. Pretendem fazer suas próprias leis, que beneficiem somente os latifundiários, em detrimento dos povos indígenas que estão na região. Pretendem adotar um sistema de governo centralista. Porque é uma elite que se apoderou das decisões. Por trás disso, estão as transnacionais, a embaixada estadunidense, empresas privadas, que sempre usaram os recursos naturais da Bolívia como matéria-prima, como mercadoria, para encher seus bolsos. Porque, mais que tudo, essa nova Constituição irá prejudicar os latifundiários.
E no novo texto constitucional, como está colocada a questão da autonomia departamental?
Propõe que os departamentos tenham certas competências, inclusive legislativas, mas com o reconhecimento de que o único soberano, que tem direito sobre os recursos naturais, é o Estado [os estatutos autonômicos pretendem dar aos departamentos o poder sobre os recursos em seu território]. E, como dissemos antes, o Estado é o povo. Segue-se pensando na unidade, na integração.
Em relação ao modelo econômico, a senhora acredita que a nova Constituição caminha no sentido de desmontar o neoliberalismo no país?
Sim.
Em que pontos?
Por exemplo, quando se propõe que os recursos não sejam depredados de maneira perversa como faz o capitalismo, e sim cuidando do meio ambiente. No entanto, isso ainda é letra morta. O que se tem que fazer é políticas econômicas novas que cuidem do meio ambiente e dos povos. Está dentro do conceito de modelo de desenvolvimento sustentável.
Então, na medida que o Estado gesta o desenvolvimento, é uma forma de desmonte do neoliberalismo?
Acredito que sim. Não agora. Seguimos no modelo de desenvolvimento neoliberal. Continuamos com o saque. Porque sequer o governo Evo Morales está em um novo tipo de Estado. Está administrando esse Estado. Agora, a partir disso, certamente vai ter um trabalho muito forte para mudar isso.
E em relação ao latifúndio? O texto fala de um limite à extensão das terras, que será de cinco mil ou dez mil hectares [a população deverá decidir o tamanho máximo em um referendo]. Mas, ao mesmo tempo, o texto fala em função econômica e social. Não poderá existir, de nenhuma maneira, propriedades maiores que cinco mil ou dez mil hectares ou estas serão respeitadas quando cumprirem tal função?
Lamentavelmente, esses latifundiários não são verdadeiros trabalhadores da terra. Quando se diz que se deve cumprir uma função econômica social, isso quer dizer que os povos indígenas camponeses não podem estar isolados e abandonados. Não se pode deixar morrer de fome um povo quando há terra, em que este poderia trabalhá-la. Esses povos estão vivendo, na verdade, como escravos. Porque nunca tiveram título, e não têm outra alternativa que trabalhar nesses latifúndios. No entanto, se houver propriedades que excedam os dez mil hectares, e estiverem trabalhando nela, não vão tirar essas terras do proprietário. Porque realmente lhes estão dando uma função econômica e social.
QUEM É
Investigadora e docente da Universidade Pública de El Alto (UPEA), Lucila Choque trabalha para a Representação Presidencial para a Assembléia Constituinte (Repac), entidade vinculada ao Executivo que foi criada com o objetivo de apoiar o processo Constituinte e pós-Constituinte, estabelecendo a relação entre a sociedade civil e a Assembléia. É autora do livro “La Guerra del Gas Contada por Mujeres”.
domingo, 3 de agosto de 2008
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