Finalmente, depois de 32 dias de greve de fome, Aminetu Haidar pôde voltar para El Aaiún, a capital do Saara Ocidental, país ocupado pelo Marrocos desde 1975. Ela tinha sido expulsa pelo governo marroquino para as Ilhas Canárias, na Espanha, e desde então lutava para poder voltar para sua família. Mais detalhes sobre o caso e a causa, clique aqui e aqui.
No mínimo, o ocorrido tornou mais visível a luta do povo saarauí contra a opressão marroquina. Quer dizer, isso no resto do mundo - sobretudo na Europa. Pois, estranhamente, ou não, a imprensa brasileira não repercutiu absolutamente nada.
A greve de Aminetu deixou evidente também a gigante hipocrisia das potências ocidentais, que fazem campanhas sistemáticas "pela democracia" mas apoiam monarquias absolutistas como o Marrocos. Tudo por interesses econômicos.
Aqui, detalhes sobre a chegada dela a El Aaiún, hoje de madrugada (a polícia marroquina reprimiu os manifestantes que a esperavam).
Abaixo, texto publicado na mais recente edição do Brasil de Fato, quando ela havia completado um mês de greve de fome. O artigo mostra como era o seu dia-a-dia. Vale a pena ler.
Brasil de Fato, edição 355 (17 a 23 de dezembro de 2009)
Um mês em greve de fome
Proibida de voltar a seu país, a ativista do Saara Ocidental, Aminetu Haidar, segue em jejum contra os governos de Marrocos e Espanha
da Redação
No dia 15, a ativista do Saara Ocidental, Aminetu Haidar, completou 30 dias de greve de fome no aeroporto de Lanzarote, nas Ilhas Canárias, na Espanha. Como o Brasil de Fato relatou em sua edição 352, ela protesta pelo direito de voltar para casa.
Em meados de novembro, Aminetu, de 42 anos, foi impedida de retornar a El Aaiún, a capital de seu país, pelo governo de Marrocos, que ocupa o Saara Ocidental há 34 anos. Mandada para Lanzarote sem passaporte e contra sua vontade, a ativista foi proibida pela Espanha de tentar voltar, justamente por estar sem o documento. Sem uma solução à vista, Aminetu iniciou o jejum.
Desde então, a militante independentista saarauí (do Saara Ocidental) e seus apoiadores em todo o mundo acusam a monarquia marroquina de não querer resolver o impasse e o governo espanhol de não pressionar a nação do norte africano para tal. Os dois países mantêm fortes vínculos econômicos, e usufruem, inclusive, das riquezas saarauís – principalmente fosfato e pesca.
Aminetu, conhecida como a “Mahatma Gandhi” do Saara Ocidental, tem dois filhos (de 13 e 15 anos), que a esperam em El Aaiún. Ela já realizou uma greve de fome antes, que durou 45 dias. Foi em 2005, em uma das duas vezes em que esteve detida nas prisões marroquinas. Esse jejum a deixou com sérias sequelas físicas, o que torna ainda mais perigosa a atual greve de fome.
Confira abaixo um testemunho sobre a rotina de Aminetu Haidar no aeroporto de Lanzarote:
Dez dias no aeroporto com Aminetu Haidar
Qual será o motivo para que ninguém faça nada, já que é algo tão simples, que uma mulher volte para sua casa com seus filhos?
Carmen Giner Briz
Domingo, 29 de novembro, dia nº 14 da greve de fome. Aminetu desmaia na reunião com Agustín Santos, chefe de gabinete do chanceler espanhol, Miguel Ángel Moratinos. Levam-na ao cômodo onde normalmente descansa. Não consegue sair do quarto de novo.
O lugar onde Aminetu se instala durante os dias no aeroporto fica no segundo andar, no setor de desembarque do terminal 1, ao lado de uns bancos, da mesa para recolher as assinaturas em seu apoio e de um colchonete onde ela se senta para falar ou se deita quando não consegue mais. Além disso, seus amigos põem alguns carrinhos para protegê-la dos turistas que vêm ofuscados pela luz exterior e que, cegados, podem vir a pisá-la, e de todas as pessoas que tentam se aproximar por distintas razões. Esses carrinhos também servem para pendurar faixas explicativas de sua situação.
Aminetu está dormindo em um pequeno cômodo pertencente à garagem dos ônibus do aeroporto, junto a uma pessoa que a acompanha todas as noites. É um quartinho sem luz, sem ventilação, sem janelas.
No cômodo ao lado, junto às máquinas de café, sanduíches e sucos, dormem entre 15 e 20 pessoas, amigos e colaboradores de Aminetu. Os que não cabem dormem na rua. As condições e esse amontoamento são parecidos aos da Cadeia Negra de El Aaiún.
Todos os dias, após acordar, ela precisa recorrer um corredor, entre os ônibus, na rua, à intempérie, para posteriormente entrar no aeroporto pelas garagens de saída, pegar o elevador e chegar ao lugar mencionado em uma cadeira de rodas.
Sofrimento
Segunda, dia 30, pela manhã: levanta-se o acampamento, todo mundo recolhe mantas, colchonetes, malas e demais utensílios. Muitos sobem com seus computadores e outros ficam dando orientações. Aminetu se levanta e sobe com sua cadeira de rodas. Atrás, vai outro carrinho com seu colchonete e suas mantas.
No elevador, me vê, e sua cara se ilumina, como sempre acontece quando sorri. Tenta se inclinar para beijar-me, mas a dor nos ossos que sente na altura da nuca a impede. Faz um gesto de dor, que tenta dissimular com um sorriso. Mesmo assim, me dou conta de seu sofrimento e esforço. Pergunto como está, pondo-me de cócoras a seu lado, e ela, como sempre, diz: “bem”.
Senta em seu lugar e as pessoas vão chegando para vê-la. Gente importante, parlamentares, senadores, políticos, pessoas da cultura, da arte, delegações de distintas comunidades pertencentes a distintas associações de amigos do povo saarauí... também turistas que ouviram falar da história nos meios de comunicação, curiosos que tentam se enfiar entre a multidão, e a imprensa.
Ela recebe todos, e para todos tem palavras de carinho, compreensão. Os escuta até o esgotamento. Quando os visitantes vão embora, tenta descansar entre o bulício das pessoas, os carrinhos barulhentos, os motores dos aviões e os flashes das máquinas fotográficas que machucam sua vista.
Às vezes penso: por que ninguém lhe diz que deixe a greve de fome, que tanto sofrimento lhe está causando? Outras vezes, penso: qual será o motivo para que ninguém faça nada, já que é algo tão simples, que uma mulher volte para sua casa com seus filhos? Têm que existir muita corrupção e suborno para que deixem morrer essa mulher.
Pouco a pouco, percebo sua forte convicção e a dor que lhe produz o fato de sua decisão não ser respeitada. Acho que todos nos encontramos entre a cruz e a espada. Por um lado, o carinho que temos por ela, e o fato de querermos que esteja bem e que não lhe aconteça nada; por outro, nossa obrigação em respeitá-la.
Solidariedade
Não temos televisão, e poucos computadores têm internet. Não sabemos muito bem o que está saindo do lado de fora, mas acho que ninguém se dá conta que ela só consegue estar um par de horas atendendo as pessoas, que o resto é para que ela descanse e se recomponha.
Um dos dias em que vi Aminetu mais animada é quando veio o escritor português José Saramago, e também os dias em que lhe acompanhou Marselha, da Fundação Robert F. Kennedy. A cada dia tem menos forças para estar no andar de cima, e vai reduzindo suas horas por lá. A cada dia tem mais problemas para conseguir dormir. Estamos divididos: uns embaixo com ela, outros em cima, com os computadores.
Na sexta-feira, 4 de dezembro, quando se cumprem 19 dias de greve de fome, por volta das 6 da tarde, alguém me diz que Aminetu provavelmente vai embora a seu país em vinte minutos. As caras de todos se iluminam e todo mundo começa a se mover de maneira nervosa. Uma rádio me entrevista pelo telefone. É quase impossível para mim manter a conversa. Pouco a pouco a notícia vai se estendendo e cada vez há mais pessoas e meios de comunicação. Em seguida, chega uma ambulância e, pouco depois, sob uma forte aclamação, aparece Aminetu, que vai ao banheiro e depois é introduzida na ambulância. Com as mãos, nos lança beijos e nos diz adeus.
Assim que a ambulância parte, estoura um grande júbilo. Os saarauís pulam, gritam, enquanto os espanhóis choram. Depois, todos subimos ao aeroporto para esperar mais notícias. Em seguida, começam rumores de que o avião não vai decolar, de que tudo é uma fraude, um teatro orquestrado pela Espanha para que a opinião pública acredite que eles fazem o que está a seu alcance. A única coisa que o governo é capaz de fazer é rir de uma mulher doente que leva vinte dias em greve de fome, a qual estão dispostos a deixar morrer. O Marrocos confirma: não chegaram a nenhum acordo, não houve reuniões.
Espoliação
Nesse dia, Aminetu não volta mais a subir para o aeroporto. Passa uma noite ruim. O médico, pela manhã, me diz a palavra técnica que não sou capaz de recordar, mas se trata de uma taquicardia, produzida pelo grande esforço de entrar na ambulância, subir e descer andando no avião, e a tensão emocional. Ela chegou a ligar para seus filhos e dizer-lhes que estava voltando.
E outro dos muitos desatinos de nosso governo: ela tem um salvo-conduto para sair, mas, ao entrar depois dessa viagem frustrada, a guarda civil impediu, no começo, sua entrada, por voltar indocumentada. Passa todo o dia em um quartinho que lhe indicaram.
O governo espanhol pressiona Aminetu. Não entendem por que ela não aceita a nacionalidade espanhola. Parece que lhes custa entender que ela se sente orgulhosa de ser saarauí, que quer ter o passaporte que lhe permita voltar para sua casa, para sua terra, com os seus.
Eu me pergunto por que não dão a todos os membros de nosso governo um passaporte somaliano, depois de metê-los em um avião à força, para ver se assim começam a entender. Mas eles entendem perfeitamente. O que acontece é que há muitos milhões em jogo. Recordemos que somente dos fosfatos, o Marrocos expolia o povo saarauí em 1,5 bilhão de euros cada ano.
Em toda a Espanha, na minha cidade Madrid, cada dia há uma manifestação. A população se mobilizou. Nos meios de comunicação, é a notícia mais importante. Os jornais ocupam até suas cinco primeiras páginas falando de Aminetu, mas, para nosso governo, não é suficiente, o povo espanhol não lhe importa.
Pressões
É o dia 21 de greve de fome, já anoitecido, e estamos várias pessoas perto da porta de seu cômodo quando chega um grupo de sete ou oito pessoas em grande velocidade. Ao ver que vêm direto ao quarto de Aminetu, me aproximo para perguntar o que querem, e dizer a eles que não podem entrar. Mas não consigo terminar a frase. Sem parar, me dizem que é o juiz e que vai entrar. Tento chamar o Edi, a pessoa que está dentro com Aminetu, mas não dá tempo. Eles entram e expulsam Edi do quarto, fazendo com que a pobre Aminetu fique sozinha com esses oito indivíduos, que entram e fecham a porta.
Ao saírem os indivíduos, Aminetu declara que a trataram pior que no Marrocos, que a acossaram psicologicamente. O câmera da plataforma se põe a gravar e o juiz e os policiais querem tirar dele a câmera e a fita. Edi chama todos os meios de comunicação para que estes gravem a cena.
A tensão é máxima, o juiz vai embora, mas continua no aeroporto reunido com o médico de Aminetu. Os meios continuam na expectativa, e vemos quando, nas dependências do aeroporto contíguas à garagem em que estamos, chegam os furgões da polícia nacional e da guarda civil. Chegam em torno de 20 ou 30 furgões. O médico volta por volta das 2 da manhã e, posteriormente, a polícia se vai.
Ao amanhecer, Aminetu declara que desde esse momento prescinde de seu médico pessoal, já que o juiz o obrigou a dar seu histórico médico. Ela quer liberar seu médico da pressão a que se vê submetido, assim como preservar sua intimidade.
O final desta história inconclusa também depende de nós, da capacidade que tenhamos de quebrar nossa rotina, nossa forma de viver, para lutar pela dela, para que se faça justiça. Todos, desde onde possamos e como possamos, temos que lutar para que esse possível final se converta em um princípio.
Carmen Giner Briz é ativista do Western Sahara Resource Watch (WSRW, Observatório dos Recursos do Saara Ocidental) da Espanha
Tradução: Igor Ojeda
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