Com bastante atraso, posto abaixo a matéria sobre o retorno de Aminetu ao Saara Ocidental. Dias depois de sua volta, ela ainda permanece, na prática, em prisão domiciliar.
O regresso da “Gandhi” do Saara
A saaráui Aminetu Haidar interrompe greve de fome após obter permissão do Marrocos para voltar para casa
Igor Ojeda
da Redação
Foram 32 dias sem ingerir alimentos. Quase um mês com o corpo débil, sentindo náuseas, perdendo constantemente a consciência. Mas, no final, a ativista pela independência do Saara Ocidental, Aminetu Haidar, alcançou seu objetivo. Na primeira hora do dia 18 (ainda dia 17 no Brasil), o avião que a levava pousou no aeroporto de El Aaiún, capital do seu país, ocupado desde 1975 pelo vizinho Marrocos. Ela, enfim, voltava para casa e seus filhos.
Aminetu havia entrado em greve de fome em 16 de novembro, em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, na Espanha (leia sobre o assunto nas edições 352 e 355 do Brasil de Fato). Pois foi para este local que o governo marroquino a enviou, sem passaporte, após ter impedido sua entrada em El Aaiún. Na ocasião, ao preencher o formulário da imigração, a ativista escreveu “Saara Ocidental” no espaço reservado ao “País de residência”, o que teria motivado sua expulsão. O governo da Espanha, por sua vez, permitiu seu ingresso, mas proibiu seu retorno, justamente por não portar passaporte.
Durante 32 dias, entre longas negociações entre Marrocos e comunidade internacional – acusada por muitos de cúmplice e omissa – o impasse permaneceu, enquanto Aminetu se debilitava a olhos vistos. Somente um acordo negociado entre o país africano, a Espanha e a França permitiu uma solução: a militante poderia voltar por “razões humanitárias”(leia texto nesta página).
“Triunfo”
“Este é um triunfo para todas as pessoas livres do mundo. É uma vitória da justiça e dos direitos humanos […] O povo saaráui está consciente de que o dia da liberdade está muito próximo”, disse Aminetu, em entrevista coletiva em sua casa. “Agora, tenho que recuperar minha saúde. Levarei pelo menos dois meses. Mas, depois, penso continuar lutando”, completou a ativista, conhecida como a “Gandhi” do Saara Ocidental por sua militância pacífica pela independência do seu país.
Para Bahia Mahmud Awah, escritor, poeta e investigador saaráui, o retorno de Aminetu à sua casa gé a confirmação da identidade nacional saaráui diante da tentativa do Marrocos de impor que o Saara Ocidental é marroquino. Ela regressou como saaráui sem as condições que o rei exigia: aceitar a nacionalidade marroquina e pedir perdão ao regimeh.
Já na opinião de Emiliano Gómez López, presidente da Associação Uruguaia de Amizade com a República Árabe Saaráui Democrática (RASD), o fim do jejum da ativista significa uma vitória da causa independentista saaráui e uma derrota moral e política para a monarquia marroquina. “Uma mulher sozinha, uma simples militante pelos direitos humanos, foi capaz de entortar o braço ferrenho do rei Mohamed VI e obrigá-lo a suspender a ordem de expulsão ditada contra ela”.
“Derrota” marroquina
Segundo ele, depois de um mês de uma campanha “nacionalista” contra Aminetu impulsionada pela monarquia, aliados políticos e a imprensa local, o governo marroquino foi obrigado a “inventar” o pretexto humanitário para “justificar o regresso de Aminetu e disfarçar a tremenda derrota causada pela firmeza da mulher saaráui”.
A “vitória” de Aminetu, entretanto, transcendeu a conquista pessoal, de acordo com o espanhol Santiago Jiménez Gómez, responsável do Gabinete de Estudos e Comunicação Permanente da Coordenadora Estatal de Associações Solidárias com o Saara Ocidental (CEAS). Segundo ele, nos últimos anos, a população saaráui vinha perdendo a confiança na legitimidade “de um direito internacional invocado tantas vezes quanto menosprezado”, devido à falta de solução para um território já reconhecido pela ONU como passível de descolonização. Tal realidade, segundo Santiago, estava fazendo amadurecer na cabeça dos militantes a convicção da necessidade de um novo conflito armado como única saída, como ocorreu entre 1975 e 1991.
“O que o gesto de Aminetu Haidar fez mudar? Agora, os e as saaráuis se sentem menos ignorados ou silenciados pela história e orgulhosos por formar parte de uma sociedade que cria consciências tão decididas, tão generosas e tão convencidas de seu esforço e de seu sacrifício como Aminetu, que, além disso, não deixou em nenhum momento de se sentir mulher e mãe, um espelho no qual todos e todas se viram refletidos e cuja imagem lhes proporcionou novas forças e uma renovada capacidade de luta pelo que consideram justo”, analisa.
Visibilidade
No entanto, mesmo que os 32 dias de greve de fome da independentista do Saara Ocidental não tivessem gerado os efeitos mencionados, só a grande visibilidade internacional que a causa saaráui ganhou com tal ato já seria suficiente para se fazer um balanço altamente positivo do ocorrido.
“O mundo inteiro está a par do que acontece diariamente aqui. Agora, a causa saaráui está sendo discutida em alto nível”, declarou Aminetu à imprensa. Segundo Bahia Awah, a greve de fome da militante “reativou o processo [da luta saaráui], rompendo o bloqueio informativo que tem rodeado o conflito do Saara Ocidental”.
Na avaliação de Santiago, esse ganho de visibilidade poderia trazer uma maior vontade dos governos e da ONU para solucionar a questão, “algo tão aparentemente simples como que uma comunidade pendente de descolonização assuma sua responsabilidade acerca de seu destino e de seus assuntos”.
De acordo com Bahia, no entanto, a transformação dessa maior visibilidade do conflito em resultados concretos dependerá dos militantes saaráuis que, segundo ele, poderiam seguir a mesma linha de ação e mobilização do movimento midiático solidário que esteve ativo durante o jejum de Aminetu.
A prisão domiciliar de Aminetu
da Redação
A independentista saaráui Aminetu Haidar voltou para casa no dia 18. Mas, desde então, as forças de segurança marroquinas vêm impondo um cerco fechado à sua residência. “A polícia só deixa entrar meus familiares”, afirmou a ativista ao jornal espanhol El País.
Segundo ela, seus companheiros na defesa dos direitos humanos no Saara Ocidental são alguns dentre os muitos impedidos de visitá-la. “Peço ao governo [do Marrocos] que me leve para a cadeia e ponto, e que termine com essa estratégia estúpida”, completou. Na manhã do dia 19, até seu médico pessoal, Domingo de Guzmán, foi barrado, sendo liberado somente após a intervenção da própria Aminetu.
Repressão
Já no momento de seu retorno as forças policiais mostraram como seriam os dias que se seguiriam. Segundo a imprensa internacional presente em El Aaiún, capital do Saara Ocidental, dezenas de agentes rodeavam o aeroporto, enquanto outras dezenas patrulhavam pela cidade e cortavam o acesso às ruas adjacentes da casa da ativista.
Ao mesmo tempo, dezenas de cidadãos saaráuis, jovens em sua maioria, esperavam a chegada da militante, gritando palavras de ordem contra Marrocos e a favor da independência. Durante várias horas, ocorreram enfrentamentos.
Até o fechamento desta edição (dia 22), Aminetu continuava sem comer, já que 32 dias de greve de fome exigem que ela ingira alimentos de forma gradual. Segundo afirmou seu médico ao El País, a ativista continua sofrendo com a perda de peso, hipotensão, enjôo e vômitos. “O processo a partir de agora será delicado. Começaremos pela reidratação oral para seguir com a realimentação”, disse. (IO)
Nos bastidores, uma vitória do Marrocos
Em troca da permissão para o retorno de Aminetu, governos espanhol e francês emitiram comunicados reconhecendo a legislação marroquina sobre o território do Saara Ocidental
da Redação
“O governo da França mente, engana e manipula, o da Espanha faz o mesmo e as própria ONU confunde mais do que esclarece. E o que dizer das mentiras e manhas das autoridades de Marrocos?”, dispara o espanhol Santiago Jiménez Gómez, responsável do Gabinete de Estudos e Comunicação Permanente da Coordenadora Estatal de Associações Solidárias com o Saara Ocidental (CEAS).
Desde 1975, quando o Saara Ocidental foi ocupado pelo Marrocos após as tropas da Espanha deixarem o território, os ativistas saaráuis e seus apoiadores vêm denunciando a omissão e cumplicidade da comunidade internacional diante das violações praticadas pela monarquia marroquina.
Dentre eles, destaque (negativo) para Espanha e, principalmente, França. “O Estado francês é o mais firme e poderoso aliado do reino de Marrocos. É quem garante o apoio político, diplomático, financeiro e militar para esta monarquia corrupta, totalitária e com ambições expansionistas sobre os países vizinhos”, indigna-se Emiliano Gómez López, presidente da Associação Uruguaia de Amizade com a República Árabe Saaráui Democrática (RASD), o Estado saaráui não reconhecido pelo Marrocos.
Assim, apesar das gestões espanholas e francesas para que as autoridades marroquinas permitissem a volta da ativista Aminetu Haidar a El Aaiún, capital do Saara Ocidental, estes Estados não deixaram de favorecer o país do rei Mohamed VI.
Apoio político
“O rei concordou com o regresso de Aminetu por 'razões humanitárias', mas, na realidade, aceitou porque estes governos [Espanha e França] se comprometeram a dar um maior apoio político à sua tese da 'autonomia sob a soberania marroquina' para o Saara Ocidental”, denuncia Emiliano, referindo-se à proposta do Marrocos de conceder ao país ocupado uma “ampla autonomia”, mas não a independência. “Quer dizer, o resultado final desta chantagem marroquina foi o fortalecimento da política de ocupação do Saara Ocidental”, conclui.
Tal apoio político por parte de Espanha e França se expressou claramente nos comunicados que ambos governos emitiram no mesmo dia em que Aminetu Haidar pôde voltar a seu país, o que deixou evidente quais foram as moedas de troca utilizadas nas negociações para o fim do impasse.
O texto francês afirmava que o presidente Nicolas Sarkozy “acolhia a proposta do reino de Marrocos de uma ampla autonomia no marco de uma solução política sob os auspícios da ONU. À espera dessa solução, aplica-se a legislação marroquina [sobre o território saaráui].
Já o comunicado espanhol insta o governo de Mohamed VI a permitir o regresso de Aminetu, afirmado que tal gesto “poria uma vez mais de manifesto seu compromisso com a democracia e a consolidação do Estado de direito”. E conclui: enquanto se resolve a contenda, a Espanha constata que a lei marroquina se aplica no território do Saara Ocidental”.
Em seguida, o Ministério de Assuntos Exteriores do Marrocos também emitiu seu comunicado, através do qual comemorava as posições de Espanha e Franca e criticava a atuação de Aminetu, que não guardaria relação com a promoção dos direitos humanos.
Interesses econômicos
Segundo o jornal espanhol El Mundo, o acordo entre marroquinos, espanhóis e franceses começou a ser gestado no dia 13. O objetivo seria encontrar uma solução para que Aminetu pudesse voltar sem ser obrigada a pedir perdão ao rei Mohamed VI – que este exigia e ela rejeitava – e de maneira que o Marrocos não ficasse humilhado diante da opinião pública.
No dia 19, o embaixador marroquino na Espanha, Omar Azziman, manifestou sua plena satisfação com o desfecho do impasse. “Fica claro que o Saara Ocidental está sob o império do direito marroquino”, disse à imprensa.
Já a Frente Polisario, instância que reúne política e militarmente as forças independentistas saaráuis, divulgou um comunicado acusando o país governado pelo primeiro-ministro José Luis Zapatero de ter utilizado “como moeda de troca a outorga de validez às leis marroquinas em um território sobre o qual a ONU não reconhece ao Marrocos nenhuma soberania”.
A conivência com o governo de Marrocos evidenciada por Espanha e França, em particular, e pela União Europeia (UE), de maneira geral, é explicada em grande parte por fortes interesses econômicos. Exemplo disso são as negociações entre UE e o país africano para a assinatura de um tratado de livre comércio, que tem grande chance de se concretizar no primeiro semestre de 2010, quando a presidência rotativa da instância europeia será ocupada justamente pela Espanha. (IO)
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário