quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Terremoto é desastre natural, mas a pobreza extrema, não

Abaixo, parte da matéria sobre o terremoto no Haiti publicada na atual edição do Brasil de Fato (nº 360). Está na página na internet do jornal. Aqui, a entrevista na íntegra (utilizada em parte na matéria) sobre o assunto com o historiador Mário Maestri. Vale a pena.

Terremoto é desastre natural, mas a pobreza extrema, não

Mídia relaciona efeitos graves do tremor de terra no Haiti com a pobreza extrema, mas não diz por que o país caribenho é tão subdesenvolvido


Eduardo Sales de Lima
e Igor Ojeda
da Redação

As imagens das TVs de todo o mundo mostram um verdadeiro inferno. Destruição total, corpos estirados, homens e mulheres aos prantos. Os relatos dos repórteres nos jornais que foram a campo não são diferentes. Saques a supermercados, violência, desespero.

Quase em uníssono, os meios decretaram: os efeitos do terremoto de 7 graus na escala Richter ocorrido no dia 12 no Haiti são ainda mais graves devido à extrema pobreza em que vive a população do país, o de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do hemisfério ocidental. A análise um tanto óbvia não é incorreta, mas a imprensa em geral “esqueceu-se” de explicar o porquê de tanta miséria, praticamente naturalizando o subdesenvolvimento acentuado do Haiti.

“É preciso que se diga que se, de fato, as causas da tragédia são naturais, nem todos os efeitos o são”, opina Aderson Bussinger Carvalho, advogado e ex-conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que visitou o país em julho de 2007. “É preciso saber que indústrias exploram a mão-de-obra barata haitiana, cujos produtos são exportados para o mercado dos EUA, assegurando imensos lucros que não se revertem em favor do povo. As casas construídas somente com areia, a ausência de hospitais, a falta de luz e água... tudo isso vem de antes do terremoto”, afirma.

Pobreza extrema
Atualmente, 80% dos haitianos vivem abaixo da linha de pobreza, sendo que 54% se encontram na extrema pobreza. A mortalidade infantil é de cerca de 60 mortes para cada mil nascimentos (no Brasil, a proporção está em torno de 22 para mil), a expectativa de vida é de 60 anos e o analfabetismo atinge 47,1% da população.

Além disso, o país sofre com a falta de infra-estrutura e indústria nacional. As estradas são bastante precárias, assim como as áreas de energia, telecomunicações e transporte. Dois terços dos haitianos dependem da agropecuária para sobreviver, enquanto apenas 9% trabalham em fábricas, em sua maioria nas chamadas maquiladoras, unidades especializadas em produção de manufaturados para exportação que se utilizam de mão-de-obra barata. “Durante o ano de 2009, percorremos todo o Haiti. Nossa brigada percorreu dez departamentos e conhecemos a situação de pobreza em que vive a imensa maioria da sociedade haitiana”, relata José Luis Patrola, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e integrante da Brigada Internacionalista Dessalines da Via Campesina, que atua com as organizações camponesas do país.

Triste e estranha realidade para uma nação que foi a segunda das Américas a se tornar independente (da França) e a primeira a abolir a escravidão, em 1804. Ou seja, que tinha tudo para oferecer uma vida digna para seus habitantes.

Construção histórica
“A pobreza extrema do Haiti é uma construção histórica bi-centenária, produto da incessante intervenção colonialista e imperialista, em boa parte devido precisamente a ter sido o Haiti a primeira e única nação negreira onde os trabalhadores escravizados insurrecionados obtiveram a liberdade. Isso após derrotar expedições militares francesa, inglesa e espanhola”, explica Mário Maestri, historiador e professor do Programa de Pós Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF), no Rio Grande do Sul.

Segundo ele, a partir de então, o Haiti passou a ser temido pelos EUA, pois poderia servir como exemplo aos escravos estadunidenses. Assim, o país passou a “ser objeto de bloqueio quase total, desde seus primeiros anos, pelas nações metropolitanas e americanas independentes. Já em 1825, foi obrigado a pagar, sob pena de agressão militar, pesadíssima indenização à França. Conheceu nas décadas seguintes intervenções militares dos EUA, que, mesmo após a desocupação, em 1934, transformaram o país em semi-colônia, sobretudo através das sinistras ditaduras dos Duvaliers, Papa-Doc e seu filho [entre 1957 e 1986]”.

De acordo com Osvaldo Coggiola, professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP), o Haiti não é uma exceção na região em que se encontra, mas um caso extremo da dominação imposta pelos países centrais do capitalismo. Assim, para ele, “atribuir seus males à incapacidade da sua população, descendente de escravos forçados a trabalhar na ilha pelos colonialistas franceses, é um conceito abertamente racista. A classe dominante, ela sim, é corrupta até a medula. Se chegar ajuda para o governo local, vão roubar, para vender e chantagear a população”.

Casas amontoadas
Além da pobreza, outro fator vem sendo apontado como potencializador dos efeitos do terremoto, embora ambos estejam fortemente vinculados: a grande quantidade de pessoas vivendo nas cidades (especialmente na capital, Porto Príncipe) em casas amontoadas e construídas precariamente, o que fez com que desabassem mais facilmente. Segundo Patrola, o desastre deixou evidente a precaridade do sistema urbano no Haiti. “Porto Príncipe e as favelas de Cité Soleil e Bel-air foram construídas de forma espontânea com a ausência de recursos mínimos de construção civil. Isso potencializou a destruição”.

Aqui, outra triste e estranha realidade: como se explica que um país cuja agricultura representa 28% do PIB (no Brasil, esse índice é de 7%) possua um índice de êxodo rural tão acentuado e tenha 47% de sua população vivendo na zona urbana?

“Pela eliminação das culturas agrárias locais pelos produtos importados, inclusive os das famosas 'ajudas internacionais'. O subdesenvolvimento eliminou as florestas locais, pois o carvão é quase a única fonte de energia no interior. Em 1970, o Haiti era quase auto-suficiente em alimentação, hoje importa 60% do que come”, responde Osvaldo Coggiola. Segundo dados da ONU, entre 2005 e 2010, a população das cidades haitianas cresceu 4,5% por ano.

Migração
O historiador Mário Maestri explica que a revolução de 1804 teve como consequência a divisão dos latifúndios existentes em lotes familiares, que retomaram as tradições camponesas africanas, proporcionando uma independência alimentar. No entanto, “as intervenções imperialistas, com a colaboração das frágeis e corruptas elites negras e mulatas, desdobraram-se para metamorfosear a agricultura familiar-camponesa em mercantil. Levantes camponeses foram duramente reprimidos, para reconstituir a grande propriedade”, diz.

Patrola, da brigada da Via Campesina no Haiti, responsabiliza ainda as políticas neoliberais mais recentes pelo “desmonte” do campo. “A abertura comercial está destruindo a agricultura haitiana. O Haiti é o quarto importador de arroz dos Estados Unidos”, diz.

O resultado de todo esse processo vem sendo uma grande migração para a cidade. E hoje, de acordo com Maestri, as enormes massas de miseráveis urbanos são vistas como mão-de-obra extremamente barata para as indústrias maquiladoras que se estabeleceram no Haiti.

Um terremoto oportuno?

Envio de militares estadunidenses e de um novo contingente da Minustah farão o número per capita de tropas no país caribenho superar o do Afeganistão pré-Obama

Eduardo Sales de Lima
e Igor Ojeda
da Redação

Se o terremoto que destruiu o Haiti no dia 12 serviu como pretexto para os EUA ocuparem diretamente o país ainda não de pode afirmar com toda segurança, mas o fato é que o governo de Barack Obama já anunciou o envio de 10 mil militares à nação caribenha – cinco mil já estavam chegando ou a caminho no dia 19, data do fechamento desta edição. Em vez de médicos, enfermeiros e engenheiros, máquinas de guerra como helicópteros, navios e porta-aviões.

Se o contingente total da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), comandada pelo Brasil, aumentar para 12.651, como de fato pode ocorrer, a presença militar estrangeira no Haiti será de quase 24 mil homens, num país de 9 milhões de pessoas.
Em um recente artigo, o economista canadense Michel Chossudovsky traz esses números e elabora uma relação inquietante. Ele recorda que no Afeganistão, antes da escalada militar de Obama, as forças conjuntas dos Estados Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) contabilizavam 70 mil homens para uma população de 28 milhões. Em outras palavras, Chossudovsky conclui que, per capita, haverá mais tropas no Haiti do que havia no Afeganistão em 2008.

Nos últimos dias, não foi só a quantidade de “marines” que intimidou as demais nações envolvidas na ajuda humanitária ao Haiti, que protestaram contra um suposto controle excessivo sobre a ajuda humanitária por parte dos EUA.

Poderes aos EUA
A secretária de Estado estadunidense, Hillary Clinton, também demarcou seu espaço, quer dizer, o espaço político de seu país. No dia 16 de janeiro, afirmou ao jornal estadunidense New York Times esperar que o parlamento haitiano emitisse um decreto emergencial concedendo poder legal ao presidente haitiano, René Préval, de impor toques de recolher e outras medidas. “Tal decreto daria ao governo uma enorme autoridade, que, na prática, eles delegariam para nós”, disse.

Os atos e atitudes estadunidenses não pararam por aí. O aeroporto da capital Porto Príncipe foi tomado. A Força Aérea estadunidense “assumiu” as funções de controle de tráfego aéreo bem como a administração do aeroporto. Assim, nos dias que se seguiram ao terremoto os militares estadunidenses passaram a regular o fluxo de ajuda de emergência e de abastecimento que estão sendo levados para o país em aviões civis.

Isso não agradou as nações envolvidas com a ajuda humanitária. Alguns de seus representantes chegaram a expressar o descontentamento com as práticas estadunidenses. O secretário de Estado francês para a Cooperação, Alain Joyandet, protestou contra os entraves que os Estados Unidos impôs a um avião francês que transportava um hospital móvel que tentava aterrissar no aeroporto da capital do Haiti. “Não se trata de ocupar o país, senão de ajudá-lo a recobrar a vida”, criticou.

Retomada
Uma ideia de um estadunidense, Lawrence Korb, ex-secretário assistente de Defesa dos Estados Unidos, explicita a preocupação com a presença dos Estados Unidos no Haiti. Ele sugeriu, publicamente, que se aproveitasse o conhecimento dos médicos cubanos em tarefas de resgate no país. Haveria tal desprendimento por parte dos militares estadunidenses? “Cuba manda médicos. Os EUA, porta-aviões e marines de fuzis! Na ocupação militar do país, deixam claro que, nessa região, é o imperialismo estadunidense que manda”, destaca o historiador Mário Maestri, professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF), no Rio Grande do Sul.

Para ele, trata-se de um movimento que se associa ao retorno estadunidense à América Central e do Sul, expresso no golpe de Estado em Honduras e nas bases militares na Colômbia. “Hoje, na região, o grande problema é a Venezuela. Certamente teremos novas bases militares estadunidenses no Haiti, região estratégica, e muito barata”, elucida.

Fortalecimento da direita
Sandra Quintela, economista do PACS (Políticas Alternativas para o Cone Sul) e integrante da campanha Jubileu Sul, também não desconecta a escalada da ocupação estadunidense no Haiti com o que aconteceu em Honduras e com o próprio passado político haitiano, país sobre o qual, desde 1915, os estadunidenses exercem forte influência política e econômica. Para ela, sempre é necessário analisar as ações estadunidenses tendo em conta o recente fortalecimento da direita contra os países progressistas da região. “Geograficamente, o Haiti está situado entre Cuba e Venezuela. Do ponto de vista geopolítico, é importantíssimo”, analisa.

Manter a América Latina sob sua corrente seria o objetivo maior dos Estados Unidos. “O envio de marines, de fato, é uma vergonha. O que é que o marines sabem fazer?”, questiona José Luis Patrola, da Brigada Internacionalista Dessalines da Via Campesina no Haiti. Ele mesmo responde: “Sabem fazer guerra. Eles são treinados para guerra, e não para atuar em casos de catástrofes, em caso de reconstrução nacional”. Para Patrola, o que os Estados Unidos temem, em última instância, “é uma rebelião popular motivada pela fome, sede e falta de casa”.

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